segunda-feira, 27 de junho de 2022

           ATUALIZAÇÃO NO CHOQUE VASOPLÉGICO   

PARTE II. TERAPIA VASOPRESSORA MULTIMODAL PRECOCE


Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos. Supervisor do Programa de Residência em Medicina Intensiva – COREME. 



I. MANEJO CONVENCIONAL DO CHOQUE VASOPLÉGICO

 

1. TERAPIA INICIAL VASOPRESSORA

 

A abordagem clássica para o tratamento do choque vasoplégico que não responde a uma estratégia de ressuscitação inicial com fluidos é o uso de drogas vasopressoras a base de catecolaminas em doses tituláveis visando atingir uma pressão arterial média (PAM) alvo definida em diretrizes e guidelines. Entretanto, há muito que se debate se o início do vasopressor deveria ser precoce ou tardio e como definir em termos de tempo, o que seria “precoce” e “tardio”.

Assim, esta revisão levanta os seguintes questionamentos:

 

a). Quando iniciar o vasopressor?

 

b). Em que momento iniciar um segundo vasopressor? e,  

 

c). Qual segundo vasopressor deveria ser escolhido? Há evidência para um terceiro?

 

1.1 QUANDO INICIAR O VASOPRESSOR (INÍCIO PRECOCE VERSUS TARDIO)?

A obtenção de uma pressão de perfusão adequada capaz de gerar um gradiente de oxigenação entre os capilares e os tecidos perfundidos é o objetivo central da ressuscitação no choque vasodilatador. Atrasos na restauração dessa pressão de perfusão estão associados a falências orgânicas e a aumento do risco de morte[1] [2] [3]. Muito tem se discutido se para o iniciar uma droga vasopressora deva se esperar antes os efeitos da ressuscitação inicial com fluidos, para em caso de falha, iniciar o vasopressor. Entretanto, uma estratégia inicial de ressuscitação de fluidos “adequada” abrange não apenas o “bolus” inicial preconizado em algumas diretrizes (20 a 30ml/Kg) administrado em 6h, 3h ou 1h, já que a ressuscitação volêmica poderia continuar por mais tempo e com maior volume de fluido caso o paciente demonstre ser ainda fluidoresponsivo (usando marcadores dinâmicos) e fluidotolerante (sem sinais de congestão venosa).Desta maneira, iniciar o vasopressor somente após insucesso de uma estratégia de ressuscitação de fluidos “adequada” poderia representar um tempo excessivo. No outro extremo, também surge a questão de iniciar o vasopressor precocemente juntamente com a ressuscitação de fluidos.

Em 2014, o estudo de Beck V. e col., demostrou que, após o ajuste para a gravidade da doença, o atraso no início do vasopressor foi associado a um aumento na morte hospitalar (OR 1,02, IC 95% 1,01-1,03, p < 0,001), que foi maior quando os atrasos foram superiores a 14,1 hr (OR 1,34, IC 95% 1,03-1,76, p = 0,048)[4]. No mesmo ano, outro estudo de Bai X. e col., mostrou que o risco de morte aumentou em 5,3% para cada hora que o início do vasopressor foi atrasado, semelhante ao risco de mortalidade dependente do tempo de atraso no início de antimicrobianos na sepse[5]. Em 2020, Colon Hidalgo D. e col., publicaram um estudo de coorte, que demostrou que aqueles que receberam vasopressores dentro de 6 h do início do choque atingiram PAMs duas vezes mais rápido (1,5 vs. 3,0 h, p < 0,01), passaram mais tempo sem vasopressores nas primeiras 72 h de choque (34,5 vs. 13,1 h, p = 0,03), e foram independentemente quase 3 vezes mais propensos a sobreviver em 30 dias (mortalidade para vasopressores após 6 h; OR 2,9, IC 95% 1,3-7,0, p não relatado)[6]. No mesmo ano, o estudo de Black LP e col., mostrou que quando o início do vasopressor foi atrasado > 4 h, as chances de agravamento da falência orgânica aumentaram quatro vezes (OR 4,34, IC 95% 1,47–12,79, p = 0,008), quando comparados àqueles que receberam vasopressores em < 4 h[7]. Ainda em 2020, o estudo de Gustavo A. Ospina e col., mostrou que o início precoce de norepinefrina (dentro/antes da próxima hora da ressuscitação inicial com fluidos) parece ser seguro, podendo limitar a quantidade de fluidos para ressuscitar o choque séptico e podendo levar a melhores resultados clínicos[8]. As diretrizes da Surviving Sepsis Campaign (SSC) normalmente tem se limitado a orientar o uso de vasopressor em função de meta pressórica a ser atingida, sem citar o momento da sua introdução. Entretanto, em 2018, uma atualização dessas diretrizes da Surviving Sepsis Campaign (SSC) recomendou o início do vasopressor como parte do pacote de 1 hora recomendando que seja feito “durante ou após a ressuscitação com fluido”[9]. Apesar disso, mais recentemente em 2021, nas novas diretrizes do SSC orientação sobre o momento do início do vasopressor não consta expressamente[10]. O estudo CENSER avaliou o início da norepinefrina dentro de 1 h após o choque (início precoce) num ensaio prospectivo, duplo-cego e randomizado. Aqueles que foram randomizados para receber norepinefrina de forma precoce tiveram maior probabilidade (OR 3,4, IC 95% 2,09–5,53, p < 0,001) de reversão do choque (PAM > 65 mmHg em 2 leituras, débito urinário > 0,5 ml/kg/h durante 2 h, e redução de 10% do lactato basal) às 6 h. Não houve diferenças na mortalidade hospitalar em 28 dias, embora este estudo de fase II não tenha poder para avaliar mortalidade. É interessante, no entanto, notar que os que receberam norepinefrina de forma precoce foram menos propensos a apresentar edema pulmonar cardiogênico (OR 0,70, IC 95% 0,56–0,87, p = 0,004) ou arritmias (OR 0,74, IC 95% 0,56–0,94, p = 0,03) [11]. Entretanto, mais recentemente em abril de 2022, um estudo prospectivo, multicêntrico, observacional publicado por Hye Ju Yeo e col., avaliou se a administração de um vasopressor dentro de 1 hora contada a partir do início da ressuscitação de fluido afetou a mortalidade e disfunção orgânica em pacientes com choque séptico. 16 hospitais terciários ou universitários na República da Coreia recrutaram 415 pacientes com choque séptico classificando-os em grupo precoce (149, com início do vasopressor dentro da 1 hora) e tardios (149, com início após 1 hora). O tempo médio entre o início do fluido e o início do vasopressor foi de 0,3 h no grupo precoce e 2,3 h no grupo tardio. Não houve diferença significativa no volume de bolus de fluido dentro de 6 horas (33,2 vs 35,9 mL/kg) entre os grupos. O escore de SOFA e o nível de lactato no dia 3 na UTI foram significativamente maiores no grupo precoce do que no grupo tardio (SOFA de 9,2 vs 7,7; nível de lactato de 2,8 vs 1,7 mmol/L). Em análises multivariadas de regressão de Cox, o uso precoce de vasopressores foi associado a um aumento significativo no risco de mortalidade em 28 dias (razão de risco, 1,83; IC 95%, 1,26-2,65)[12].

1.2 EM QUE MOMENTO INICIAR UM SEGUNDO VASOPRESSOR?

Como visto acima, apesar da controvérsia entre as evidências citadas, a maioria sustenta que o início precoce da terapia vasopressora seria melhor que o tardio.

Há muito tempo que a norepinefrina (noradrenalina) tem sido recomendada como a droga vasopressora de escolha ou de primeira linha no manejo do choque vasoplégico (ficando dopamina e adrenalina como alternativas, na ausência da norepinefrina) com orientações pouco consistentes a respeito da seleção e o momento da associação de outra(s) droga(s) vasopressora(s)[13], levando a uma considerável heterogeneidade na prática do médico intensivista à beira do leito[14]. Essa abordagem, passo a passo, tradicionalmente envolve uma dose inicial de norepinefrina em infusão contínua, que vai subsequentemente sendo aumentada (caso não se atinja a meta ou alvo de pressão), chegando muitas vezes a níveis tóxicos. Espera-se chegar a um ponto de “ausência de resposta à norepinefrina” para somente aí associar um segundo vasopressor. 

Apesar de não existir uma definição consensual universal, o termo choque refratário tem sido frequentemente usado durante o manejo do choque circulatório (independentemente de sua etiologia), para alertar sobre uma ausência de resposta à terapia vasopressora inicial.

Em 2013, uma revisão no Brasil, definia choque refratário como aquele com necessidade de > 0,5 mcg/kg/min de noradrenalina/adrenalina por > 1h ou >1 mcg/kg/min em qualquer período de tempo[15]. Em 2018, uma revisão apontou que uma definição razoável de choque refratário seria uma resposta inadequada à terapia com alta dose de vasopressor, definida como ≥ 0,5 mcg/kg/min de norepinefrina ou dose equivalente de outro vasopressor[16]. Durante muito tempo, esse status de choque refratário tem sido usado como o momento para a introdução de uma segunda droga vasopressora como a vasopressina. Desde as primeiras diretrizes do Surviving Sepsis Campaign (SSC) em 2004, existe a recomendação da associação de vasopressina para manejo do choque séptico em pacientes refratários a outros vasopressores, sem, no entanto, a própria SSC definir o que seria esse choque refratário[17]. As sucessivas diretrizes (2008, 2012, 2017), mantiveram essa recomendação, sem também incluir a definição de choque refratário[18] [19] [20]. Entretanto, as mais recentes diretrizes do SSC de 2021 trazem, dentro da 38 recomendação (sugestão de associação da vasopressina à norepinefrina), uma observação decorrente da prática dos autores, no sentido de a vasopressina geralmente ser iniciada quando a dose de norepinefrina está na faixa de 0,25–0,5 μg/kg/min[21].

Essa estratégia de adiar a associação de um segundo vasopressor em função de uma determinada dose do primeiro, poderia atrasar a obtenção de pressões de perfusão adequadas e, em última análise, poderia contribuir para levar à falência progressiva de múltiplos órgãos e, por sua vez, as chances de morte aumentariam a cada aumento progressivo no número de falências totais de órgãos[22].

Entretanto, evidencias para o início de um segundo vasopressor são escassas. 

Recentemente, em abril de 2022, um grande estudo de coorte retrospectivo publicado por Gretchen L Sacha e col., descobriu que quando a vasopressina foi adicionada à norepinefrina no choque séptico como segundo vasopressor, o risco de mortalidade hospitalar aumentou de 12-18% quando houve atraso no início da vasopressina a partir de início do choque (2,1-12,2 h). No total, 1.610 pacientes foram incluídos. No momento do início da vasopressina, os pacientes tinham uma média de concentração de lactato de 3,9 mmol/L (2,3-7,2 mmol/L), dose de norepinefrina de 25 µg/min (18-40 µg/min) e tempo de 5,3 horas (2,1-12,2 h) decorrido desde o início do choque. As chances de mortalidade intra-hospitalar aumentaram 20,7% para cada aumento de 10 µg/min na dose de norepinefrina até 60 µg/min no momento do início da vasopressina (razão de chances ajustada, 1,21 [IC 95%, 1,09-1,34]), mas nenhuma associação foi detectada quando a dose de norepinefrina excedeu 60 µg/min (razão de chances ajustada, 0,96 [IC 95%, 0,84-1,10]). Houve interação significativa entre o momento de início da vasopressina e a concentração de lactato (p = 0,02) para a associação com mortalidade hospitalar. Uma associação linear entre o aumento da mortalidade hospitalar foi detectada para o aumento da concentração de lactato no momento do início da vasopressina, mas nenhuma associação foi detectada para o tempo decorrido desde o início do choque. maior dose equivalente de norepinefrina no início da vasopressina. Assim, uma maior concentração de lactato no início da vasopressina foi associada a maior mortalidade hospitalar em pacientes com choque séptico que receberam vasopressina[23]. Talvez todos esses sejam sinais de que um início mais rápido e mais precoce para associação de vasopressores não catecolaminas seja necessário, visando agir enquanto o ambiente fisiológico ainda é favorável, ou o choque ainda não progrediu a um ponto de irreversibilidade.

HIPERLACTATEMIA

 

No choque, a hipotensão arterial reduz a oferta de oxigênio, levando à hipóxia tecidual regional e global. Consequentemente, a utilização de oxigênio no nível celular é prejudicada com oxidação mitocondrial inadequada. Concomitantemente, o choque vasoplégico é frequentemente acompanhado por um estado hiperdinâmico secundário ao estresse (por exemplo, sepse), levando à glicólise anaeróbica, contribuindo ainda mais para a produção excessiva de lactato[24]. O resultado final é um estado de hiperlactatemia que é exacerbado pela acidemia que prejudica a depuração do lactato pelo fígado.

A hiperlactatemia tem sido consistentemente uma marca de mau prognóstico no choque vasoplégico. Em uma coorte de sepse grave e choque séptico, as concentrações iniciais de lactato foram maiores (7,3 mmol/l) naqueles que morreram dentro de 24 horas da apresentação em comparação com aqueles vivos após 24 horas (3,3 mmol/l). Em uma análise multivariada nesta população, esta concentração inicial de lactato e a disfunção multiorgânica, conforme avaliada pelo SOFA modificado (mSOFA) foram preditores independentes de morte precoce[25]. Da mesma forma, fora do período de apresentação imediata, lactato > 4 mmol/l foi independentemente associado a um risco três vezes maior de morte em 28 dias no choque séptico (OR 3,0, IC 95% 2,1–4,1, p < 0,001), independentemente do uso de vasopressor[26]. Mesmo entre os pacientes com choque séptico que necessitam de vasopressores, aqueles que experimentam pelo menos uma concentração de lactato superior a 2,5 mmol/l em qualquer momento durante o curso do choque, têm quase metade da sobrevida (57,1%) do que aqueles sem hiperlactatemia (92,3%) em 100 dias (p < 0,0001)[27]. Curiosamente, mesmo quando a concentração de lactato está dentro de “limites considerados normais”, aqueles com aumentos relativos ao limite superior da faixa normal apresentam maior probabilidade de morte[28]. Em conjunto, a hiperlactatemia no choque vasodilatador parece resumir um sério déficit na perfusão adequada dos órgãos. De fato, o risco de falência de múltiplos órgãos e morte aumenta com o aumento da concentração de lactato[29].

Além do prognóstico, a concentração de lactato pode fornecer informações valiosas sobre a seleção de vasopressores e considerações de tempo, particularmente quando se trata de vasopressores não adrenérgicos adicionados a catecolaminas. Embora apenas menos da metade dos pacientes que recebem vasopressina apresente uma resposta hemodinâmica favorável, a resposta é duas vezes mais provável entre aqueles com concentrações mais baixas de lactato (OR 2,15, IC 95% 1,39–3,32, p < 0,001), que por sua vez, está associada a uma maior probabilidade de sobrevivência na UTI[30]. Recentemente, em um estudo de coorte de pacientes com choque séptico, quando a adição de vasopressina à norepinefrina foi adiada, as chances de morte intra-hospitalar aumentaram com o aumento da concentração de lactato em até 18% por mmol/l em 12,2 h após o início do choque (IC 95% 1,07–1,32)[31]. Da mesma forma, a experiência pós comercialização com angiotensina II sintética demonstra uma resposta hemodinâmica e de sobrevida semelhante no que se refere à concentração de lactato. Num estudo publicado, apesar de que pacientes que receberam angiotensina II sintética eram mais graves (SOFA basal de 12 e APACHE II de 30), os respondedores hemodinâmicos tiveram uma concentração de lactato basal mais baixa (6,5 mmol/l) em comparação com os não respondedores (9,5 mmol/l), e em um modelo multivariável a probabilidade de resposta hemodinâmica foi maior com lactato mais baixo (OR 1,11 por mmol/l, IC 95% 1,05–1,17, p < 0,001) e a mortalidade em 30 dias foi menor com lactato mais baixo (OR 0,94 por mmol/ l, IC 95% 0,91–0,96, p < 0,001)[32].

 

DOSES DE CATECOLAMINAS

Uma preocupação frequentes na titulação do vasopressor é a ocorrência de feitos adversos durante a titulação da dose. Com seus potentes efeitos vasoconstritores nos receptores alfa-adrenérgicos em toda a periferia vascular, o excesso de estimulação pode ser prejudicial, com os vasos distais permanecendo mais suscetíveis, levando a isquemia de dedos e hipóxia esplâncnica, resultando em necrose e morbidade grave[33] [34]. Além dos efeitos vasoconstritores desejados das catecolaminas, a estimulação do receptor beta a nível do miocárdio tornou esses agentes particularmente intoleráveis. A arritmia é comum e ocorre em até um terço dos que recebem norepinefrina no choque séptico e está associada ao aumento do risco de morte. A duração e a dosagem de norepinefrina mostraram valor na previsão de arritmia, e o risco aumenta em 6% para cada aumento de 5 μg/min na dosagem máxima de norepinefrina[35].

A dosagem cumulativa de exposição à norepinefrina tem sido uma medida objetiva facilmente identificável para prever o prognóstico no choque séptico. Em comparação com uma mortalidade aproximada em 90 dias de 25% entre > 3.000 pacientes internacionais com choque séptico na metanálise do PRISM[36], aqueles que necessitaram de altas doses de norepinefrina tiveram taxas de mortalidade variando de 60% a mais de 90 % (Tabela 1)[37] [38] [39] [40] [41] [42].


TABELA 1: Doses de norepinefrina e mortalidade (Crit Care 26, 76, 2022)

Além do prognóstico, a dosagem de catecolaminas é um marcador fácil, à beira do leito, para decidir sobre o aumento do vasopressor. No estudo de referência para vasopressina (VASST), os pacientes que receberam vasopressina quando a dosagem de norepinefrina foi < 15 µg/min apresentaram menor mortalidade em 28 dias (26,5% vs. 35,7%, p = 0,05) e 90 dias (35,8% vs. 46,1%, p = 0,04)[43]. Da mesma forma, em uma análise recente de > 1.500 pacientes com choque séptico, o risco de mortalidade intra-hospitalar foi aumentado em 20,7% para cada aumento de 10 µg/min na dose de norepinefrina no momento da adição de vasopressina como agente de segunda linha[44]. Mais importante ainda, independentemente da taxa de resposta e gravidade inicial da doença, o risco de mortalidade é independentemente menor se houver uma resposta hemodinâmica positiva à vasopressina (OR 0,51, IC 95% 0,35-0,76, p = 0,001) e angiotensina II (HR 0,50, 95% IC 0,35–0,71, p < 0,001)[45] [46]. Todos esses dados sugerem que a restauração hemodinâmica e a reversão do choque são determinantes cruciais na probabilidade de sobrevida.

 

USO DE BIOMARCADORES

 

Para adaptar a terapia vasopressora no choque vasoplégico, o prognóstico fenotípico e a resposta farmacológica precisam ser caracterizados. 

 

Existem vários biomarcadores candidatos emergentes que demonstraram associação com a resposta vasopressora e resultados no choque séptico (Tabela 2). As variações genéticas na ARDβ2 que codifica o receptor β2-adrenérgico foram associadas a uma maior necessidade de norepinefrina, maior disfunção renal, hematológica, hepática e neurológica e um aumento da mortalidade em 28 dias no choque séptico[47]. Da mesma forma, variantes no AGTRAP, a proteína associada ao receptor de angiotensina II tipo 1, têm sido associadas à redução da PAM, menor tônus ​​vascular e aumento da mortalidade em 28 dias[48]. Curiosamente, defeitos no LNPEP (leucil e cistinil aminopeptidase), também conhecidos como vasopressinase, têm sido associados ao aumento da depuração da vasopressina plasmática e aumento da mortalidade em 28 dias[49]. Elevações das concentrações plasmáticas de angiopoietina-2, um fator de crescimento endotelial que promove vazamento vascular, tem sido associado a disfunção renal, hepática e de coagulação, bem como aumento da mortalidade em 7 e 28 dias[50]. Embora exista a chamada deficiência relativa de vasopressina nos estágios iniciais do choque séptico[51], as concentrações plasmáticas de vasopressina não demonstraram prever a resposta positiva à administração de vasopressina exógena, e as correlações de resultados são mistas[52].


TABELA 2. Biomarcadores potenciais para terapia vasopressora (Crit Care 26, 76, 2022)

Embora o lactato tenha sido um marcador prognóstico de doença crítica e choque, a renina sérica está emergindo rapidamente como um preditor potencialmente superior de mortalidade em vários estados de choque na UTI. O aumento da renina sérica (valores > 40 pg/ml) está associado a déficit de angiotensina II. Dois estudos separados mostraram que uma concentração absoluta elevada de renina e uma taxa de aumento de renina foram superiores ao lactato em associações com UTI e mortalidade hospitalar em pacientes críticos[53] [54]. É importante ressaltar que a renina parecia estável e as concentrações não foram influenciadas de forma apreciável pela terapia de substituição renal ou drogas que alteram a cascata renina-angiotensina (ou seja, inibidores da ECA e bloqueadores dos receptores da angiotensina)[55]. A administração de angiotensina II exógena demonstrou beneficiar favoravelmente os resultados de sobrevida naqueles com choque e renina alta[56] [57]. Uma das maiores barreiras clínicas para o uso deste biomarcador em conjunto com ou como alternativa ao lactato é a falta de um verdadeiro ensaio point-of-care que permitiria ressuscitação direcionada à beira do leito em resposta às concentrações em tempo hábil[58] [59].

1.3 QUAL SEGUNDO VASOPRESSOR DEVERIA SER ESCOLHIDO? HÁ EVIDÊNCIA PARA UM TERCEIRO?

A evidência sobre a estratégia terapêutica ideal para choque que requer vasopressores em altas doses é escassa.

Como já citado anteriormente, desde a publicação das primeiras diretrizes do Surviving Sepsis Campaign (SSC) em 2004, existe a recomendação da escolha da vasopressina como segundo vasopressor em associação à norepinefrina para manejo do choque séptico. As sucessivas diretrizes (2008, 2012, 2017), mantiveram essa recomendação. As mais recentes diretrizes do SSC de 2021 trazem, dentro da 38 recomendação (sugestão de associação da vasopressina à norepinefrina), uma observação decorrente da prática dos autores, no sentido de a vasopressina ser iniciada quando a dose de norepinefrina está na faixa de 0,25–0,5 μg/kg/min.

A vasopressina é um hormônio peptídico endógeno produzido no hipotálamo e armazenado e liberado pela hipófise posterior. Seu mecanismo de vasoconstrição é multifatorial e inclui ligação a receptores V1 no músculo liso vascular, resultando em aumento da pressão arterial. Estudos mostram que a concentração de vasopressina é elevada no choque séptico precoce, mas diminui para a faixa normal na maioria dos pacientes entre 24 e 48 h enquanto o choque continua. Este achado foi chamado de “deficiência relativa de vasopressina” pois, na presença de hipotensão, espera-se que os níveis de vasopressina sejam elevados. A importância desse achado é desconhecida. Ao contrário da maioria dos vasopressores, a vasopressina não é titulada sendo recomendado seu uso em uma dose fixa de 0,03 unidades/min para o tratamento do choque. Em ensaios clínicos, a vasopressina foi usada até 0,06 unidades/min (VANISH study)[60]. Doses mais altas de vasopressina foram associadas a isquemia cardíaca, digital e esplâncnica. Quanto à terapia combinada, o estudo principal (VASST study) comparando a norepinefrina isolada com a norepinefrina mais vasopressina (0,01–0,03 U/min) não apresentaram melhora na mortalidade em 28 dias (39,3% vs 35,4%, p = 0,26)[61]. No entanto, em uma análise de subgrupo, pacientes com menos choque grave recebendo norepinefrina < 15 μg/min teve melhor sobrevida com a adição de vasopressina (26,5% vs. 35,7%, p = 0,05). Ambos VANISH e VASST demonstraram que a vasopressina tem um efeito poupador de catecolaminas. Assim, o uso precoce de vasopressina em combinação com norepinefrina pode ajudar a reduzir a carga adrenérgica associada. Numa revisão sistemática de 10 ensaios clínicos randomizados, vasopressina com norepinefrina reduziu mortalidade em comparação com a norepinefrina sozinha (RR 0,91; IC 95% 0,83-0,99), mas não reduziu a necessidade de terapia renal substitutiva - TRS (RR 0,79; IC 95% 0,57–1,10). Não houve diferença nos riscos de isquemia digital (RR 1,01; 95% IC 0,33–9,84) ou arritmias (RR 0,88; 95% IC 0,63-1,23). O limiar para a adição de vasopressina variou entre os estudos e ainda não está claro. Iniciar vasopressina quando a dose de norepinefrina está na faixa de 0,25–0,5 μg/kg/min parece sensato segundo a VANISH study. Outra meta-análise de ensaios clínicos randomizados sobre choque distributivo mostrou menor risco de fibrilação com a combinação de vasopressina e norepinefrina em comparação com a norepinefrina isolada[62]. No entanto, uma recente meta-análise de dados de pacientes individuais com choque séptico de 4 ensaios clínicos randomizados mostrou que vasopressina isoladamente ou em combinação com norepinefrina levou a um maior risco de isquemia digital (diferença de risco [RD] 1,7%; 95% IC 0,3-3,2), mas menor risco de arritmia (RD -2,8%; IC 95% -0,2 a -5,3) em comparação com norepinefrina sozinha[63].

Quanto à possibilidade de associar um terceiro vasopressor, a epinefrina (adrenalina) tem sido sugerida como segunda ou terceira linha vasopressora para pacientes com choque séptico (diretrizes do SSC de 2021). Com o uso de norepinefrina em concentrações elevadas, os receptores α1 podem já estar saturados e desregulados[64]. Assim, o uso de outra droga como a epinefrina que tem como alvo os mesmos receptores que a norepinefrina pode ser de utilidade limitada e a vasopressina certamente seria mais adequada nesse cenário. A epinefrina em doses baixas poderia ser útil em pacientes com choque séptico e disfunção miocárdica em razão dos seus feitos predominantemente β em doses baixas (0.01 – 0.1 mcg/kg/min) comparado com os efeitos predominantemente α em doses altas (0.1 – 2 mcg/kg/min). O fluxo sanguíneo coronário é aumentado através de um aumento da duração relativa da diástole em frequências cardíacas mais altas e através da estimulação dos miócitos para liberar vasodilatadores locais, que contrabalançam amplamente os efeitos vasoconstritores coronários mediados pelo efeito α-1[65] [66] [67]. Considerando estas caraterísticas farmacológicas da epinefrina o SSC de 2021 na sua 39 recomendação assim orienta: Para adultos com choque séptico e níveis inadequados de PAM apesar da norepinefrina e vasopressina, sugerimos adicionar epinefrina (Recomendação fraca, evidência de baixa qualidade)

 

II TERAPIA VASOPRESSORA MULTIMODAL PRECOCE NO CHOQUE VASOPLÉGICO

A revisão de Wieruszewski, PM e Khanna, AK[68], traz a abordagem do uso de “terapia vasopressora multimodal precoce”, também chamada de “terapia inicial de amplo espectro com vasopressores” por outros[69] [70]

 

Isso seria uma estratégia análoga à da terapia antibiótica empírica precoce e de amplo espectro na sepse suspeita ou confirmada. Embora atualmente não se tenham dados convincentes, como os que se tem para antimicrobianos, certamente existem fundamentos fisiopatológicos para o uso de doses mais baixas de várias classes diferentes de vasopressores à medida que iniciamos o manejo do choque vasoplégico. Evitar-se-ia assim os efeitos deletérios do uso de um único vasopressor em doses elevada.

 

Esta terapia multimodal inicial e precoce se combina com o uso de biomarcadores, visando realizar o posterior descalonamento para um único agente vasopressor, em função do perfil estabelecido por tais biomarcadores. Por exemplo, um paciente com choque séptico em que os níveis de vasopressina são desproporcionalmente baixos em comparação com o aumento do lactato e de angiotensina II endógena (pacientes com renina sérica baixa), e onde o uso inicial de vasopressina mostrou benefício clínico e laboratorial (atingindo metas de perfusão), a estratégia multimodal poderia ser lentamente descalonada para uma abordagem predominante com vasopressina. Da mesma forma, se durante uma terapia multimodal precoce que inclua angiotensina II exógena (paciente com renina sérica elevada), se observa uma excelente resposta à angiotensina II, seria uma razão óbvia para descalonar a uma abordagem predominantemente com essa droga vasopressora. De fato, o valor de testar a responsividade da angiotensina II foi comprovado em estudos clínicos e pressagia um excelente prognóstico em pacientes adequadamente escolhidos[71]. Haverá também aqueles com choque benigno, em que doses muito baixas de catecolaminas podem ser tudo o que é necessário e claramente nem todos os pacientes necessitarão de combinação de vasopressores. Finalmente, o uso de adjuvantes não vasoconstritores (por exemplo, corticosteroides) direcionados à patologia subjacente, como estratégias poupadoras de catecolaminas, não deve ser ignorado para fornecer uma abordagem equilibrada para a ressuscitação geral do choque vasodilatador[72] [73].

 

Esta estratégia de terapia multimodal vasopressora, tem despertado o interesse da comunidade científica. Para Guerci, P., Belveyre e col., em recente publicação no Critical care de 06.05.2022 (comentando a revisão de Wieruszewski, PM e Khanna, AK) o principal desafio continua sendo identificar prontamente os perfis dos pacientes durante a fase inicial da ressuscitação. Defendem uma abordagem personalizada de uso de vasopressores, sugerindo numa perspectiva pragmática, considerar a cinética de incremento de dose de norepinefrina. Apontam basicamente, dois perfis de necessidade de dose que podem ser observados em pacientes à beira do leito. Um perfil “refratário”, que corresponde à necessidade de aumento exponencial das doses de norepinefrina, e um perfil “controlado” com aumento progressivo da dose de norepinefrina até um platô sem atingir níveis tóxicos (Fig. 1).

 


Fig. 1 Perfis de paciente de acordo com a resposta à norepinefrina (Crit Care 26, 125, 2022)

 

Conforme ilustrado na Fig.1, ambos os perfis ultrapassarão de forma semelhante o limiar de 0,5 µg/kg/min de dose de norepinefrina (NE) e deveriam desencadear a associação de arginina-vasopressina (AVP). No perfil refratário, quanto mais precoce o início da AVP, maior a chance de evitar doses muito elevadas de norepinefrina expondo o paciente a efeitos tóxicos. No perfil “controlado”, a adição de AVP no limite de 0,5 µg/kg/min de norepinefrina poderia não ser necessária. Nessa linha de busca de perfis, de faz necessário ensaios clínicos visando identificar quais pacientes poderiam se beneficiar mais da associação precoce de NE + AVP[74].

Finalmente, o campo do início de inotrópicos é também um terreno a ser estudado na mesma linha dos vasopressores, considerando que o choque vasoplégico por vezes já vem associado a choque cardiogênico ou, este último se desenvolve como complicação do primeiro (miocardiopatia séptica).  Muito embora, a indicação clássica e genérica tem sido a evidência de existência de disfunção miocárdica associada, pouco se sabe sobre o momento certo da introdução considerando que a disfunção poderia ser já crônica, agravada apenas pelo quadro agudo de choque. A associação de inotrópicos baseado apenas no valor da saturação venosa central (SVcO2) deve ser sempre analisada com cautela, toda vez que nem sempre uma queda na SVcO2 traduz queda do inotropismo, podendo ser reflexo do aumento da taxa de extração de oxigênio por aumento do consumo (VO2) ou pela queda da oferta (DO2) não dependente de inotropismo (queda de Hb, PaO2, etc.). O advento da ecocardiografia à beira leito tem sido uma ferramenta de enorme valia nos últimos anos para avaliar disfunção miocárdica no contexto de choque circulatório. Assim, futuras investigações voltadas à investigação do momento certo em que um inotrópico deveria ser introduzido.

 



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