domingo, 10 de abril de 2022

 PSEUDOHIPONATREMIA

Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos. Supervisor do Programa de Residência em Medicina Intensiva – COREME. 



A hiponatremia é um achado relativamente comum em pacientes clínicos e cirúrgicos. Conforme a maior parte da literatura é o distúrbio eletrolítico mais comum[1] [2] [3] [4], a despeito de outros reportarem ser a hipocalemia[5] [6]. Na maioria dos casos, a hiponatremia é leve (na faixa de 130-135 mmol/L), autolimitada e não associada a sintomas. No entanto, alguns pacientes sofrem hiponatremia grave, geralmente definida como sódio plasmático inferior a 125 mmol/L. Esta é uma condição aguda potencialmente grave associada a sintomas neurológicos significativos. Destaque-se que considerando que o sódio tem como valência química 1, sua expressão em mmol/L e mEq/L tem o mesmo valor (1 mEq= 1 mmol / valência)[7].

Muito embora a hiponatremia tenha sido bastante estudada no tocante a seu diagnóstico, classificação, etiologia e manejo, na prática poucas vezes se seguem os protocolos, fluxogramas e rotinas amplamente divulgados pela literatura. Algumas vezes um manejo sem respeitar critérios e alvos terapêuticos, pode levar a consequências potencialmente graves.

Dentro do diagnóstico inicial da hiponatremia, uma forma destaca por ser subdiagnosticada. É a denominada PSEUDOHIPONATREMIA OU HIPONATREMIA FALSA.

Trata-se de um valor de hiponatremia com osmolaridade normal gerada por um artefato de laboratório e causada usualmente por ocorrência concomitante de hiperlipidemia ou hiperproteinemia (mieloma múltiplo, por exemplo, ou infusão de imunoglobulina).

Diferença entre plasma e soro (concentração plasmática e sérica).

O plasma sanguíneo é um líquido de composição complexa. Ele é composto, em sua maioria, por água (cerca de 92 - 93%). Além da água, estão presentes componentes orgânicos e inorgânicos, proteínas e lipídeos. As proteínas são os componentes mais importantes, representando uma mistura complexa de mais de 100 tipos diferentes. A albumina é uma das mais importantes, pois atua na manutenção da pressão osmótica coloidal. Estão presentes também os fatores de coagulação e fibrinogênio, importantes na hemostasia. No laboratório, é possível obter o plasma a partir de uma amostra de sangue coletada num tubo com anticoagulante sendo submetida a centrifugação para separar em camadas os diferentes componentes (hemácias, leucócitos/plaquetas e plasma). Existem vários tipos de anticoagulantes, como por exemplo o EDTA (tubo roxo), o citrato de sódio (tubo azul), a heparina (tubo verde) etc. O papel principal do citrato de sódio é formar um quelato com o cálcio, ou seja, ele irá se ligar aos íons cálcio da amostra e a cascata da coagulação será interrompida, impedindo a formação do coágulo. Essa ligação é facilmente reversível, através da adição de novos íons cálcio na amostra. Justamente por causa dessa propriedade é que ele é o anticoagulante usado nos testes de coagulação. Como testes da coagulação precisam ser realizados no plasma, após a centrifugação da amostra de sangue citratada, o sobrenadante precisa conter todas as proteínas e fatores da coagulação. Nos testes de coagulação o cálcio (do kit de diagnóstico) é adicionado à amostra, para a formação do coágulo. O tempo entre a adição do cálcio e a formação do coágulo é que será o resultado do teste. O soro é obtido após a coleta de sangue num tubo sem anticoagulante ("tubo seco" ou tubo amarelo ou vermelho, com ativador de coágulo), deixando ocorrer a coagulação da amostra e posterior centrifugação. O objetivo é que haja a formação de coágulo, e nesse processo os fatores da coagulação, plaquetas e fibrinogênio são consumidos. Então, de forma simplificada, o soro é o plasma sem fibrinogênio, plaquetas e fatores da coagulação. Para a obtenção do soro, atualmente são utilizados tubos que contêm ativador de coágulo jateado na parede do tubo, que acelera o processo de coagulação, e gel separador para obtenção de soro com a mais alta qualidade, proporcionando melhor eficiência no processo de trabalho dentro do laboratório. Vários exames no laboratório clínico, por exemplo os de bioquímica e sorologia, são realizados utilizando o soro. Muitos podem ser feitos utilizando o plasma, mas, pela praticidade e qualidade (líquido livre de células), a maioria dos laboratórios utilizam o soro (Fig. 1)[8].


Fig.1 Diferença entre soro e plasma

Mecanismo da Pseudohiponatremia

Nos pacientes com pseudohiponatremia, a quantidade aumentada de proteínas ou lipídeos acaba ocupando maior proporção no volume de plasma ou soro do que o usual (fração não aquosa), e a água ocupa menos volume (fração aquosa). O sódio e outros eletrólitos são distribuídos apenas na fração aquosa pelo que sua concentração deveria ser aferida apenas nessa fração. De fato, em tais circunstâncias, esperar-se-ia um aumento da concentração em razão da redução do solvente (água) mantendo a quantidade absoluta de soluto (sódio). Entretanto, muitos dos métodos de laboratório utilizados medem a concentração de sódio no volume total de plasma (fração aquosa + não aquosa) fazendo uma “correção padrão” assumindo que a fração aquosa normal é de 93% (0.93), sem levar em consideração que essa fração aquosa poderia, em determinadas circunstâncias (como na hiperlipidemia e/ou hiperproteinemia), ocupar um menor volume no plasma total do que o usual (<93%). Assim, o resultado expressará um valor menor em razão de ter sido aferido num volume maior de solvente (plasma total ou soro total). Tais valores, por vezes encontram-se abaixo do limite inferior da normalidade (< 135 mmol/L) inclusive em valores de hiponatremia severa (< 120 mmol/L) configurando o quadro de psudohiponatremia. Deve-se suspeitar desta pseudohiponatremia se houver discrepância entre a aparente severidade da hiponatremia pelo valor aferido e o quadro clínico que se esperaria para esse valor. A osmolalidade do plasma ou soro não é afetada por qualquer mudança na fração de volume ocupado por proteínas ou lipídeos, uma vez que estes não são dissolvidos na fração aquosa e, logo, não contribuem para a osmolalidade. A osmolalidade medida (aferida diretamente no laboratório) normal em um paciente com hiponatremia severa é, deste modo, forte sugestivo de pseudo-hiponatremia. Isto pode ser verificado formalmente por meio do cálculo da lacuna osmolal, a diferença entre a osmolalidade medida e a osmolalidade calculada (pela fórmula tradicional: 2Na + glicose/18 + ureia/6)[9] (Fig.2).



Fig. 2. Pseudohiponatremia (adaptado de https://nephsim.com/case-29-diagnosis-conclusions/)

 

Assim, considerando que a fração aquosa normal seria 93% (0.93) do volume total do plasma (fração aquosa + não aquosa = 100%), uma concentração de sódio em soro ou plasma total de 143 mmol/L teria seu valor real de 154 mmol/L (143/0.93). Da mesma forma, se nesse mesmo paciente a percentagem de água diminui para 80% (0.8) por aumento da fração não aquosa de lipídios e proteínas, uma concentração de sódio em soro ou plasma total de 123 mmol/L, teria seu valor real também de 154 mmol/L (123/0.8). O fotômetro de chama é o método mais antigo usado para medir a concentração plasmática de sódio. A preparação da amostra envolve a diluição do plasma, e a água do plasma é assumida que corresponde a 93% do total do plasma. Assim, o método calcula o valor de concentração plasmática de sódio (fração aquosa + não aquosa) e após recalcula o valor em 93% (assumindo ser esse o percentual da fração aquosa). Se a fração não aquosa aumentar por hiperlipidemia e/ou hiperproteinemia reduzindo a fração aquosa, por exemplo para 80%, e o método não fizer esse ajuste de correção então o valor será subestimado como pseudohiponatremia.  Se após correção, o valor da concentração de sódio ainda estiver abaixo de 135 então será considerada uma hiponatremia verdadeira (Fig 3)


Fig. 3 Pseudohiponatremia (adaptado de https://twitter.com/tony_breu/status/1012092712110215170)

Ocorre que sendo a hiponatremia um distúrbio bastante frequente, quase nunca é solicitada a aferição dos níveis de lipídeos e proteínas totais antes de iniciar um roteiro diagnóstico. Ainda, calcula-se a osmolaridade ou osmolalidade usando o falso valor de sódio subestimado o que leva a persistir num raciocínio equivocado quanto a classificar o tipo de hiponatremia.

Importante, portanto, sempre se atentar a ocorrência desta falsa hiponatremia, para evitar ter que infundir desnecessariamente soluções hipertônicas que, pelo contrário, provocariam de forma iatrogênica quadros de hipernatremia com eventuais consequências deletérias para o paciente.



[1] Medo CT, Gill GV, Burn J. Hiponatremia: mecanismos e gestão. Lancet 1981; 2: 26-31

[2] Schmidt BM. Die häufigsten Elektrolytstörungen in der Notaufnahme: Was ist sofort zu tun? [The most frequent electrolyte disorders in the emergency department: what must be done immediately?]. Internist (Berl). 2015 Jul;56(7):753-9. German. doi: 10.1007/s00108-015-3670-7. Erratum in: Internist (Berl). 2015 Oct;56(10):1212. PMID: 26036654.

[3] Electrolytes. Isha Shrimanker; Sandeep Bhattarai. Electrolytes. Last Update: July 26, 2021. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK541123/

[4] Syed Zaidi, Rahul Bollam and Kainat Saleem. Electrolytes in the ICU. DOI: 10.5772/intechopen.96957. https://www.intechopen.com/chapters/76244

[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Electrolyte_imbalance

[6] Neville H. Golden, Anorexia Nervosa, Reference Module in Biomedical Sciences, Elsevier, 2020

[7] https://www.rccc.eu/calculadoras/conversor/elect.html

[8] https://www.biomedicinapadrao.com.br/2016/09/diferenca-entre-plasma-e-soro.html

[9] Allan Gaw e col. Bioquímica Clínica. Tradução da 5ª edição. 2015 Elsevier Editora Ltda.

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