sábado, 17 de março de 2018


ENCEFALOPATIA INDUZIDA PELO CONTRASTE (EIC) e EDEMA AGUDO DE PULMÃO INDUZIDO PELO CONTRASTE (EPIC).

Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Intensivista. Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.

O uso de contraste, principalmente o iodado, é bastante usado em exames de imagem para melhor visualizar determinadas estruturas. Uma das maiores aplicações é no uso de exames vasculares (angiografia coronariana, cerebral, carotídea, aórtica, etc). Entretanto, a exposição ao meio de contraste iodado não está isenta de complicações.

Uma das complicações que mais se pesquisa é a Nefropatia Induzida pelo Contraste (NIC) e as maiores controvérsias giram em torno da sua prevenção[1]. Entretanto, essa patologia merecerá uma abordagem separada neste Blog.

O meio de contraste iodado é geralmente administrado por via oral previamente ao procedimento e/ou por via endovenosa durante o exame, permitindo dar maior definição às imagens contrastadas.[2]
O contraste iodado pode ser classificado, pela sua capacidade de dissociação, em iônico ou não iônico. O contraste iodado iônico é aquele que, quando em solução, dissocia-se em partículas com carga negativa e positiva, enquanto os não iônicos não liberam partículas com carga elétrica. A quantidade de partículas em relação ao volume de solução determina a osmolaridade do contraste. Portanto, o contraste iodado iônico tem maior osmolaridade do que o não iônico. Outras propriedades do contraste dizem respeito à sua densidade e viscosidade. Quanto maior a densidade e a viscosidade, maior será a resistência ao fluxo do contraste, o que torna menor a velocidade de injeção e dificulta sua diluição na corrente sanguínea. É importante assinalar que todas estas propriedades se vinculam à eficácia e à segurança dos meios de contraste iodado.

Duas patologias pouco pesquisadas pela comunidade científica são a ENCEFALOPATIA INDUZIDA PELO CONTRASTE (EIC) e o EDEMA AGUDO DE PULMÃO INDUZIDO PELO CONTRASTE (EPIC). Ambas entidades são descritas com base em reporte de casos e sua análise é feita com base na fisiopatologia associada às propriedades do tipo de contraste, sua farmacocinética e farmacodinâmica.

O EDEMA PULMONAR INDUZIDO PELO CONTRASTE (EPIC), vem sendo reportando desde os anos 70, como uma complicação rara em pessoas jovens, que não podia ser explicada apenas por anafilaxia clássica, overdose de meio de contraste, sobrecarga de sódio e fluido (volume de contraste administrado) ou infarto agudo do miocárdio. À época propunha-se um mecanismo osmótico não imunológico que provocaria extravasamento capilar pulmonar reversível, o que poderia explicar os eventos clínicos observados, que respondiam a tratamento com ventilação a pressão positiva contínua das vias aéreas (CPAP)[3]. Nesse caso, o contraste iônico gerava hiperosomolaridade o que levava a hipervolemia com conseguinte insuficiência cardíaca, aumento da pressão capilar pulmonar e perda de fluido para o extravascular (interstício e alvéolo) por aumento da pressão hidrostática (EPIC cardiogênico de alta pressão). Além da hiperosmolaridade e hipervolemia gerada pelo contraste em pacientes com previa disfunção cardíaca[4], postulava-se que o contraste poderia ser diretamente tóxico para células endoteliais. Tal toxicidade para as células endoteliais pulmonares aumentaria a permeabilidade vascular o que poderia ser responsável pela ocorrência de edema pulmonar não cardiogênico (EPIC não cardiogênico de baixa pressão)[5] [6] [7] [8]. Assim, mesmo contrastes iodados não iônicos, por este mecanismo poderiam causar EPIC[9]. Posteriormente, também tem se postulado que meio de contraste em altas doses produziria edema pulmonar por inibição endotelial da produção de óxido nítrico (NO)[10]. Reportes de casos mais recentes tem apontado para essa mesma explicação fisiopatológica, embora reconheçam que ainda não está definitivamente clara a etiologia, prevalecendo a hipótese de fatores associados como reação alérgica ou imunológica, a toxicidade direta com aumento da permeabilidade capilar e a hiperosmolaridade com hipervolemia e disfunção cardíaca associada. Nesse sentido, na maioria dos casos reportados recomenda-se uma abordagem de tratamento baseada na em oxigenoterapia, diurético, inotrópicos quando necessário e ventilação a pressão positiva (VNI ou VMI). O Tratamento com corticosteroides para tratar fator de anafilaxia também pode ser útil[11] [12] [13].

A ENCEFALOPATIA INDUZIDA PELO CONTRASTE (EIC), é considerada uma neurotoxicidade reversível causada pelo contraste iodado, considerada também uma complicação rara do procedimento de angiografia (de carótidas, coronariana, cerebral, etc) que pode ocorrer tanto com contraste iônico quanto não iônico. A neurotoxicidade associada ao uso de contraste está relacionada com a osmolaridade, solubilidade lipídica, viscosidade e propriedades iônicas do agente de contraste. O meio de contraste abre conexões capilares apertadas e passa a barreira hematoencefálica ao aumentar a pinocitose endotelial. Então alcança o córtex cerebral e afeta a membrana neuronal. Assim, a explicação deste fenômeno pode ser encontrada nas propriedades químicas de altas doses de contraste causando ruptura osmótica da barreira hematoencefálica particularmente no córtex occipital, resultando em extravasamento fluido e edema cerebral. As manifestações do EIC são várias, e incluem cegueira cortical (mais comum), hemiparesia, afasia, perda de coordenação, confusão, apreensão e coma. Em razão da falta de homogeneidade na apresentação clínica, sinais radiológicos associados à EIC, tais como como edema cerebral, são de extrema importância em diferenciar esta condição de outras patologias neurológicas como AVCi ou HSA. TC de crânio sem contraste pode mostrar hiperatenuação cortical difusa na maioria dos casos sem efeito de massa ou sinais de hemorragia, enquanto a RM pode revelar achados que inclui áreas de hipersinal em T2- FLAIR cortical. O córtex occipital é uma das regiões com maior permeabilidade do sangue no cérebro, o que poderia explicar por que é a região mais vulnerável. Os fatores predisponentes que levam a EIC são hipertensão arterial crônica, ataque isquêmico transitório (TIA), autorregulação cerebral alterada, função renal prejudicada, grandes volumes de contraste, angiografia vertebro-basilar seletiva e gênero masculino. A evolução é benigna com bom prognóstico de resolução, e o tratamento da EIC é a base de hidratação adequada com cristaloides intravenosos e profilaxia para convulsão. Em alguns casos, pacientes foram tratados com corticoides intravenosos com bom resultado. Os sintomas podem aparecer entre 2 a 12 horas após a injeção do contraste e a duração dos déficits neurológicos tem sido reportada de forma variável com períodos de 15 minutos a 5 dias. Curiosamente, a reinjeção do meio de contraste não necessariamente provoca novo evento. O diagnóstico correto de EIC evita os riscos associados ao diagnóstico e tratamento errado, tais como uso de agentes trombolíticos (pensando em AVCi) ou de cirurgia (pensando em edema cerebral com HIC por HSA)[14] [15] [16] [17] [18] [19]. Em 2016, um estudo de revisão feito por Spina e col. analisou 52 reportes de casos, encontrando que EIC é uma entidade clínica importante que deve ser considerada no diagnóstico diferencial de acidente vascular cerebral após cateterismo cardíaco[20]. Também tem saído publicações associando ocorrência de delirium ao uso de contraste em procedimentos de cinecoronariografia, com manejo a base do uso de haloperidol[21] [22].



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domingo, 11 de março de 2018


A FRAÇÃO INSPIRADA DE OXIGÊNIO (Fi02) PARA TITULAR A SATURAÇÃO ARTERIAL DE OXIGÊNIO (Sa02): EXISTE UM VALOR CRÍTICO PARA DEFINIR TOXICIDADE?

ALEJANDRO ENRIQUE BARBA RODAS. Médico Intensivista. Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.  

A Diretrizes Brasileiras de Ventilação Mecânica (VM) recomendam dentre os ajustes iniciais dos parâmetros do ventilador[1]: utilizar a FIO2 necessária para manter a saturação arterial de oxigênio entre 93 a 97%.

Do teor dessa recomendação poder-se-ia interpretar que seria possível usar valores de Fi02 “a vontade” até o nível máximo de 100% inclusive, visando atingir e manter esse alvo almejado de Sa02. Criou-se, na prática, uma sorte de “titulação de Sa02 pela Fi02” como “ferramenta prática” a beira leito, já que basta olhar o valor de Sa02 do monitor aferido pela oximetria de pulso e ajustar a Fi02 do respirador.

Entretanto, e mesmo que tais valores de Sa02 aferidos pela oximetria de pulso (ou mesmo pela gasometria arterial) sejam fidedignos (afastadas as causas de erro de aferição pela oximetria de pulso), essa “titulação” não pode ser feita sem um adequado controle e monitorização dos efeitos deletérios do uso do oxigênio em altas concentrações.

Cada vez mais surgem evidencias acerca da toxicidade do oxigênio quando fornecido em níveis elevados. Desta forma, o uso de altos níveis de Fi02 torna-se de risco, diante da possibilidade de ocorrência de Lesão Pulmonar Induzida pelo Oxigênio (LPIO) ou como também tem sido denominada, Lesão Pulmonar Aguda Hiperóxica (Hyperoxic Acute Lung Injury – HALI)[2].

A hiperoxia não é definida com precisão, mas elevações significativas da pressão arterial parcial de oxigênio (PaO2) ocorrem quando a fração de oxigênio inspirado (FiO2) é maior do que 21%. Eventos adversos podem resultar do aumento da P02 nos alvéolos, sangue ou a nível celular. A hiperoxia parece produzir lesões celulares através do aumento da produção de radicais livres de oxigênio (free radicals), como o anion superóxido, o radical hidroxilo e o peróxido de hidrogênio[3] [4]. Quando a produção destes radicais aumenta e/ou as defesas antioxidantes da célula depletam, eles podem reagir e prejudicar a função das macromoléculas intracelulares essenciais, resultando em morte celular[5].No sistema respiratório, altas concentrações de 02 podem aumentar a susceptibilidade à atelectasia de absorção e  danificar a mucosa respiratória levando a infecção secundária como consequência de alteração na depuração mucociliar e a capacidade bactericida das células imunes[6] [7].

Desta forma, altas frações de oxigênio inspirado (FiO2) estão associadas a vários efeitos na troca de gases, incluindo diminuição dos volumes pulmonares e hipoxemia devido à atelectasia absortiva (pela substituição do nitrogênio pelo 02 que ao ser absorvido provoca atelectasia), acentuação/produção de hipercapnia (principalmente em pacientes com DPOC retentores de C02) e danos nas vias aéreas (traqueobronquite) e parênquima pulmonar (atelectasias e dano alveolar difuso semelhante ao SARA). O termo "toxicidade do oxigênio" geralmente é reservado para a última dessas consequências, ou seja, danos traqueobrônquicos e alveolares.

Assim, importante seria estabelecer um ponto crítico ou cut-off de nível de Fi02 e/ou de tempo de exposição a esse nível, a partir do qual o risco de hiperoxia e toxicidade pelo oxigênio torne-se significativo.

Importante notar que o conteúdo arterial de oxigênio (Ca02), corresponde à soma do 02 transportado pela Hb (Hb x SaO2 x 1,34) + 02 dissolvido no plasma (0,003 x PaO2), dependendo, portanto, da Sa02 e da Pa02. Entretanto, apenas 2% desse conteúdo corresponde ao 02 dissolvido, sendo que 98% viaja transportado. Ainda, o 02 entra na célula (objetivo principal da oxigenação) em razão da existência de um gradiente de  pressão de 02 entre o capilar periférico e a célula. O termo hipoxia e hipoxemia não são sinônimos. Hipoxemia é definida em regra como uma diminuição da Pa02 no sangue, enquanto a hipoxia é definida pelo nível reduzido de oxigenação tecidual. Pode ser devido à entrega defeituosa ou à utilização defeituosa do oxigênio pelos tecidos. Hipoxemia e hipoxia nem sempre coexistem. Os pacientes podem desenvolver hipoxemia sem hipoxia se houver um aumento compensatório no nível de hemoglobina e no débito cardíaco (DC). Da mesma forma, pode haver hipoxia sem hipoxemia. Na intoxicação por cianeto, as células são incapazes de utilizar o oxigênio, apesar de ter níveis normais de oxigênio no sangue e nos tecidos[8].

De acordo com o Tratado de Fisiologia de Guyton[9], cerca de 98% do sangue que entra no átrio esquerdo, proveniente dos pulmões, acabou de passar pelos capilares alveolares e foi oxigenado até Pa02 em torno de 104 mmHg. Outros 2% do sangue vêm da aorta, pela circulação brônquica que supre basicamente os tecidos profundos dos pulmões e não é exposta ao ar pulmonar. Esse fluxo de sangue é denominado “fluxo da derivação”, significando que o sangue é desviado para fora das áreas de trocas gasosas. Ao deixar os pulmões, a Pa02 do sangue da derivação fica em torno da P02 do sangue venoso sistêmico normal, aproximadamente, 40 mmHg. Quando esse sangue se combina nas veias pulmonares, com o sangue oxigenado dos capilares alveolares, essa chamada mistura venosa de sangue faz com que a P02 do sangue que chega ao coração esquerdo e é bombeado para a aorta (Pa02) diminua para cerca de 95 mmHg. Na medida em que o sangue que deixa os pulmões e entra nas artérias sistêmicas tem em geral a Pa02 em torno de 95 mmHg, é possível ver, a partir da curva de dissociação, que a saturação usual de oxigênio do sangue arterial sistêmico é em média de 97%. Por outro lado, no sangue venoso normal que retorna dos tecidos periféricos, a Pv02 é cerca de 40 mmHg e a saturação de hemoglobina é em média de 75%. Quando o sangue arterial chega aos tecidos periféricos, a Pa02 nos capilares periféricos ainda é 95 mmHg. Contudo, no líquido intersticial que banha as células teciduais é em média de apenas 40 mmHg. Assim, existe enorme diferença da pressão inicial que faz com que o oxigênio se difunda rapidamente do sangue capilar para os tecidos —tão rapidamente que a Pa02 capilar diminui, quase se igualando à pressão de 40 mmHg, no interstício. Portanto, a Pa02 do sangue que deixa os capilares dos tecidos e entra nas veias sistêmicas é também de aproximadamente, 40 mmHg. A P02 intracelular, nas células dos tecidos periféricos, permanece menor do que a Pa02 nos capilares periféricos. Além disso, em muitos casos existe a distância física considerável entre os capilares e as células. Portanto, a P02 intracelular normal varia de tão baixa quanto 5 mmHg a tão alta quanto 40 mmHg, tendo, em média (por medida direta em animais inferiores), 23 mmHg. Na medida em que apenas 1 a 3 mmHg de pressão de oxigênio são normalmente necessários para o suporte total dos processos químicos que utilizam oxigênio na célula, é possível ver que mesmo essa baixa P02 intracelular de 23 mmHg seja mais do que adequada e proporcione grande fator de segurança. Nas condições basais, os tecidos necessitam de cerca de 5 mililitros de oxigênio de cada 100 mililitros do sangue que passa pelos capilares teciduais. Para que os 5 mililitros usuais de oxigênio sejam liberados por 100 mililitros de fluxo sanguíneo a Pa02 deve cair para cerca de 40 mmHg. Portanto, a P02 tecidual normalmente não pode aumentar acima desse nível de 40 mmHg porque, se o fizer, a quantidade de oxigênio necessitada pelos tecidos não seria liberada pela hemoglobina. Dessa forma, a hemoglobina normalmente estabelece o limite superior da pressão do oxigênio nos tecidos, em torno de 40 mmHg. Em condições normais, quando a Pa02 é alta, como nos capilares pulmonares, o oxigênio se liga à hemoglobina, mas quando a Pa02 é baixa, como nos capilares teciduais, o oxigênio é liberado da hemoglobina. Essa é a base de quase todo transporte de oxigênio dos pulmões para os tecidos. Isso expressa-se no conceito de Curva de Dissociação da Hb que demonstra aumento progressivo da porcentagem de hemoglobina ligada ao oxigênio, à medida que a Pa02 do sangue aumenta, o que é denominado percentual de saturação de hemoglobina. Por outro lado, a Sa02 da Hb depende do gradiente alvéolo-arterial de 02 a nível do capilar pulmonar. O valor reflete o quanto a Hb se carregou de 02 a nível do capilar pulmonar. Existe ainda uma relação direta entre a Pa02 e o grau de Sa02 a nível do capilar pulmonar. A Pa02 por sua vez dependerá do gradiente alvéolo-capilar de 02, sendo um dos fatores determinantes a PA02 (pressão alveolar de 02) influenciada diretamente pela Fi02. Já a nível tecidual ocorre o fenômeno inverso e a Pa02 deve cair (em razão da passagem do 02 para os tecidos) para o 02 da Hb se liberar e dissolver no plasma restaurando a Pa02 que novamente faça entrar o 02 no tecido. Ainda, outros fatores podem influenciar no grau de dissociação da hemoglobina desviando-a para esquerda (maior afinidade pelo 02 e menor liberação) ou para direita (menor afinidade e maior liberação). Portanto, pode se concluir que não se necessita de elevadas Pa02 nos capilares periféricos para garantir um gradiente de pressão necessário para a entrada de 02 na célula. Bastariam pressões de 60 a 65 mmHg (acima de 40mmHg) para permitir uma razoável oxigenação tissular.



Observa-se pela curva de dissociação que uma Pa02 de 60 mmHg mantém uma saturação de hemoglobina em 89%, 8% apenas abaixo do normal; e uma pressão de mais de 500 mmHg manteria a saturação em 100%, nunca acima disso. Portanto, variações bruscas na pressão de oxigênio no sangue não afetam em grande escala a Pa02 nos tecidos periféricos. Ainda, a hemoglobina apresenta, um efeito tampão de oxigênio tecidual, sendo responsável por estabilizar a pressão do oxigênio nos tecidos. Isso é explicado, pois a hemoglobina estabelece um limite superior na pressão de oxigênio nos tecidos em torno de 40 mmHg. Qualquer queda nessa pressão estimula a liberação de oxigênio pela hemoglobina. Isto pode ser atingido por causa da inclinação abrupta da curva de dissociação para direita e do aumento no fluxo de sangue tecidual causado pela queda da Pa02; ou seja, uma ligeira queda na pressão parcial de oxigênio faz com que grandes quantidades extras de 02 sejam liberadas da hemoglobina.

A exposição prolongada a altos níveis de FiO2 (FiO2 ≥ 90%) causa uniformemente lesão pulmonar aguda hiperóxica grave (HALI) e, sem uma redução da FiO2, geralmente é fatal. A gravidade da HALI é diretamente proporcional à PaO2 (particularmente acima de 450 mm Hg, ou FiO2 de 0,6) e à duração da exposição. Clinicamente, o risco de HALI provavelmente ocorre quando o FiO2 excede 0,7 e pode tornar-se problemático quando FiO2 excede 0,8 por um longo período de tempo[10].

Mesmo o uso de altos níveis de oxigênio (Fi02 de 0.8) recomendados na prevenção da infecção de ferida operatória ainda é controverso.[11] [12] [13].

O grande dilema e preocupação centra-se nos pacientes com SARA, nos quais não poucas vezes necessitamos de usar elevados níveis de Fi02 para melhorar a oxigenação com o risco de muitas vezes acrescentar a lesão induzida pelo oxigênio (HALI).

Para reduzir os riscos potenciais da hiperoxia, uma meta de Sa02 mais baixa pode ser aceitável em pacientes criticamente doentes. Um SaO2 baixa tolerável também denominada de HIPOXEMIA PERMISSIVA/ESTRATÉGIA DE OXIGENAÇÃO CONSERVADORA. Geralmente, a estratégia de hipoxemia permissiva visa uma SaO2 entre aproximadamente 85% e 95%, que sempre se procura nos pacientes com SARA e prematuros[14] [15].

Recentemente, Panwar et al. publicaram um estudo internacional multicêntrico aleatorizado, controlado, não cego, no qual compararam uma estratégia conservadora de oxigenação (alvo de SaO2 de 88-92%) para uma estratégia liberal tradicional (alvo de SaO2 de 96%).Não houve diferença significa entre grupos em qualquer medida de disfunção orgânica ou mortalidade de 90 dias da UTI. Os autores concluíram que uma estratégia conservadora de oxigenação é uma alternativa viável à habitual estratégia de oxigenação liberal, sendo eficaz em reduzir a exposição à hiperoxia[16]

Entretanto, também recentemente, um estudo do Reino Unido e da Australia, o Benefits of Oxygen Saturation Targeting (BOOST) II, mostrou que um alvo de saturação de oxigênio de 85% a 89%, em vez de 91% para 95%, podem aumentar o risco de morte ou deficiência aos 2 anos idade corrigida em lactentes nascidos antes das 28 semanas de idade[17]. Concluem que o potencial dano da hipoxia deve ser cuidadosamente avaliado com base nas condições patológicas e fisiológicas, e deve ser lembrado que o benefício da hipoxia permissiva é derivado da redução da lesão hiperoxia.

Estas divergências e a necessidade de ainda estudar o real impacto da estratégia conservadora tem sido colocada em recentes publicações. Nessas publicações refere-se ainda que o uso de marcadores de perfusão tecidual, como o uso de lactato poderiam ajudar a saber se existiria ou não evidencia de hipoperfusão tissular[18] [19]. Certamente em situações de choque e má perfusão periférica o valor da oximetria de pulso poderia apresentar viés de aferição.

Pelo UpToDate[20], na atualidade não existe um valor de fração de oxigênio inspirado (FiO2) que defina um limite superior seguro para a prevenção da toxicidade do oxigênio, embora a experiência clínica sugira que, na ausência de agentes sensibilizadores como a bleomicina, é improvável que FiO2 <60% induza toxicidade pelo oxigênio. A importância relativa da duração e da magnitude da exposição a altos níveis de Fi02 também não foi claramente definida, embora seja provável que a área sob a curva FiO2 versus tempo seja a melhor variável preditiva. Ajustar a FiO2 para o menor valor possível é um bom norte para todos os pacientes, em particular aqueles que provavelmente correm o risco de lesão pulmonar induzida por hiperoxia por causa de alto valor de Fi02 ou duração prolongada de oxigenoterapia. Em termos práticos, o oxigênio deve ser administrado para atingir uma PaO2 de 60 a 65 mmHg (saturação arterial de oxigênio [SaO2] aproximadamente 90 por cento).

Finalmente podemos concluir que:

1. A recomendação da Diretriz Brasileira quanto ao uso da Fi02 buscando garantir uma Sa02 de 93 a 97% deve levar em consideração a toxicidade produzida por altos níveis de Fi02.

2. Apesar de não haver evidencia forte acerca de um nível crítico de Fi02 e/ou de tempo mínimo para toxicidade pelo oxigênio, pareceria razoável acender o alerta para essa toxicidade quando atingidos valores de Fi02 60%.

3. Até ajustes de valores de Fi02 < 60% a monitorização da oxigenação poderia ser guiada pelos alvos de Sa02 preconizados nas diretrizes, cuidando de assegurar uma correta aferição da Sa02 pela oximetria de pulso.

4. Havendo necessidade de usar valores de Fi02 60% dar preferencia ao uso da Pa02 pela gasometria arterial como guia, procurando alvos mínimos de 60 a 65mmHg e se auxiliando de marcadores e perfusão tecidual (exemplo, lactato arterial).

5. A necessidade de altos níveis de Fi02 em pacientes com SARA moderada ou grave deve ser manejada com estratégias convencionais e de resgate preconizadas pela literatura em vigor.

6. O uso de altos níveis de oxigênio (Fi02 de 0.8) recomendados na prevenção da infecção de ferida operatória ainda é controverso.






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