NEFROTOXICIDADE POR PIPERACILINA-TAZOBACTAM E NEUROTOXICIDADE POR CEFEPIMA: MITO OU REALIDADE?
Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico intensivista. Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.
Recente ensaio clínico de Qian ET e
col. (ESTUDO ACORN), publicado
no JAMA “bota mais lenha na fogueira” a respeito da nefrotoxicidade associada a
uso piperacilina-tazobactam e da neurotoxicidade associada a uso de cefepima[1].
Cefepima (CEF) e Piperacilina-tazobactam
(PT) são 2 antibióticos muito usados para tratamento de infecções graves em pacientes
hospitalizados dentro e fora da UTI, com ou sem sepse.
Entretanto, existem reportes nos
quais se alerta sobre o risco de nefrotoxicidade induzida por
piperacilina-tazobactam podendo causar lesão renal aguda (LRA) principalmente
quando associada a vancomicina; e sobre o risco de neurotoxicidade induzida por
cefepima (encefalopatia induzida por cefepima) que pode ir desde a agitação até
o estado de delirium e coma.
Entretanto, a questão tem sido motivo
de debate pela comunidade científica à luz dos estudos publicados, gerando controvérsias
e angústia, diante da necessidade de evitar ou restringir se uso num contexto
de carência de alternativas terapêuticas contra infecções graves ameaçadora da
vida.
Façamos então uma reflexão à luz do
contexto atual das evidências.
NEFROTOXICIDADE INDUZIDA POR PIPERACILINA-TAZOBACTAM.
Tem sido relatada nefrotoxicidade induzida
por PT; no entanto, sua certeza é ainda motivo de debate e os mecanismos
subjacentes permanecem desconhecidos.
Bryan D. Hayes, faz uma interessante revisão sobre o
assunto e elenca algumas razões pelas quais a PT não seria sua primeira
escolha como antibiótico de amplo espectro contra micro-organismos gram-negativos
na emergência. Primeiro, porque na sua instituição, as suscetibilidades da pseudomona aeruginosa à PT são inferiores às da cefepima. Em segundo lugar, a PT não tem
grande penetração no SNC, especialmente em comparação com a ceftriaxona, a
cefepima ou mesmo o meropenem. Terceiro, porque sendo a PT ótima para o
tratamento empírico de infecções intra-abdominais e graves do pé diabético, pode não ser necessária para pneumonia adquirida no hospital (PAH). Quarto, porque
com sua dosagem frequente (a cada 6 horas), muitas vezes a segunda dose é
esquecida se o paciente ainda estiver internado no pronto-socorro. Hayes
analisa estudos retrospectivos, prospectivos e metanálises publicadas. Houve 12
grupos diferentes com pacientes de medicina interna, pediátricos e de UTI
(incluindo um estudo prospectivo) demonstrando efeito adverso. Três
metanálises, com 963 pacientes, 3.528 pacientes e 3.549 pacientes, chegaram à
mesma conclusão. O estudo prospectivo apoia a associação, mesmo com os níveis
mínimos de vancomicina iguais em cada grupo. Especificamente em pacientes de
UTI, refere que os resultados têm sido conflitantes. Todos os três estudos em
UTI relataram uma alta taxa de LRA com vancomicina + PT (21,2-40,5%). Dois dos
estudos na UTI mostraram uma taxa significativamente maior no grupo combinado
em comparação com a vancomicina isoladamente; mas o outro não demonstrou
diferença quando a PT foi substituída por cefepima. Por tanto, conclui ser
necessário estudos prospectivos em pacientes de UTI. Quanto aos mecanismos
propostos para LRA induzida por PT refere a nefrite intersticial aguda (NIA) ou
efeitos tóxicos diretos no túbulo renal (NTA). Poderia ser um efeito aditivo da NIA e da NTA. Alguns
sugeriram uma diminuição da depuração da vancomicina pela PT, resultando no
acúmulo de vancomicina; no entanto, o único estudo prospectivo não relatou
nenhuma diferença nos níveis médios de vancomicina entre os dois grupos. Refere
ainda um estudo que aponta 4 fatores de risco independentes para LRA com a
associação vancomicina + PT: infecção Gram-positiva documentada, presença de
sepse, recebimento de uma dose de ataque de vancomicina e recebimento de
qualquer outra substância nefrotóxica concomitante[2].
Josh Farkas, publica um post interessante em que
aborda a questão analisando uma aparente contradição e celeuma em torno da PT
ser protetora (“maverick”) ou prejudicial (“gosse”) em relação a LRA. Levanta o
conceito de “pseudonefrotoxicidade” da PT – aumento da creatinina sérica, sem
comprometimento da função renal ou lesão renal verdadeira. Piperacilina-tazobactam
pode aumentar a creatinina sérica devido à redução na secreção tubular de
creatinina, causada pela inibição do transportador de ânions orgânicos. Isto
causaria “pseudonefrotoxicidade”. Cita um estudo (Jensen 2012) no qual os
autores analisaram cuidadosamente os níveis diários de creatinina durante o uso
e após a descontinuação de vários antibióticos. A maioria dos pacientes
apresentou lesão renal aguda devido à sepse, que melhorou durante o tratamento.
No entanto, os pacientes tratados com PT exibiram melhora retardada na
creatinina durante a terapia antibiótica, em comparação com pacientes tratados
com meropenem. Após a descontinuação dos antibióticos, os pacientes do grupo PT
apresentaram uma rápida melhora na função renal em poucos dias. Em contraste,
os pacientes tratados com outros antibióticos (incluindo meropenem) não tiveram
alterações na creatinina após a interrupção dos antibióticos. Vários estudos em animais descobriram
que a piperacilina exerce efeitos nefroprotetores. Especificamente, a adição de
piperacilina a medicamentos nefrotóxicos (por exemplo, amicacina, gentamicina,
netilimicina, cisplatina) causa redução da lesão renal. Um estudo encontrou um
efeito semelhante em humanos: a piperacilina mais amicacina causou menos lesões
renais do que a amicacina sozinha. O mecanismo subjacente a isto parece ser que
a piperacilina demonstrou inibir competitivamente o sistema de transporte de
aniões orgânicos, de uma forma semelhante à probenecida. O bloqueio desse
transportador pode reduzir a entrada de drogas nefrotóxicas nos túbulos
proximais. A menor concentração de nefrotoxina nos túbulos protege o rim de
danos (efeito nefroprotetor). Portanto, a PT pode aumentar a creatinina sérica
devido à redução da secreção de creatinina através do sistema de transporte de
ânions orgânicos. Este fenómeno de “pseudonefrotoxicidade” parece ser uma
propriedade comum de medicamentos que inibem este sistema (por exemplo,
probenecida e trimetoprim). No entanto, esta elevação da creatinina pode não
refletir uma verdadeira redução da função renal ou danos renais reais. Na
presença de algumas nefrotoxinas (por exemplo, aminoglicosídeos), isto pode até
exercer um efeito nefroprotetor. Ainda, alguns estudos mostram que, muito
embora a PT está associada a um aumento da creatinina, também está associada a
uma tendência para menos diálise. Assim, as elevações da creatinina devido à PT
podem não ser clinicamente relevantes[3].
Mais recentemente em abril de 2023,
um estudo retrospectivo de Chen AY e col., publicado no CHEST, avaliou o risco
de desenvolver lesão renal aguda (LRA) em pacientes que receberam de forma
exclusiva associação de vancomicina e piperacilina-tazobactam (VPT),
vancomicina e cefepima (VC) ou vancomicina e meropenem (VM). Os resultados
indicaram que a combinação de vancomicina e piperacilina-tazobactam foi
associada a um maior risco de LRA e início de diálise quando comparada com
vancomicina e cefepima e vancomicina e meropenem. O estudo recomenda que os médicos
devem considerar vancomicina e meropenem ou vancomicina e cefepima para reduzir
o risco de nefrotoxicidade em pacientes na UTI[4].
Uma publicação de julho de 2023 de
Yang J. e col., mostra resultados de estudo in vitro realizado em camundongos
nos quais se evidencia nefrotoxicidade da PT através de dano mitocondrial por perda
de potencial de membrana mitocondrial e parece exercer nefrotoxicidade direta,
que está associada ao estresse oxidativo e ao dano mitocondrial nas células
tubulares renais[5].
NEUROTOXICIDADE INDUZIDA POR CEFEPIME.
A neurotoxicicidade induzida por
cefepima é hoje menos controversa que a nefrotoxicidade induzida por piperacilina-tazobactam
e é melhor aceita como realidade pela comunidade científica.
A neurotoxicidade induzida por
cefepima ocorre supostamente em aproximadamente 3% dos pacientes que usam
cefepima. Os sintomas de encefalopatia induzida por cefepima surgem
aproximadamente 1 a 10 dias (média: 5 dias) após a primeira administração de
cefepima e podem causar comprometimento do nível de consciência, convulsões
mioclônicas e estado de mal epiléptico não convulsivo, entre outros distúrbios.
Os sintomas neurológicos melhoram naturalmente dentro de 2 a 7 dias após a
interrupção do uso de cefepima. Pacientes com condições neurológicas subjacentes
correm maior risco de encefalopatia induzida por cefepima[6].
Embora ocorra mais frequentemente em paciente com disfunção renal aguda ou crônica,
também pode ocorrer em pacientes com função renal normal.
A neurotoxicidade induzida por
cefepima, foi observada pela primeira vez em 1999 em um paciente com doença
renal crônica dialítica que apresentou alteração do nível de consciência,
mioclonia e convulsão tônico-clônica, mas se recuperou após hemodiálise de
urgência. Cefepima é uma cefalosporina de quarta geração que tem atividade
contra bacilos gram-negativos (como Pseudomona aeruginosa e Klebsiella
pneumoniae) e cocos gram-positivos, incluindo Staphylococcus aureus suscetível
à meticilina e Streptococcus pneumoniae, sendo eficaz contra Enterobacterales
produtoras de beta-lactamase AmpC. A cefepima é frequentemente usada no
tratamento antibiótico de pneumonia, neutropenia febril, infecções do trato
urinário, infecções não complicadas da pele e dos tecidos moles e infecções
intra-abdominais complicadas. É excretada principalmente por via renal. A
neurotoxicidade contempla uma gama de manifestações que vão da encefalopatia (alteração
mental, incluindo confusão, alucinações, estupor e coma), mioclonia, convulsões
e estado de mal epiléptico não convulsivo (EMENC). Acredita-se que a cefepima
iniba o receptor GABA-A. Essa inibição do receptor GABA-A evita o influxo de
íons cloreto no neurônio pós-sináptico e causa um aumento no potencial de ação,
provocando aumento na excitabilidade celular, levando a alterações do estado
mental e convulsões.Em que pese a todos os antibióticos beta-lactâmicos terem
potencial para causar neurotoxicidade; foi demonstrado que a cefepima apresenta
um risco maior. Em um estudo retrospectivo de pacientes tratados com cefepima
ou meropenem, a cefepima apresentou um risco 10 maior de convulsões do que o
meropenem. Existem certos fatores de risco que podem aumentar a probabilidade
de ocorrência de neurotoxicidade por cefepima, incluindo neoplasia maligna hematológica,
doença crítica, idade avançada e disfunção renal, que levam ao aumento da
exposição ao medicamento. O principal fator de risco associado é a disfunção
renal, já que concentrações séricas excessivas de cefepima (>20 mg/L) foram
associadas a efeitos adversos neurotóxicos. Um estudo de coorte retrospectivo
analisou a frequência de neurotoxicidade associada à cefepima em pacientes com
graus variados de disfunção renal. Apenas 4% dos pacientes com TFG > 90
mL/min/1,73m² apresentaram sintomas neurotóxicos, enquanto 54% dos
pacientes com TFGe < 30 mL/min/1,73m² apresentaram sintomas de neurotoxicidade.
Portanto, são necessários ajustes adequados da dose renal para garantir que os
pacientes não acumulem cefepima. Além dos ajustes de dose renal, podem ser
utilizadas estratégias de dosagem para otimizar o tempo acima da concentração
inibitória mínima (CIM), minimizando ao mesmo tempo a exposição diária total ao
medicamento, uma vez que a cefepima é um beta-lactâmico com atividade
bactericida dependente do tempo. Para garantir a eficácia da terapia, a
concentração livre do medicamento deve permanecer acima da concentração
inibitória mínima (fT >CIM) em 70% do tempo. Foi demonstrado que infusões
prolongadas ou infusões contínuas de cefepima otimizam o tempo acima da CIM.
Uma revisão sistemática descobriu que, na mesma dose diária total, a
administração de cefepima como infusões intermitentes prolongadas durante 3 a 4
horas ou infusões contínuas (4 gramas a cada 24 horas) melhora consistentemente
o alcance das metas de PK-PD em comparação com infusões intermitentes
tradicionais durante 30 minutos a cada 12 horas. Se for utilizado um regime
posológico intermitente com um tempo de perfusão curto de 30 minutos, doses
mais pequenas administradas com mais frequência melhorarão o fT >CIM. Um
estudo de coorte retrospectivo de pacientes internados com bacteremia ou
pneumonia por gram-negativo documentada descreveu um regime posológico
alternativo que substituiu doses de 2 gramas a cada 12 horas por 1 grama a cada
6 horas. O regime de dosagem de cefepima de 1 grama a cada 6 horas levou a uma
maior probabilidade de atingir a meta e a um resultado clínico semelhante em
comparação à dosagem tradicional de 2 gramas a cada 12 horas. Diante da
suspeita de neurotoxicidade por cefepima, devem ser realizadas investigações
adicionais para a etiologia, incluindo um eletroencefalograma para avaliar
sintomas neurológicos, se disponível. A terapêutica com cefepima deve ser
descontinuada e deve ser iniciada terapêutica antibiótica alternativa, e uso de
medicamentos antiepilépticos. A hemodiálise deve ser considerada uma opção de
tratamento em pacientes com encefalopatia grave para diminuir rapidamente os
níveis de cefepima no sangue e no líquido cefalorraquidiano e encurtar a
duração da toxicidade do sistema nervoso central. a monitorização dos níveis de
beta-lactâmicos ou Beta-lactam therapeutic drug monitorin (TDM) está sendo
estudado como estratégia para prevenir neurotoxicidade. A farmacocinética da
cefepima é alterada sob certas condições fisiopatológicas, o que pode aumentar
a exposição total à cefepima. O monitoramento terapêutico da cefepima pode ser
benéfico em certos pacientes, incluindo aqueles que estão gravemente doentes,
têm infecções com risco de vida, têm insuficiência renal aguda ou crônica ou
estão infectados com patógenos mais resistentes. Os resultados da análise usando
modelo de regressão logística multivariada de um estudo retrospectivo mostraram
que para cada aumento de 1 mg/L no vale o risco de neurotoxicidade aumentou 33%.
Com base em um modelo de regressão logística ajustado, o estudo descobriu que a
probabilidade de neurotoxicidade era de 25% para concentrações mínimas de
cefepima ≥ 12 mg/L, 50% para concentração de cefepima ≥ 16 mg/L, e nenhum
indivíduo desenvolveu neurotoxicidade em nível mínimo < 7,7. mg/L. Uma
revisão sistemática descobriu que níveis mínimos séricos ou plasmáticos de
cefepima >20 mg/L estão relacionados a maior risco de desenvolvimento de
neurotoxicidade induzida por cefepima, enquanto níveis mínimos abaixo de cerca
de 7 mg/L resultariam em um baixo risco. Entretanto, são necessárias mais
pesquisas sobre os limites de neurotoxicidade e eficácia para utilizar o TDM
com parte da prática diária[7].
ENSAIO CLÍNICO PUBLICADO NO JAMA
Foi publicado na última edição do
JAMA (outubro de 2023) os resultados do ensaio clínico randomizado Antibiotic
Choice on Renal Outcomes (ACORN) que comparou cefepima vs
piperacilina-tazobactam em pacientes adultos para os quais foi escalonada
antibioticoterapia antipseudomonas dentro de 12 horas após admissão na unidade
de emergência (UE) ou da unidade de terapia intensiva (UTI) de um centro médico
acadêmico dos EUA entre 10 de novembro de 2021 e 7 de outubro de 2022 A data final do acompanhamento foi 4 de
novembro de 2022.
Tipo de estudo
Trata-se de um estudo pragmático,
aberto, de grupo paralelo, randomizado, comparativo de segurança entre cefepima
vs piperacilina-tazobactam em pacientes adultos (≥ 18 anos) com suspeita de infecção dentro
das 12 horas de admissão na unidade de emergência (UE) ou unidade de terapia
intensiva (UTI) do Vanderbilt University Medical Center (Nashville, Tennessee, USA).
Foram excluídos pacientes com alergia a cefalosporinas ou penicilinas, pacientes
que receberam > 1 dose de uma cefalosporina ou penicilina antipseudomona dentro do período anterior a 7 dias da randomização (pacientes que receberam
outros antibióticos antipseudomonas eram elegíveis), pacientes encarcerados, ou
aqueles pacientes nos quais o médico responsável pelo tratamento determinou que
1 dos 2 medicamentos representava uma melhor opção de tratamento.
Randomização
Os pacientes foram randomizados de
forma simples e sem estratificação na proporção de 1:1 para cefepima ou
piperacilina-tazobactam. A alocação ao grupo teste foi ocultada apenas até o registro.
Uma ferramenta de apoio à decisão clínica ajudou na escolha e recomendação da dose e frequência com base na taxa de filtração glomerular estimada do paciente. Seguindo o protocolo da instituição, a administração padrão da cefepima EV foi de 2 g durante 5 minutos a cada 8 horas e a piperacilina-tazobactam foi administrada em bolus de ataque de 3,375 g em até 30 minutos seguida de uma infusão prolongada de 3,375 g a cada 8 horas infundida em 4 horas para as doses subsequentes. Cefepima foi a única cefalosporina antipseudomona e piperacilina-tazobactam foi a única penicilina antipseudomona a serem testadas. Os médicos responsáveis pelo tratamento determinaram a duração da terapia antibiótica antipseudomona e se deviam ou não ser administrada terapia combinada com vancomicina ou metronidazol. Nos 7 dias após a inscrição, se o antibiótico assignado era descontinuado ou se iniciava outro antibiótico não atribuído, um alerta automático registrava e gravava a mudança e seu motivo Farmacêuticos clínicos monitoravam remotamente os níveis séricos de vancomicina intravenosa, mas não os antibióticos β-lactâmicos.
Desfechos
1. O desfecho primário foi a ocorrência de estágio mais elevado de LRA ou morte entre a randomização e o dia 14, medido em 5 níveis da escala ordinal. Os estágios da LRA foram definidos usando o critério da creatinina do KDIGO.
- Nível 0: Pacientes sobreviventes que não experimentaram nova ou piora da LRA
- Nível 1: paciente com LRA KDIGO 1 (nível de creatinina 1,5-1,9 vezes o valor basal ou aumento em ≥0,3 mg/dL [≥26,5 μmol/L])
- Nível 2: pacientes com LRA KDIGO 2 (nível de creatinina 2,0-2,9 vezes o nível basal)
- Nível 3: pacientes com LRA KDIGO 3 (nível de creatinina ≥3,0 vezes ou um nível de creatinina ≥4,0mg/dL[≥353,7 μmol/L], ou início de TRS)
- Nível 4: pacientes que faleceram.
O valor do nível basal de creatinina
foi determinado usando valores de creatinina obtidos no ano anterior à
internação, tendo prioridade sobre medições intra-hospitalares obtidas antes da
inscrição. Foi utilizado um valor estimado quando nenhuma medida de
pré-inscrição estava disponível. Para pacientes com LRA no momento da
inscrição, nova LRA foi definida como um nível de creatinina que fosse pelo
menos 0,3 mg/dL maior que o nível de creatinina anterior mais baixo desde a
inscrição. Pacientes que receberam TRS antes da inscrição não podiam
experimentar LRA e receberam valor 0 se sobreviveram e 4 se eles morressem.
Todos os dados foram bloqueados na alta hospitalar.
2. Dois desfechos secundários foram
pré-determinados.
2.1 O primeiro, foi a proporção de
pacientes que sofreram um efeito adverso renal importante no dia 14, definido
por um composto de morte, início de nova TRS ou disfunção renal persistente
(paciente com nível de creatinina final ≥2 vezes o nível basal), e bloqueio na
alta hospitalar ou 14 dias após a inscrição, o que ocorreu primeiro.
2.2 O segundo, foi o
número de dias vivos e livres de delirium e coma dentro de 14 dias, intervalo que
foi definido como o número de dias corridos em que o paciente estava vivo e sem
avaliação positiva pelo CAM-ICU (delirium) ou pontuação RASS de −4 ou −5 (coma)
e bloqueado na alta hospital. Este desfecho foi selecionado para avaliar o
efeito da cefepima no desenvolvimento de disfunção neurológica usando
ferramentas comuns (CAM-ICU e RASS) que avaliam a função neurológica entre adultos
gravemente doentes.
Resultados
- Houve 2.511 pacientes incluídos na análise primária, correspondendo a 1214 no grupo cefepime e 1297 no grupo piperacilina-tazobactam. Pacientes apresentavam uma mediana de 58 anos [IIQ, 43-69 anos]; 42,7% eram mulheres; 16,3% eram negros não hispânicos; 5,4% eram hispânicos; 94,7% foram admitidos na Unidade de Emergência; e 77,2% estavam recebendo vancomicina no momento da inclusão. 6,9% dos pacientes no grupo cefepima e 5,9% do grupo piperacilina-tazobactam apresentavam coma (RASS -4 a -5) 12 horas antes ou 6 horas depois da inclusão. Da mesma forma 5,1% dos pacientes no grupo cefepima e 3,9% do grupo piperacilina-tazobactam apresentavam delirium (CAM-ICU positivo) 12 horas antes ou 6 horas depois da inclusão.
- 93,5% dos pacientes do grupo cefepima e 95,8% do grupo piperacilina-tazobactam foram alocados na Unidade de Emergência (UE). Apenas 6,5% dos pacientes do grupo cefepima e 4,2% do grupo piperacilina-tazobactam corresponderam a pacientes de UTI.
- Um pouco mais da metade de dos pacientes de cada grupo tinham diagnóstico de sepse no momento da inclusão (54,2% no grupo cefepima e 54,3% no grupo piperacilina-tazobactam). Entretanto a mediana do escore de SOFA para ambos os grupos foi de apenas 2 pontos e a mediana do índice de comorbidade de Charlson foi de 4.
- Quase 77% dos pacientes de ambos os grupos receberam vancomicina em associação no dia da inclusão (76,7% no grupo cefepima e 76,9% no grupo piperacilina-tazobactam). A duração média do tratamento com o antibiótico designado foi de apenas 3 dias em ambos os grupos, e aproximadamente 18% dos pacientes em ambos os grupos passaram para o outro antibiótico durante o ensaio.
- No desfecho primário, mais pacientes do grupo piperacilina-tazobactam apresentaram estágio mais elevado de lesão renal aguda (em todos os níveis) ou morte, entretanto essa diferença não foi estatisticamente significativa. No grupo cefepima houve 85 pacientes (n = 1.214; 7,0%) com lesão renal aguda estágio 3 e 92 (7,6%) morreram. Já no grupo piperacilina-tazobactam, houve 97 pacientes (n = 1.297; 7,5 com doença renal aguda estágio 3 e 78 (6,0%) morreram (OR, 0,95 [IC 95%, 0,80 a 1,13], p = 0,56).
- No primeiro desfecho secundário, a incidência de eventos renais adversos importantes no dia 14 não diferiu entre os grupos (124 pacientes [10,2%] no grupo cefepima versus 114 pacientes [8,8%] no grupo piperacilinazobactam; diferença absoluta, 1,4% [IC 95%, -1,0% a 3,8%]).
- No desfecho secundário, a incidência de delirium ou coma foi significativamente (mas modestamente) maior com cefepima do que com piperacilina-tazobactam (20,8% vs. 17,3%); sendo o delírium responsável pela maior parte dessa diferença. Os pacientes do grupo cefepima tiveram menos dias de vida e livres de delírium e coma em 14 dias (média [DP], 11,9 [4,6] dias vs 12,2 [4,3] dias no grupo piperacilina-tazobactam; OR, 0,79 [IC 95%, 0,65 a 0,95]).
- Não foram observadas diferenças significativas entre os grupos no tempo de internação hospitalar ou em dia recebendo vasopressores ou ventilação mecânica.
Limitações
Os autores reconhecem várias
limitações do estudo.
- Primeiro, trata-se de um ensaio de centro único, o que pode limitar a generalização.
- Segundo, não foi cegado, o que pode ter afetado avaliações clínicas, como RASS e CAM-ICU, ou a frequência de medições laboratoriais, como creatinina, embora o número de avaliações clínicas e laboratoriais pareça ser semelhante entre os grupos. O desenho aberto pode ter influenciado o limiar dos médicos para reconhecer sinais de delirium no grupo cefepima.
- Terceiro, quase 1 em cada 5 pacientes em cada grupo recebeu pelo menos 1 dose do antibiótico não prescrito nos primeiros 14 dias, o que diminui a separação entre os grupos e aumenta o risco de não conseguir detectar uma verdadeira diferença entre os grupos nos resultados (erro tipo II).
- Quarto, a medida de creatinina antes da doença não estava disponível para todos os pacientes, embora o nível de creatinina estivesse disponível antes ou no momento da inscrição para 99% dos pacientes e os resultados fossem semelhantes nas análises restritas aos pacientes com medidas disponíveis.
- Quinto, a avaliação dos resultados foi bloqueada na alta hospitalar como parte do protocolo do estudo.
- Sexto, os pacientes do estudo receberam em média apenas 3 dias de tratamento com cefepime ou piperacilina-tazobactam; no entanto, os resultados foram semelhantes entre os 1.798 pacientes.
- Sétimo, o estudo coletou dados sobre delírio e coma, mas não sobre outros tipos de disfunção neurológica que possam ser atribuídos à cefepima, como agitação, mioclonia e convulsões.
- Oitavo, ao contrário de outros ensaios que avaliaram o efeito de 1 tratamento em um único resultado de eficácia, o ACORN comparou 2 tratamentos em relação a 2 resultados de segurança (lesão renal e disfunção neurológica), o que pode aumentar o risco de erro do tipo I, mas para o qual falta orientação sobre como lidar com a multiplicidade.
- Nono, no cenário deste ensaio, piperacilina-tazobactam foi administrada como uma infusão prolongada. Esses resultados podem ser menos informativos em contextos que usam uma abordagem diferente.
Entretanto, dos dados apresentados no
estudo podemos observar que a maioria dos pacientes pertencem a ambiente de
unidade de emergência, sendo poucos pacientes de UTI, o que pode limitar a
extrapolação de resultados para esse cenário onde cefepima e
piperacilina-tazobactam também são bastante usados. Ademais, o escore de SOFA
revela que em ambos os grupos eram paciente com poucas disfunções orgânicas, o
que limitaria a extrapolação de resultados em pacientes mais graves, com
escores de SOFA mais elevados. Apesar que a avaliação da neurotoxicidade farmacológica
foi avaliada pelo número de dias livres de delirium e/ou coma, houve pacientes
alocados já com essa patologia presente, o que poderiam alterar os resultados
finais.
REFLEXÕES FINAIS
Apesar das limitações descritas, este
ensaio clínico randomizado analisado em conjunto com a demais evidências
apontadas, nos traz informações importantes que são úteis para a escolha da
terapia antibiótica com cefepima ou piperacilina-tazobactam.
Primeiro que, tendo sido a duração
média do tratamento de apenas 3 dias em ambos os grupos, e sendo que
aproximadamente 18% dos pacientes em ambos os grupos passaram para o outro
antibiótico durante o ensaio, é possível concluir que que qualquer um dos
antibióticos continua a ser uma escolha aceitável para os pacientes.
Quanto a nefrotoxicidade induzida
pela piperacilina-tazobactam, apesar que mais pacientes do grupo piperacilina-tazobactam
apresentaram estágio mais elevado de lesão renal aguda (em todos os níveis) ou
morte, entretanto essa diferença não foi estatisticamente significativa, o que
nos levar a concluir que não houve aumentou a incidência de lesão renal aguda
ou morte com piperacilina-tazobactam. De
fato, esta conclusão pode nos dar alguma tranquilidade para a escolha da piperacilina-tazobactam
para as infecções por germes suscetíveis, principalmente pseudomona-aeruginosa.
Entretanto, até que novas evidências robustas surjam, se faz necessário
monitorar a função renal durante o tratamento, principalmente quando associada
a vancomicina cuja nefrotoxicidade já restou comprovada. Na análise de risco-benefício
acredito que a balança ainda se inclina para continuar usando
piperacilina-tazobactam, mas com monitorização da função renal.
Quanto a neurotoxicidade induzida
pelo cefepima, o
estudo mostrou maior disfunção neurológica em comparação com piperacilina-tazobactam,
embora a diferença tenha sido com moderada significância estatística. De qualquer
forma, o resultado vá ao encontro com as demais evidências até agora
publicadas, inclusive vem a dar força ao alerta que a própria bula do
medicamente traz. Sendo assim, é razoável concluir que, até onde for possível,
cefepima deva ser evitada em pacientes com disfunção neurológica previa ou nova,
como no caso dos pacientes com sepse que se apresentam com algum grau de encefalopatia
séptica. Substituir cefepima por antibióticos como por exemplo, os carbapenêmicos,
poderá ser uma alternativa a ser considerada, mas essa decisão deverá ser analisada
à luz dos riscos da geração de resistência antimicrobiana. Da mesma forma, deveria
ser evitada em pacientes com lesão renal aguda ou crônica em razão dos seu
acúmulo e eventual neurotoxicidade. Aguarda-se que novas evidências surjam a
respeito de monitorar níveis séricos de cefepima dentro de faixas terapêuticas
seguras, principalmente em pacientes de UTI. Isso permitira usar com segurança
em pacientes com disfunção neurológica e/ou renal nos quais não se disponha de alternativas
terapêuticas a cefepime.
[1] Qian ET, Casey JD, Wright A,
Wang L, Shotwell MS, Siemann JK, Dear ML, Stollings JL, Lloyd BD, Marvi TK,
Seitz KP, Nelson GE, Wright PW, Siew ED, Dennis BM, Wrenn JO, Andereck JW, Han
JH, Self WH, Semler MW, Rice TW; Vanderbilt Center for Learning Healthcare and
the Pragmatic Critical Care Research Group. Cefepime vs Piperacillin-Tazobactam
in Adults Hospitalized With Acute Infection: The ACORN Randomized Clinical
Trial. JAMA. 2023 Oct 24;330(16):1557-1567. doi: 10.1001/jama.2023.20583.
[2] Bryan D. Hayes, PharmD,
DABAT, FAACT, FASHP. Leadership Team, ALiEM. Associate Professor of EM, Division of Medical
Toxicology, Harvard Medical School. Piperacillin/Tazobactam and Risk of Acute
Kidney Injury with Vancomycin. Acessível em: https://www.aliem.com/piperacillin-tazobactam-acute-kidney-injury/
[3] Is piperacillin-tazobactam
nephrotoxic? Josh Farkas. Associate professor of Pulmonary and Critical Care
Medicine at the University of Vermont. Josh is the creator of PulmCrit.org.
Acessível em: https://emcrit.org/pulmcrit/piperacillin-tazobactam-nephrotoxic/
[4] Chen AY, Deng CY,
Calvachi-Prieto P, Armengol de la Hoz MÁ, Khazi-Syed A, Chen C, Scurlock C,
Becker CD, Johnson AEW, Celi LA, Dagan A. A Large-Scale Multicenter
Retrospective Study on Nephrotoxicity Associated With Empiric Broad-Spectrum
Antibiotics in Critically Ill Patients. Chest. 2023 Aug;164(2):355-368. doi:
10.1016/j.chest.2023.03.046. Epub 2023 Apr 9.
[5] Yang J, Ko YS, Lee HY, Fang
Y, Oh SW, Kim MG, Cho WY, Jo SK. Mechanisms of Piperacillin/Tazobactam
Nephrotoxicity: Piperacillin/Tazobactam-Induced Direct Tubular Damage in Mice. Antibiotics
(Basel). Published online 2023 Jun 28;12(7):1121.
[6] Kenzaka T, Matsumoto M.
Cefepime-induced encephalopathy. BMJ Case Rep. 2018 Feb 21;2018:bcr2017223954.
doi: 10.1136/bcr-2017-223954. PMID: 29467125; PMCID: PMC5847961.
[7] Zachary Van Roy, Xiaotong
Zhang and Kaycee Bartels. Cefepime Neurotoxicity. published may 10, 2023. Acessível
em: https://blog.unmc.edu/infectious-disease/2023/05/10/pharmtoexamtable-cefepime-neurotoxicity/#:~:text=%E2%80%93%20Cefepime%2Dinduced%20neurotoxicity%20(CIN,setting%20of%20impaired%20renal%20function.
Nenhum comentário:
Postar um comentário