domingo, 5 de novembro de 2023

 NEFROTOXICIDADE POR PIPERACILINA-TAZOBACTAM E NEUROTOXICIDADE POR CEFEPIMA: MITO OU REALIDADE?


Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico intensivista. Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.



Recente ensaio clínico de Qian ET e col. (ESTUDO ACORN), publicado no JAMA “bota mais lenha na fogueira” a respeito da nefrotoxicidade associada a uso piperacilina-tazobactam e da neurotoxicidade associada a uso de cefepima[1].


Cefepima (CEF) e Piperacilina-tazobactam (PT) são 2 antibióticos muito usados para tratamento de infecções graves em pacientes hospitalizados dentro e fora da UTI, com ou sem sepse.  

Entretanto, existem reportes nos quais se alerta sobre o risco de nefrotoxicidade induzida por piperacilina-tazobactam podendo causar lesão renal aguda (LRA) principalmente quando associada a vancomicina; e sobre o risco de neurotoxicidade induzida por cefepima (encefalopatia induzida por cefepima) que pode ir desde a agitação até o estado de delirium e coma.

Entretanto, a questão tem sido motivo de debate pela comunidade científica à luz dos estudos publicados, gerando controvérsias e angústia, diante da necessidade de evitar ou restringir se uso num contexto de carência de alternativas terapêuticas contra infecções graves ameaçadora da vida.

Façamos então uma reflexão à luz do contexto atual das evidências.


NEFROTOXICIDADE INDUZIDA POR PIPERACILINA-TAZOBACTAM.

Tem sido relatada nefrotoxicidade induzida por PT; no entanto, sua certeza é ainda motivo de debate e os mecanismos subjacentes permanecem desconhecidos.

Bryan D. Hayes, faz uma interessante revisão sobre o assunto e elenca algumas razões pelas quais a PT não seria sua primeira escolha como antibiótico de amplo espectro contra micro-organismos gram-negativos na emergência. Primeiro, porque na sua instituição, as suscetibilidades da pseudomona aeruginosa à PT são inferiores às da cefepima. Em segundo lugar, a PT não tem grande penetração no SNC, especialmente em comparação com a ceftriaxona, a cefepima ou mesmo o meropenem. Terceiro, porque sendo a PT ótima para o tratamento empírico de infecções intra-abdominais e graves do pé diabético, pode não ser necessária para pneumonia adquirida no hospital (PAH). Quarto, porque com sua dosagem frequente (a cada 6 horas), muitas vezes a segunda dose é esquecida se o paciente ainda estiver internado no pronto-socorro. Hayes analisa estudos retrospectivos, prospectivos e metanálises publicadas. Houve 12 grupos diferentes com pacientes de medicina interna, pediátricos e de UTI (incluindo um estudo prospectivo) demonstrando efeito adverso. Três metanálises, com 963 pacientes, 3.528 pacientes e 3.549 pacientes, chegaram à mesma conclusão. O estudo prospectivo apoia a associação, mesmo com os níveis mínimos de vancomicina iguais em cada grupo. Especificamente em pacientes de UTI, refere que os resultados têm sido conflitantes. Todos os três estudos em UTI relataram uma alta taxa de LRA com vancomicina + PT (21,2-40,5%). Dois dos estudos na UTI mostraram uma taxa significativamente maior no grupo combinado em comparação com a vancomicina isoladamente; mas o outro não demonstrou diferença quando a PT foi substituída por cefepima. Por tanto, conclui ser necessário estudos prospectivos em pacientes de UTI. Quanto aos mecanismos propostos para LRA induzida por PT refere a nefrite intersticial aguda (NIA) ou efeitos tóxicos diretos no túbulo renal (NTA). Poderia ser um efeito aditivo da NIA e da NTA. Alguns sugeriram uma diminuição da depuração da vancomicina pela PT, resultando no acúmulo de vancomicina; no entanto, o único estudo prospectivo não relatou nenhuma diferença nos níveis médios de vancomicina entre os dois grupos. Refere ainda um estudo que aponta 4 fatores de risco independentes para LRA com a associação vancomicina + PT: infecção Gram-positiva documentada, presença de sepse, recebimento de uma dose de ataque de vancomicina e recebimento de qualquer outra substância nefrotóxica concomitante[2].

Josh Farkas, publica um post interessante em que aborda a questão analisando uma aparente contradição e celeuma em torno da PT ser protetora (“maverick”) ou prejudicial (“gosse”) em relação a LRA. Levanta o conceito de “pseudonefrotoxicidade” da PT – aumento da creatinina sérica, sem comprometimento da função renal ou lesão renal verdadeira. Piperacilina-tazobactam pode aumentar a creatinina sérica devido à redução na secreção tubular de creatinina, causada pela inibição do transportador de ânions orgânicos. Isto causaria “pseudonefrotoxicidade”. Cita um estudo (Jensen 2012) no qual os autores analisaram cuidadosamente os níveis diários de creatinina durante o uso e após a descontinuação de vários antibióticos. A maioria dos pacientes apresentou lesão renal aguda devido à sepse, que melhorou durante o tratamento. No entanto, os pacientes tratados com PT exibiram melhora retardada na creatinina durante a terapia antibiótica, em comparação com pacientes tratados com meropenem. Após a descontinuação dos antibióticos, os pacientes do grupo PT apresentaram uma rápida melhora na função renal em poucos dias. Em contraste, os pacientes tratados com outros antibióticos (incluindo meropenem) não tiveram alterações na creatinina após a interrupção dos antibióticos. Vários estudos em animais descobriram que a piperacilina exerce efeitos nefroprotetores. Especificamente, a adição de piperacilina a medicamentos nefrotóxicos (por exemplo, amicacina, gentamicina, netilimicina, cisplatina) causa redução da lesão renal. Um estudo encontrou um efeito semelhante em humanos: a piperacilina mais amicacina causou menos lesões renais do que a amicacina sozinha. O mecanismo subjacente a isto parece ser que a piperacilina demonstrou inibir competitivamente o sistema de transporte de aniões orgânicos, de uma forma semelhante à probenecida. O bloqueio desse transportador pode reduzir a entrada de drogas nefrotóxicas nos túbulos proximais. A menor concentração de nefrotoxina nos túbulos protege o rim de danos (efeito nefroprotetor). Portanto, a PT pode aumentar a creatinina sérica devido à redução da secreção de creatinina através do sistema de transporte de ânions orgânicos. Este fenómeno de “pseudonefrotoxicidade” parece ser uma propriedade comum de medicamentos que inibem este sistema (por exemplo, probenecida e trimetoprim). No entanto, esta elevação da creatinina pode não refletir uma verdadeira redução da função renal ou danos renais reais. Na presença de algumas nefrotoxinas (por exemplo, aminoglicosídeos), isto pode até exercer um efeito nefroprotetor. Ainda, alguns estudos mostram que, muito embora a PT está associada a um aumento da creatinina, também está associada a uma tendência para menos diálise. Assim, as elevações da creatinina devido à PT podem não ser clinicamente relevantes[3].

Mais recentemente em abril de 2023, um estudo retrospectivo de Chen AY e col., publicado no CHEST, avaliou o risco de desenvolver lesão renal aguda (LRA) em pacientes que receberam de forma exclusiva associação de vancomicina e piperacilina-tazobactam (VPT), vancomicina e cefepima (VC) ou vancomicina e meropenem (VM). Os resultados indicaram que a combinação de vancomicina e piperacilina-tazobactam foi associada a um maior risco de LRA e início de diálise quando comparada com vancomicina e cefepima e vancomicina e meropenem. O estudo recomenda que os médicos devem considerar vancomicina e meropenem ou vancomicina e cefepima para reduzir o risco de nefrotoxicidade em pacientes na UTI[4].

Uma publicação de julho de 2023 de Yang J. e col., mostra resultados de estudo in vitro realizado em camundongos nos quais se evidencia nefrotoxicidade da PT através de dano mitocondrial por perda de potencial de membrana mitocondrial e parece exercer nefrotoxicidade direta, que está associada ao estresse oxidativo e ao dano mitocondrial nas células tubulares renais[5].


NEUROTOXICIDADE INDUZIDA POR CEFEPIME.

A neurotoxicicidade induzida por cefepima é hoje menos controversa que a nefrotoxicidade induzida por piperacilina-tazobactam e é melhor aceita como realidade pela comunidade científica.

A neurotoxicidade induzida por cefepima ocorre supostamente em aproximadamente 3% dos pacientes que usam cefepima. Os sintomas de encefalopatia induzida por cefepima surgem aproximadamente 1 a 10 dias (média: 5 dias) após a primeira administração de cefepima e podem causar comprometimento do nível de consciência, convulsões mioclônicas e estado de mal epiléptico não convulsivo, entre outros distúrbios. Os sintomas neurológicos melhoram naturalmente dentro de 2 a 7 dias após a interrupção do uso de cefepima. Pacientes com condições neurológicas subjacentes correm maior risco de encefalopatia induzida por cefepima[6]. Embora ocorra mais frequentemente em paciente com disfunção renal aguda ou crônica, também pode ocorrer em pacientes com função renal normal.

A neurotoxicidade induzida por cefepima, foi observada pela primeira vez em 1999 em um paciente com doença renal crônica dialítica que apresentou alteração do nível de consciência, mioclonia e convulsão tônico-clônica, mas se recuperou após hemodiálise de urgência. Cefepima é uma cefalosporina de quarta geração que tem atividade contra bacilos gram-negativos (como Pseudomona aeruginosa e Klebsiella pneumoniae) e cocos gram-positivos, incluindo Staphylococcus aureus suscetível à meticilina e Streptococcus pneumoniae, sendo eficaz contra Enterobacterales produtoras de beta-lactamase AmpC. A cefepima é frequentemente usada no tratamento antibiótico de pneumonia, neutropenia febril, infecções do trato urinário, infecções não complicadas da pele e dos tecidos moles e infecções intra-abdominais complicadas. É excretada principalmente por via renal. A neurotoxicidade contempla uma gama de manifestações que vão da encefalopatia (alteração mental, incluindo confusão, alucinações, estupor e coma), mioclonia, convulsões e estado de mal epiléptico não convulsivo (EMENC). Acredita-se que a cefepima iniba o receptor GABA-A. Essa inibição do receptor GABA-A evita o influxo de íons cloreto no neurônio pós-sináptico e causa um aumento no potencial de ação, provocando aumento na excitabilidade celular, levando a alterações do estado mental e convulsões.Em que pese a todos os antibióticos beta-lactâmicos terem potencial para causar neurotoxicidade; foi demonstrado que a cefepima apresenta um risco maior. Em um estudo retrospectivo de pacientes tratados com cefepima ou meropenem, a cefepima apresentou um risco 10 maior de convulsões do que o meropenem. Existem certos fatores de risco que podem aumentar a probabilidade de ocorrência de neurotoxicidade por cefepima, incluindo neoplasia maligna hematológica, doença crítica, idade avançada e disfunção renal, que levam ao aumento da exposição ao medicamento. O principal fator de risco associado é a disfunção renal, já que concentrações séricas excessivas de cefepima (>20 mg/L) foram associadas a efeitos adversos neurotóxicos. Um estudo de coorte retrospectivo analisou a frequência de neurotoxicidade associada à cefepima em pacientes com graus variados de disfunção renal. Apenas 4% dos pacientes com TFG > 90 mL/min/1,73m² apresentaram sintomas neurotóxicos, enquanto 54% dos pacientes com TFGe < 30 mL/min/1,73m² apresentaram sintomas de neurotoxicidade. Portanto, são necessários ajustes adequados da dose renal para garantir que os pacientes não acumulem cefepima. Além dos ajustes de dose renal, podem ser utilizadas estratégias de dosagem para otimizar o tempo acima da concentração inibitória mínima (CIM), minimizando ao mesmo tempo a exposição diária total ao medicamento, uma vez que a cefepima é um beta-lactâmico com atividade bactericida dependente do tempo. Para garantir a eficácia da terapia, a concentração livre do medicamento deve permanecer acima da concentração inibitória mínima (fT >CIM) em 70% do tempo. Foi demonstrado que infusões prolongadas ou infusões contínuas de cefepima otimizam o tempo acima da CIM. Uma revisão sistemática descobriu que, na mesma dose diária total, a administração de cefepima como infusões intermitentes prolongadas durante 3 a 4 horas ou infusões contínuas (4 gramas a cada 24 horas) melhora consistentemente o alcance das metas de PK-PD em comparação com infusões intermitentes tradicionais durante 30 minutos a cada 12 horas. Se for utilizado um regime posológico intermitente com um tempo de perfusão curto de 30 minutos, doses mais pequenas administradas com mais frequência melhorarão o fT >CIM. Um estudo de coorte retrospectivo de pacientes internados com bacteremia ou pneumonia por gram-negativo documentada descreveu um regime posológico alternativo que substituiu doses de 2 gramas a cada 12 horas por 1 grama a cada 6 horas. O regime de dosagem de cefepima de 1 grama a cada 6 horas levou a uma maior probabilidade de atingir a meta e a um resultado clínico semelhante em comparação à dosagem tradicional de 2 gramas a cada 12 horas. Diante da suspeita de neurotoxicidade por cefepima, devem ser realizadas investigações adicionais para a etiologia, incluindo um eletroencefalograma para avaliar sintomas neurológicos, se disponível. A terapêutica com cefepima deve ser descontinuada e deve ser iniciada terapêutica antibiótica alternativa, e uso de medicamentos antiepilépticos. A hemodiálise deve ser considerada uma opção de tratamento em pacientes com encefalopatia grave para diminuir rapidamente os níveis de cefepima no sangue e no líquido cefalorraquidiano e encurtar a duração da toxicidade do sistema nervoso central. a monitorização dos níveis de beta-lactâmicos ou Beta-lactam therapeutic drug monitorin (TDM) está sendo estudado como estratégia para prevenir neurotoxicidade. A farmacocinética da cefepima é alterada sob certas condições fisiopatológicas, o que pode aumentar a exposição total à cefepima. O monitoramento terapêutico da cefepima pode ser benéfico em certos pacientes, incluindo aqueles que estão gravemente doentes, têm infecções com risco de vida, têm insuficiência renal aguda ou crônica ou estão infectados com patógenos mais resistentes. Os resultados da análise usando modelo de regressão logística multivariada de um estudo retrospectivo mostraram que para cada aumento de 1 mg/L no vale o risco de neurotoxicidade aumentou 33%. Com base em um modelo de regressão logística ajustado, o estudo descobriu que a probabilidade de neurotoxicidade era de 25% para concentrações mínimas de cefepima ≥ 12 mg/L, 50% para concentração de cefepima ≥ 16 mg/L, e nenhum indivíduo desenvolveu neurotoxicidade em nível mínimo < 7,7. mg/L. Uma revisão sistemática descobriu que níveis mínimos séricos ou plasmáticos de cefepima >20 mg/L estão relacionados a maior risco de desenvolvimento de neurotoxicidade induzida por cefepima, enquanto níveis mínimos abaixo de cerca de 7 mg/L resultariam em um baixo risco. Entretanto, são necessárias mais pesquisas sobre os limites de neurotoxicidade e eficácia para utilizar o TDM com parte da prática diária[7].

 

ENSAIO CLÍNICO PUBLICADO NO JAMA

Foi publicado na última edição do JAMA (outubro de 2023) os resultados do ensaio clínico randomizado Antibiotic Choice on Renal Outcomes (ACORN) que comparou cefepima vs piperacilina-tazobactam em pacientes adultos para os quais foi escalonada antibioticoterapia antipseudomonas dentro de 12 horas após admissão na unidade de emergência (UE) ou da unidade de terapia intensiva (UTI) de um centro médico acadêmico dos EUA entre 10 de novembro de 2021 e 7 de outubro de 2022  A data final do acompanhamento foi 4 de novembro de 2022.

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo pragmático, aberto, de grupo paralelo, randomizado, comparativo de segurança entre cefepima vs piperacilina-tazobactam em pacientes adultos ( 18 anos) com suspeita de infecção dentro das 12 horas de admissão na unidade de emergência (UE) ou unidade de terapia intensiva (UTI) do Vanderbilt University Medical Center (Nashville, Tennessee, USA). Foram excluídos pacientes com alergia a cefalosporinas ou penicilinas, pacientes que receberam > 1 dose de uma cefalosporina ou penicilina antipseudomona dentro do período anterior a 7 dias da randomização (pacientes que receberam outros antibióticos antipseudomonas eram elegíveis), pacientes encarcerados, ou aqueles pacientes nos quais o médico responsável pelo tratamento determinou que 1 dos 2 medicamentos representava uma melhor opção de tratamento.

Randomização

Os pacientes foram randomizados de forma simples e sem estratificação na proporção de 1:1 para cefepima ou piperacilina-tazobactam. A alocação ao grupo teste foi ocultada apenas até o registro.

Uma ferramenta de apoio à decisão clínica ajudou na escolha e recomendação da dose e frequência com base na taxa de filtração glomerular estimada do paciente. Seguindo o protocolo da instituição, a administração padrão da cefepima EV foi de 2 g durante 5 minutos a cada 8 horas e a piperacilina-tazobactam foi administrada em bolus de ataque de 3,375 g em até 30 minutos seguida de uma infusão prolongada de 3,375 g a cada 8 horas infundida em 4 horas para as doses subsequentes. Cefepima foi a única cefalosporina antipseudomona e piperacilina-tazobactam foi a única penicilina antipseudomona a serem testadas. Os médicos responsáveis pelo tratamento determinaram a duração da terapia antibiótica antipseudomona e se deviam ou não ser administrada terapia combinada com vancomicina ou metronidazol. Nos 7 dias após a inscrição, se o antibiótico assignado era descontinuado ou se iniciava outro antibiótico não atribuído, um alerta automático registrava e gravava a mudança e seu motivo Farmacêuticos clínicos monitoravam remotamente os níveis séricos de vancomicina intravenosa, mas não os antibióticos β-lactâmicos.

Desfechos

1. O desfecho primário foi a ocorrência de estágio mais elevado de LRA ou morte entre a randomização e o dia 14, medido em 5 níveis da escala ordinal. Os estágios da LRA foram definidos usando o critério da creatinina do KDIGO.

  • Nível 0: Pacientes sobreviventes que não experimentaram nova ou piora da LRA
  • Nível 1: paciente com LRA KDIGO 1 (nível de creatinina 1,5-1,9 vezes o valor basal ou aumento em ≥0,3 mg/dL [≥26,5 μmol/L])
  • Nível 2: pacientes com LRA KDIGO 2 (nível de creatinina 2,0-2,9 vezes o nível basal)
  • Nível 3: pacientes com LRA KDIGO 3 (nível de creatinina ≥3,0 vezes ou um nível de creatinina ≥4,0mg/dL[≥353,7 μmol/L], ou início de TRS)
  • Nível 4: pacientes que faleceram.

O valor do nível basal de creatinina foi determinado usando valores de creatinina obtidos no ano anterior à internação, tendo prioridade sobre medições intra-hospitalares obtidas antes da inscrição. Foi utilizado um valor estimado quando nenhuma medida de pré-inscrição estava disponível. Para pacientes com LRA no momento da inscrição, nova LRA foi definida como um nível de creatinina que fosse pelo menos 0,3 mg/dL maior que o nível de creatinina anterior mais baixo desde a inscrição. Pacientes que receberam TRS antes da inscrição não podiam experimentar LRA e receberam valor 0 se sobreviveram e 4 se eles morressem. Todos os dados foram bloqueados na alta hospitalar.

2. Dois desfechos secundários foram pré-determinados.

2.1 O primeiro, foi a proporção de pacientes que sofreram um efeito adverso renal importante no dia 14, definido por um composto de morte, início de nova TRS ou disfunção renal persistente (paciente com nível de creatinina final ≥2 vezes o nível basal), e bloqueio na alta hospitalar ou 14 dias após a inscrição, o que ocorreu primeiro.

2.2 O segundo, foi o número de dias vivos e livres de delirium e coma dentro de 14 dias, intervalo que foi definido como o número de dias corridos em que o paciente estava vivo e sem avaliação positiva pelo CAM-ICU (delirium) ou pontuação RASS de −4 ou −5 (coma) e bloqueado na alta hospital. Este desfecho foi selecionado para avaliar o efeito da cefepima no desenvolvimento de disfunção neurológica usando ferramentas comuns (CAM-ICU e RASS) que avaliam a função neurológica entre adultos gravemente doentes.

Resultados

  • Houve 2.511 pacientes incluídos na análise primária, correspondendo a 1214 no grupo cefepime e 1297 no grupo piperacilina-tazobactam. Pacientes apresentavam uma mediana de 58 anos [IIQ, 43-69 anos]; 42,7% eram mulheres; 16,3% eram negros não hispânicos; 5,4% eram hispânicos; 94,7% foram admitidos na Unidade de Emergência; e 77,2% estavam recebendo vancomicina no momento da inclusão. 6,9% dos pacientes no grupo cefepima e 5,9% do grupo piperacilina-tazobactam apresentavam coma (RASS -4 a -5) 12 horas antes ou 6 horas depois da inclusão. Da mesma forma 5,1% dos pacientes no grupo cefepima e 3,9% do grupo piperacilina-tazobactam apresentavam delirium (CAM-ICU positivo) 12 horas antes ou 6 horas depois da inclusão.
  • 93,5% dos pacientes do grupo cefepima e 95,8% do grupo piperacilina-tazobactam foram alocados na Unidade de Emergência (UE). Apenas 6,5% dos pacientes do grupo cefepima e 4,2% do grupo piperacilina-tazobactam corresponderam a pacientes de UTI.
  • Um pouco mais da metade de dos pacientes de cada grupo tinham diagnóstico de sepse no momento da inclusão (54,2% no grupo cefepima e 54,3% no grupo piperacilina-tazobactam). Entretanto a mediana do escore de SOFA para ambos os grupos foi de apenas 2 pontos e a mediana do índice de comorbidade de Charlson foi de 4.
  • Quase 77% dos pacientes de ambos os grupos receberam vancomicina em associação no dia da inclusão (76,7% no grupo cefepima e 76,9% no grupo piperacilina-tazobactam). A duração média do tratamento com o antibiótico designado foi de apenas 3 dias em ambos os grupos, e aproximadamente 18% dos pacientes em ambos os grupos passaram para o outro antibiótico durante o ensaio.


  • No desfecho primário, mais pacientes do grupo piperacilina-tazobactam apresentaram estágio mais elevado de lesão renal aguda (em todos os níveis) ou morte, entretanto essa diferença não foi estatisticamente significativa. No grupo cefepima houve 85 pacientes (n = 1.214; 7,0%) com lesão renal aguda estágio 3 e 92 (7,6%) morreram. Já no grupo piperacilina-tazobactam, houve 97 pacientes (n = 1.297; 7,5 com doença renal aguda estágio 3 e 78 (6,0%) morreram (OR, 0,95 [IC 95%, 0,80 a 1,13], p = 0,56). 
  • No primeiro desfecho secundário, a incidência de eventos renais adversos importantes no dia 14 não diferiu entre os grupos (124 pacientes [10,2%] no grupo cefepima versus 114 pacientes [8,8%] no grupo piperacilinazobactam; diferença absoluta, 1,4% [IC 95%, -1,0% a 3,8%]).
  • No desfecho secundário, a incidência de delirium ou coma foi significativamente (mas modestamente) maior com cefepima do que com piperacilina-tazobactam (20,8% vs. 17,3%); sendo o delírium responsável pela maior parte dessa diferença. Os pacientes do grupo cefepima tiveram menos dias de vida e livres de delírium e coma em 14 dias (média [DP], 11,9 [4,6] dias vs 12,2 [4,3] dias no grupo piperacilina-tazobactam; OR, 0,79 [IC 95%, 0,65 a 0,95]). 
  • Não foram observadas diferenças significativas entre os grupos no tempo de internação hospitalar ou em dia recebendo vasopressores ou ventilação mecânica.



Limitações

Os autores reconhecem várias limitações do estudo.

  • Primeiro, trata-se de um ensaio de centro único, o que pode limitar a generalização.  
  • Segundo, não foi cegado, o que pode ter afetado avaliações clínicas, como RASS e CAM-ICU, ou a frequência de medições laboratoriais, como creatinina, embora o número de avaliações clínicas e laboratoriais pareça ser semelhante entre os grupos. O desenho aberto pode ter influenciado o limiar dos médicos para reconhecer sinais de delirium no grupo cefepima.
  • Terceiro, quase 1 em cada 5 pacientes em cada grupo recebeu pelo menos 1 dose do antibiótico não prescrito nos primeiros 14 dias, o que diminui a separação entre os grupos e aumenta o risco de não conseguir detectar uma verdadeira diferença entre os grupos nos resultados (erro tipo II).
  • Quarto, a medida de creatinina antes da doença não estava disponível para todos os pacientes, embora o nível de creatinina estivesse disponível antes ou no momento da inscrição para 99% dos pacientes e os resultados fossem semelhantes nas análises restritas aos pacientes com medidas disponíveis.
  • Quinto, a avaliação dos resultados foi bloqueada na alta hospitalar como parte do protocolo do estudo.
  • Sexto, os pacientes do estudo receberam em média apenas 3 dias de tratamento com cefepime ou piperacilina-tazobactam; no entanto, os resultados foram semelhantes entre os 1.798 pacientes.
  • Sétimo, o estudo coletou dados sobre delírio e coma, mas não sobre outros tipos de disfunção neurológica que possam ser atribuídos à cefepima, como agitação, mioclonia e convulsões. 
  • Oitavo, ao contrário de outros ensaios que avaliaram o efeito de 1 tratamento em um único resultado de eficácia, o ACORN comparou 2 tratamentos em relação a 2 resultados de segurança (lesão renal e disfunção neurológica), o que pode aumentar o risco de erro do tipo I, mas para o qual falta orientação sobre como lidar com a multiplicidade.
  • Nono, no cenário deste ensaio, piperacilina-tazobactam foi administrada como uma infusão prolongada. Esses resultados podem ser menos informativos em contextos que usam uma abordagem diferente. 

Entretanto, dos dados apresentados no estudo podemos observar que a maioria dos pacientes pertencem a ambiente de unidade de emergência, sendo poucos pacientes de UTI, o que pode limitar a extrapolação de resultados para esse cenário onde cefepima e piperacilina-tazobactam também são bastante usados. Ademais, o escore de SOFA revela que em ambos os grupos eram paciente com poucas disfunções orgânicas, o que limitaria a extrapolação de resultados em pacientes mais graves, com escores de SOFA mais elevados. Apesar que a avaliação da neurotoxicidade farmacológica foi avaliada pelo número de dias livres de delirium e/ou coma, houve pacientes alocados já com essa patologia presente, o que poderiam alterar os resultados finais.

 

REFLEXÕES FINAIS

 

Apesar das limitações descritas, este ensaio clínico randomizado analisado em conjunto com a demais evidências apontadas, nos traz informações importantes que são úteis para a escolha da terapia antibiótica com cefepima ou piperacilina-tazobactam.

Primeiro que, tendo sido a duração média do tratamento de apenas 3 dias em ambos os grupos, e sendo que aproximadamente 18% dos pacientes em ambos os grupos passaram para o outro antibiótico durante o ensaio, é possível concluir que que qualquer um dos antibióticos continua a ser uma escolha aceitável para os pacientes.

Quanto a nefrotoxicidade induzida pela piperacilina-tazobactam, apesar que mais pacientes do grupo piperacilina-tazobactam apresentaram estágio mais elevado de lesão renal aguda (em todos os níveis) ou morte, entretanto essa diferença não foi estatisticamente significativa, o que nos levar a concluir que não houve aumentou a incidência de lesão renal aguda ou morte com piperacilina-tazobactam.  De fato, esta conclusão pode nos dar alguma tranquilidade para a escolha da piperacilina-tazobactam para as infecções por germes suscetíveis, principalmente pseudomona-aeruginosa. Entretanto, até que novas evidências robustas surjam, se faz necessário monitorar a função renal durante o tratamento, principalmente quando associada a vancomicina cuja nefrotoxicidade já restou comprovada. Na análise de risco-benefício acredito que a balança ainda se inclina para continuar usando piperacilina-tazobactam, mas com monitorização da função renal.

Quanto a neurotoxicidade induzida pelo cefepima, o estudo mostrou maior disfunção neurológica em comparação com piperacilina-tazobactam, embora a diferença tenha sido com moderada significância estatística. De qualquer forma, o resultado vá ao encontro com as demais evidências até agora publicadas, inclusive vem a dar força ao alerta que a própria bula do medicamente traz. Sendo assim, é razoável concluir que, até onde for possível, cefepima deva ser evitada em pacientes com disfunção neurológica previa ou nova, como no caso dos pacientes com sepse que se apresentam com algum grau de encefalopatia séptica. Substituir cefepima por antibióticos como por exemplo, os carbapenêmicos, poderá ser uma alternativa a ser considerada, mas essa decisão deverá ser analisada à luz dos riscos da geração de resistência antimicrobiana. Da mesma forma, deveria ser evitada em pacientes com lesão renal aguda ou crônica em razão dos seu acúmulo e eventual neurotoxicidade. Aguarda-se que novas evidências surjam a respeito de monitorar níveis séricos de cefepima dentro de faixas terapêuticas seguras, principalmente em pacientes de UTI. Isso permitira usar com segurança em pacientes com disfunção neurológica e/ou renal nos quais não se disponha de alternativas terapêuticas a cefepime.

 



[1] Qian ET, Casey JD, Wright A, Wang L, Shotwell MS, Siemann JK, Dear ML, Stollings JL, Lloyd BD, Marvi TK, Seitz KP, Nelson GE, Wright PW, Siew ED, Dennis BM, Wrenn JO, Andereck JW, Han JH, Self WH, Semler MW, Rice TW; Vanderbilt Center for Learning Healthcare and the Pragmatic Critical Care Research Group. Cefepime vs Piperacillin-Tazobactam in Adults Hospitalized With Acute Infection: The ACORN Randomized Clinical Trial. JAMA. 2023 Oct 24;330(16):1557-1567. doi: 10.1001/jama.2023.20583.

[2] Bryan D. Hayes, PharmD, DABAT, FAACT, FASHP. Leadership Team, ALiEM.  Associate Professor of EM, Division of Medical Toxicology, Harvard Medical School. Piperacillin/Tazobactam and Risk of Acute Kidney Injury with Vancomycin. Acessível em: https://www.aliem.com/piperacillin-tazobactam-acute-kidney-injury/

[3] Is piperacillin-tazobactam nephrotoxic? Josh Farkas. Associate professor of Pulmonary and Critical Care Medicine at the University of Vermont. Josh is the creator of PulmCrit.org. Acessível em: https://emcrit.org/pulmcrit/piperacillin-tazobactam-nephrotoxic/

[4] Chen AY, Deng CY, Calvachi-Prieto P, Armengol de la Hoz MÁ, Khazi-Syed A, Chen C, Scurlock C, Becker CD, Johnson AEW, Celi LA, Dagan A. A Large-Scale Multicenter Retrospective Study on Nephrotoxicity Associated With Empiric Broad-Spectrum Antibiotics in Critically Ill Patients. Chest. 2023 Aug;164(2):355-368. doi: 10.1016/j.chest.2023.03.046. Epub 2023 Apr 9.

[5] Yang J, Ko YS, Lee HY, Fang Y, Oh SW, Kim MG, Cho WY, Jo SK. Mechanisms of Piperacillin/Tazobactam Nephrotoxicity: Piperacillin/Tazobactam-Induced Direct Tubular Damage in Mice. Antibiotics (Basel). Published online 2023 Jun 28;12(7):1121.

[6] Kenzaka T, Matsumoto M. Cefepime-induced encephalopathy. BMJ Case Rep. 2018 Feb 21;2018:bcr2017223954. doi: 10.1136/bcr-2017-223954. PMID: 29467125; PMCID: PMC5847961.

[7] Zachary Van Roy, Xiaotong Zhang and Kaycee Bartels. Cefepime Neurotoxicity. published may 10, 2023. Acessível em: https://blog.unmc.edu/infectious-disease/2023/05/10/pharmtoexamtable-cefepime-neurotoxicity/#:~:text=%E2%80%93%20Cefepime%2Dinduced%20neurotoxicity%20(CIN,setting%20of%20impaired%20renal%20function.

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