sábado, 16 de abril de 2022

 MITOS NO MANEJO DA HIPERCALEMIA

Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos. Supervisor do Programa de Residência em Medicina Intensiva – COREME. 



A edição de fevereiro de 2022 do American Journal of Emergency Medicine[1] nos trouxe uma interessante revisão feita por Arnav A. Gupta[2] e col., sobre o manejo da HIPERCALEMIA, na forma de esclarecimentos sobre práticas rotineiras equivocadas (“desvendando mitos”) e tecendo algumas recomendações.


1. INTRODUÇÃO

A hipercalemia é um distúrbio eletrolítico potencialmente fatal envolvido em mais de 800.000 admissões no Departamento de Emergência (DE) a cada ano. Afeta 2,6 a 2,7% da população dos Estados Unidos em algum momento de sua vida e está associada a maiores custos de saúde e aumento da mortalidade ao corrigir outros fatores.

Existem muitos equívocos no manejo da hipercalemia e, como consequência, há uma variação significativa na prática. Uma avaliação recente dos padrões de manejo no DE descobriu que nenhum dos 14 locais estudados havia definido diretrizes de tratamento para o manejo da hipercalemia, e havia 43 combinações diferentes de tratamentos usados ​​em geral. Os autores observaram que uma abordagem padronizada provavelmente melhoraria os resultados, no entanto, atualmente não existe um único padrão validado. Para complicar ainda mais, não existe sequer uma definição universal de hipercalemia.

Historicamente, as abordagens de tratamento da hipercalemia agudam centraram-se em torno de 3 pilares:

1. “estabilizar” o limiar de despolarização  cardíaca,

2. deslocar o potássio sérico do espaço extracelular para o espaço intracelular (shift) e, 

3. eliminar o potássio corporal total. 

A urgência dessas ações é frequentemente guiada pelos achados do eletrocardiograma (ECG), uma vez que arritmias com risco de vida podem ocorrer em uma ampla faixa de concentrações séricas de potássio.

Devido à natureza desafiadora da avaliação prospectiva de uma condição com risco de vida, muitas dessas práticas bem-intencionadas, mas equivocadas, se perpetuaram por meio do aprendizado geracional, apesar da escassez de evidências para apoiá-las. 

Aqui, se revisam alguns dos mitos e equívocos mais significativos sobre o tratamento da hipercalemia aguda.


1.1. MITO 1: POLIESTIRENOSSULFONATO DE SODIO (KAYEXALATE) É SEGURO E ÚTIL

O poliestirenossulfonato de sódio (PSS) conhecido como Kayexalate em muitos países (não disponível no Brasil), é uma resina que no intestino se liga ao potássio fazendo com que este seja eliminado com as fezes. Na verdade, troca o sódio pelo potássio (além de outros íons: cálcio, amônio e magnésio). Cada grama de resina liga-se a 1 mEq de potássio e libera 1-2 mEq de sódio, devendo ser utilizada com precaução em pacientes que não toleram excesso de sódio (insuficiência cardíaca congestiva, hipertensão arterial). A melhor eficácia do PSS se dá no intestino grosso, devido ao pH aumentado, sendo que essa droga pode ser administrada por via oral ou retal (na forma de enema de retenção), embora essa via se demonstre menos eficaz que a oral e com mais possibilidades de complicações como necrose colônica e impactação fecal grave, principalmente quando associado ao sorbitol. O tempo de ação varia entre 2-4 horas, com eficácia variável. A constipação é o principal efeito colateral. 

Ao longo de todo o trato gastrintestinal, os cátions nos fluidos intestinais competem pelas valências livres na resina, e íons de maior peso molecular e maior valência possuem preferência na ocupação destes sítios. A concentração do potássio é variável no fluido secretado conforme o nível do tubo digestivo. Nos segmentos proximais, onde o teor de potássio é maior devido à ingestão na dieta, há favorecimento da ligação deste cátion com a resina. No intestino delgado a resina capta sódio e perde potássio. Ao atingir o cólon proximal, o sódio é deslocado da resina, que então capta potássio em maior quantidade. Este processo continua enquanto a resina progride do cólon para o reto. Quando uma resina de troca catiônica é adicionada a uma solução eletrolítica (secreção gastrintestinal), ocorre uma distribuição equilibrada de íons entre a resina e o fluido luminal. A presença da resina no intestino introduz um compartimento eletrolítico adicional ao organismo, e é necessário tempo para que ocorra equilíbrio iônico entre os compartimentos. Mesmo quando a concentração de cátions na resina atingiu o máximo para aquele segmento do intestino, ainda existe fluxo de íons entre a resina, o fluido circulante e o pool de cátions do organismo. A concentração final de cátions na resina no intestino depende do tipo da resina, pH e concentração e propriedades físicas dos diferentes íons no fluido circundante (Pachaly Aparecida M. Resinas trocadoras de cátions na Hipercalemia Aguda Grave  http://dx.doi.org/10.5380/rmu.v1i3.40751.g24949).

No Brasil, se faz o uso do poliestirenossulfonato de cálcio (Sorcal, Calnate), sendo sua posologia, indicações e efeitos colaterais semelhantes ao do poliestirenossulfonato de sódio. A dose usada do poliestirenossulfonato de cálcio (PSC) é de 0,5-1 g/kg/dose, diluído em até 100 mL água, por via oral até 6 vezes ao dia e via retal, seria de 30 g + Sorbitol 20% 200 mL, como enema de retenção por 45 minutos até de 6/6 horas. Quanto ao Poliestirenossulfonato de sódio a dose seria de 15-30 g diluído em até 100 mL de água, por via oral e de 30-50 g como enema de retenção por via retal, por 45 minutos[3].

No Brasil, atualmente o poliestirenossulfonato de cálcio (PSC) é encontrado na forma de pó para suspensão oral e/ou retal, como SORCAL (laboratório Wyeth) e CALNATE (laboratório Eurofarma) sendo o primeiro deles o mais comumente utilizado. Cada envelope contém 30 g de pó, sendo 27 g de poliestirenossulfonato de cálcio. Cada grama de PSC contém 900 mg (791,06 - 988,83 mg) de poliestirenossulfonato de cálcio, que corresponde a aproximadamente 3,6 - 4,4 mEq de cálcio (excipientes: sacarose e ácido cítrico anidro). Conforme a bula oficial, foi realizada uma avaliação clínica de resina troca cátions no tratamento e prevenção da hiperpotassemia no Hospital das Clínicas em São Paulo, que utilizou a resina troca cálcio no tratamento da hipercalemia em 20 pacientes com insuficiência renal, onde a dose administrada variou de 30 a 90 gramas diárias, com uma média de 50 gramas, em várias tomadas em intervalos de 4 a 6 horas. O tempo de tratamento foi de 3 a 50 dias, com média de 11,5 dias. A eficiência terapêutica foi considerada excelente pelos autores no controle da hiperpotassemia, onde 100% dos casos obtiveram sucesso. Não houve efeito sobre a acidose metabólica concomitante. Em nenhum caso houve aparecimento de hipercalcemia e os efeitos colaterais foram praticamente nulos. Cada grama de poliestirenossulfonato de cálcio troca cerca de 1,3 mmol (1,3 mEq) de potássio. Após a administração do poliestirenossulfonato de cálcio, os íons cálcio presentes nesta resina são parcialmente liberados e substituídos por íons potássio. A progressão da resina ocorre através do intestino ou então esta fica retida no cólon, após administração sob a forma de enema. É durante esta progressão que ocorre a permutação dos cátions. Esta ação ocorre principalmente no intestino grosso, que excreta os íons potássio em maior grau que o intestino delgado. A resina é então eliminada nas fezes. A eficiência deste processo é limitada e variável. A ação permutadora de íons se inicia com a progressão do poliestirenossulfonato de cálcio pelo intestino, principalmente o intestino grosso (ação imediata). A bula recomenda usar em adultos 15gr 3 a 4 vezes a dia via oral e na forma de enema de retenção, via retal, como suspensão de 30 g de resina em veículo aquoso (p. ex. 200 mL de metilcelulose a 1% ou 100 mL de sorbitol) aquecida (à temperatura corporal) e levemente agitada durante a administração. Após um enema de lavagem inicial, uma sonda de borracha macia de tamanho grande (French 28) é inserida via retal por cerca de 20 cm, com a extremidade atingindo a sigmoide e fixada nessa posição. A suspensão é então introduzida por gravidade, enquanto as partículas são mantidas em suspensão por agitação. Se possível, o enema deve ser retido pelo menos por 9 horas (clampeando a sonda). Se ocorrer refluxo, os quadris devem ser elevados com travesseiros ou o paciente deve ficar temporariamente em posição genupeitoral. Pode-se utilizar uma suspensão um pouco mais densa; entretanto, deve-se evitar formação da pasta, que reduzirá a superfície de troca, sendo inefetiva se depositada na ampola retal. A seguir deve ser feito um enema de lavagem. A suspensão é lavada com 50 a 100 mL de líquido sem cálcio à temperatura corporal, a fim de remover a resina. Dois litros de solução para lavagem podem ser necessários. O retorno é drenado constantemente através de uma conexão em Y[4]. O outro medicamento usado muito tempo no Brasil, contendo poliestirenossulfonato de cálcio, o SORCAL do laboratório Wyeth indústria farmacêutica Ltda., não possui mais bula no site do bulário oficial da Anvisa[5], ao que parece por ter tido seu registro cancelado por motivos comerciais[6].

A atual revisão de Arnav A. Gupta, refere-se basicamente ao poliestirenossulfonato de sódio (PSS), comumente conhecido como Kayexalate (não disponível no Brasil), afirmando que, as pessoas ingerem 90 mEq de potássio dietético por dia, enquanto o cólon excreta aproximadamente 5 mEq de potássio por dia, referindo que não há estudos bem delineados avaliando a localização precisa da ação ou a quantidade de potássio que está ligado ao PSS. Ainda as mesmas considerações sobre o PSS se aplicam ao PSC.

 

1.1.1. Eficácia

O poliestirenossulfonato de sódio (PPS) foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) em 1958 após a publicação de uma série de casos de cinco pacientes que demonstraram uma ligeira redução nos níveis séricos de potássio em pacientes anúricos com hipercalemia após cinco dias de terapia. Em 1961, foram publicados dois pequenos ensaios, incluindo 42 pacientes, que demonstraram níveis séricos mais baixos de potássio em pacientes que receberam PSS associado a uma dieta pobre ou sem potássio. É importante ressaltar que esses estudos careciam de um grupo de controle ou análise estatística, pois o FDA não exigia esses componentes para trazer um novo medicamento ao mercado até a Emenda de Medicamentos Kefauver-Harris de 1962.

Nos anos sessenta desde que o PSS foi introduzido, apenas quatro ensaios clínicos randomizados (ECRs) foram publicados avaliando a eficácia do PSS para reduzir os níveis séricos de potássio, e apenas um deles mostrou redução estatisticamente significativa após sete dias. Durante este mesmo período, a maioria dos mais de vinte estudos observacionais mostrou uma pequena redução (<1 mEq/L) no potássio sérico após 24 horas de uso. Gruy-Kapral, et al., publicaram um ECR em 1998 demonstrando que o PSS não reduziu significativamente o potássio em seis pacientes normocalêmicos com doença renal crônica (DRC) após 12 horas de uso. Em 2014, Nasir, et al., randomizaram 97 pacientes adultos admitidos na emergência com doença renal crônica (DRC) e hipercalemia para receber PSS ou poliestireno sulfonato de cálcio (PSC), uma resina à base de cálcio semelhante ao PSS, e mostrou que esses agentes reduziram os níveis séricos de potássio em 1,5 e 1 mEq/L, respectivamente, após 3 dias de uso. No entanto, não houve grupo controle ou análise estatística realizada. Lepage, et al., realizaram um ECR de 33 pacientes ambulatoriais com DRC e hipercalemia leve (5-5,9 mEq/L) e descobriram que o PSS reduziu o potássio sérico em 1,04 mEq/L (IC 95% -1,37 a -0,71), e foi superior ao placebo em sete dias. Finalmente, Nakayama, et al., randomizaram 20 pacientes ambulatoriais com DRC para receber PSS ou PSC e descobriu que nenhum dos agentes reduziu significativamente o potássio sérico ao final de quatro semanas de terapia. Em 2005, uma revisão Cochrane avaliou especificamente o manejo da hipercalemia na emergência e concluiu que o PSS não é eficaz na redução do potássio sérico após 4 horas e não deve ser usado para o manejo da hipercalemia aguda. Em 2015, outra revisão Cochrane avaliando agentes farmacológicos usados ​​na hipercalemia aguda relatou que são necessários estudos de alta qualidade para fornecer uma recomendação firme sobre o papel das resinas de ligação ao potássio. Finalmente, uma terceira revisão Cochrane foi realizada em 2020 para avaliar os benefícios dos quelantes de potássio no manejo da hipercalemia crônica em pacientes com doença renal crônica (DRC) e novamente encontrou falta de estudos de alta qualidade para apoiar seu uso em pacientes ambulatoriais. No entanto, os autores observam que os novos quelantes de potássio, como patiromer e ciclossilicato de zircônio de sódio, podem efetivamente reduzir o potássio sérico sem os mesmos riscos que o PSS.

Em 2015, a Food and Drugs Administration (FDA) aprovou o uso do patiromer para o tratamento da hipercalemia. O patiromer é um polímero de ligação ao potássio que troca cálcio por potássio, fazendo com que esse seja excretado por via fecal. É considerado como uma opção para pacientes com doença renal crônica ou diabetes com potássio sérico > 5 mEq/L. É uma droga para tratamento da hipercalemia crônica, já que tem início de ação em 7 horas e pode demorar até 48 horas para alcançar seu pico de ação. Seus principais efeitos colaterais são desconforto abdominal, flatulência e hipomagnesemia, devendo ser evitado em pacientes constipados, com obstrução intestinal ou impactação fecal. Diferente do poliestirenossulfonato de sódio, não há ocorrência de complicações maiores quando utilizado em conjunto com sorbitol. Uma de suas indicações seria para pacientes com doença renal crônica que fazem uso de antagonistas do sistema renina-angiotensina-aldosterona. Até o momento, o patiromer não possui registro na Anvisa.

No Brasil o Ciclossilicato de zircônio sódico hidratado (Lokelma) do laboratório Aztrazeneca do Brasil possui registro na Anvisa[7] embora ainda se comercialzie sob importação. O envelope contém 5 g ou 10 g de ciclossilicato de zircônio sódico hidratado. O medicamento deve ser administrado por via oral. Os silicatos de zircônio (SZ) microporosos são formados por uma síntese hidrotérmica em condições alcalinas e alta temperatura e pressão. A rede cristalina resultante (fase cristalina) do produto final depende de uma variedade de parâmetros que devem ser cuidadosamente controlados para atingir a fase cristalina visada. Todos os silicatos de zircônio microporosos apresentarão propriedades de troca iônica, mas o tamanho da abertura dos microporos ditará a seletividade iônica. A estrutura da rede cristalina do ZS é carregada negativamente e neutralizada com cátions de sódio (Na +) e hidrogênio (H +) localizados dentro dos canais da rede cristalina. Esses cátions podem sofrer troca dinâmica com outros cátions nos meios externos que podem passar através das aberturas microporosas de tamanho regular, para alcançar um equilíbrio. Quando o ambiente externo muda, por exemplo, quando o ZS se move do ambiente ácido do estômago para o duodeno, um novo equilíbrio se estabelece. Os pacientes devem ser instruídos a esvaziar o conteúdo total do sachê em um copo contendo aproximadamente 45 ml de água. Mexer bem e beber enquanto o pó ainda estiver suspenso, já que o produto não se dissolve. A suspensão é insípida e tem aspecto de um líquido turvo. Se o pó assentar, a água deve ser mexida novamente. Deve-se assegurar que todo o produto seja ingerido. O medicamento pode ser ingerido com ou sem alimentos. Em pacientes cujos níveis de potássio sérico são > 5,0 (mmol/L), a dose inicial recomendada para atingir a normocalemia (níveis de potássio normais entre 3,5 e 5,0 mmol/L) é 10 g, administrada três vezes ao dia, sob a forma de suspensão oral em água. Em geral, a normocalemia é obtida dentro de 24 a 48 horas. Se o potássio sérico medido permanecer superior a 5,0 mmol/L ao final de 48 horas, um dia adicional (24 horas) de administração de 10 g três vezes por dia pode ser administrado, antes de iniciar a dose de manutenção. Se a normocalemia não for obtida ao final do dia 3, devem ser consideradas outras abordagens terapêuticas. Para o tratamento de manutenção contínuo, a dose mínima efetiva para prevenir a recorrência de hipercalemia deve ser estabelecida. Recomenda-se uma dose de 5 g uma vez ao dia, com possibilidade de titulação até 10 g uma vez por dia ou redução de até 5 g em dias alternados (dia sim/dia não), conforme necessário, para manter um nível de potássio normal. Não deve ser utilizado mais de 10 g por dia durante a terapia de manutenção. Os níveis séricos de potássio devem ser monitorados regularmente durante o tratamento. A frequência de monitoramento depende de uma variedade de fatores, incluindo outros medicamentos concomitantes, progressão da doença renal crônica e ingestão dietética de potássio. Para pacientes em hemodiálise crônica, deve ser administrado somente nos dias em que o paciente não for submetido à diálise. A dose inicial recomendada é de 5 g uma vez ao dia. Para estabelecer a normocalemia (4,0-5,0 mmol/L), a dose pode ser aumentada ou diminuída semanalmente com base no valor de potássio sérico pré-diálise após um longo intervalo interdialítico. A dose pode ser ajustada em intervalos de uma semana com incrementos de 5 a 15 g, uma vez ao dia, em dias em que o paciente não é submetido à diálise. Para manter a normocalemia, é recomendada a monitorização regular do potássio sérico (por exemplo, mensalmente)[8].

 

1.1.2. Perigos

Não apenas faltam evidências para apoiar o uso de PSS no manejo emergencial da hipercalemia, mas há evidências sugerindo que ele pode causar danos. De fato, o FDA adicionou um aviso à bula em 2011 destacando a associação entre PPS e necrose colônica, especialmente quando usado com sorbitol . A lesão intestinal também foi demonstrada em formulações sem sorbitol. Em uma revisão sistemática de 2013, Harel, et al. encontraram uma associação significativa entre o uso de PSS, com ou sem sorbitol, e eventos adversos gastrointestinais. Os autores identificaram 30 relatos descrevendo 58 casos de eventos adversos, mais comumente necrose intestinal , e encontraram uma mortalidade de 33% nesses casos. Um estudo de coorte recente em nível populacional de 20.020 indivíduos demonstraram um risco 1,9 vezes maior de hospitalização por eventos adversos gastrointestinais (GI) dentro de 30 da prescrição inicial. Um estudo observacional recente de pacientes com DRC avançada (estágio 4 ou 5 de DRC) na Suécia demonstrou uma associação significativa com complicações gastrointestinais graves (HR 1,25, IC 95% 1,05–1,49), particularmente naqueles que recebram doses convencionais (HR 1,54, IC 95% 1,09-2,17), em comparação àqueles que receberam doses mais baixas. Mais recentemente, uma revisão sistemática de 41 artigos avaliando a taxa de eventos adversos gastrointestinais induzidos por PSS e PSC identificou 135 eventos adversos, demonstrando necrose, ulceração, e perfuração, e também mostrou mortalidade de até 20,7% entre os pacientes com complicações.

Devido à falta de evidências que demonstrem a utilidade do PSS no tratamento agudo da hipercalemia, um resumo recente da conferência Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO) não pôde fornecer uma recomendação para o uso do PSS no cenário emergencial. Além disso, na atualização de 2020 das diretrizes da American Heart Association para ressuscitação cardiopulmonar, o uso de PSS é desencorajado devido à eficácia insuficiente e ao risco de isquemia intestinal. Ainda, cada 15 g de PSS carrega uma carga de sódio de 1500 mg que pode não ser bem tolerada em pacientes com insuficiência cardíaca ou outras condições. De fato, em pacientes com sobrecarga de volume, o uso de PSS pode estar associado a maior expansão de volume e piora da insuficiência cardíaca, pois também funciona trocando potássio por sódio no intestino.


Recomendação: Devido ao potencial dano e falta de eficácia, o PSS não deve ser incluído rotineiramente no tratamento da hipercalemia aguda.

 

1.2. MITO 2: RINGER COM LACTATO É CONTRAINDICADO NA HIPERCALEMIA

Ringer com Lactato (RL),  é uma solução cristaloide com pH balanceado que contém 130–131 mEq/L de sódio, 109–110 mEq/L de cloreto, 4–5 mEq/L de potássio, 28–29 mEq/L de lactato e 2 –3 mEq/L de cálcio. Em contraste, cloreto de sódio a 0,9%, ou “solução salina normal” (SF), uma solução cristaloide com pH não balanceado, contém 154 mEq/L de sódio e cloreto. Nunca foi definitivamente demonstrado que a RL cause ou piore a hipercalemia, mas muitas vezes é evitada em pacientes com hipercalemia pela preocupação com a pequena quantidade de potássio contida no RL. É importante ressaltar que dois grandes ensaios controlados e randomizados recentes comparando soluções balanceadas (PL) cm não balanceadas (SF) em pacientes não críticos e em estado crítico não mostraram diferença significativa na alteração da concentração do potássio sérico vários dias após a admissão. Além disso, em pacientes hipercalêmicos, a concentração sérica de potássio é, por definição, maior do que a concentração de potássio no RL. Como o volume de distribuição de potássio é maior do que o volume do líquido extracelular,  a administração de RL, que tem uma concentração de potássio quase normal, quase não terá efeito sobre o nível de potássio sérico.

Além disso, existem razões metabólicas pelas quais o RL pode ser um fluido de ressuscitação superior quando comparado ao SF em alguns pacientes hipercalêmicos. Scheingraber, et al. demonstraram que a administração de SF está associada a acidose metabólica hiperclorêmica em pacientes cirúrgicos. Estudos mais recentes de O'Malley, et al. e Modi, et al. reproduziram esse achado em pacientes transplantados renais e mostraram que o SF estava associado à maior incidência de aumento da concentração de potássio em comparação com a RL. Teoricamente, o aumento do cloreto extracelular força o bicarbonato intracelular para manter o equilíbrio iônico. Isso reduz o bicarbonato disponível para tamponar o sangue, levando à acidose metabólica com anion gap normal. Também é aceito que a acidose metabólica causa deslocamento de potássio do espaço intracelular para o espaço extracelular decorrente da troca iônica (shift) H⁺ - K⁺ exacerbando a hipercalemia. Portanto, o RL parece ter menor risco de causar uma mudança clinicamente significativa de potássio para o soro a partir do espaço intracelular.

Recentemente, Toporek, et al. conduziram uma análise secundária do Isotonic Solutions and Major Adverse Renal Events Trial (SMART) para investigar o efeito da composição de fluidos na incidência de hipercalemia e terapia de substituição renal (TRS) em pacientes críticos. A análise revelou que o uso de cristaloides balanceados não foi associado a um aumento significativo na incidência de hipercalemia grave em comparação com solução salina. De fato, o grupo cristaloide balanceado teve uma incidência significativamente menor de TRS entre os pacientes com hipercalemia e entre os pacientes com lesão renal aguda em comparação com aqueles que receberam SF. Os autores concluíram que o efeito de alteração ácido-base do SF é mais prejudicial ao equilíbrio de potássio do que a pequena quantidade de potássio encontrada em cristalóides balanceados como RL.

 

Recomendação: A solução de Ringer Lactato é segura e adequada para uso em pacientes com hipercalemia.

 

1.3. MITO 3: AS ALTERAÇÕES ELETROCARDIOGRÁFICAS DA HIPERCALEMIA SÃO PREVISÍVEIS E CONFIÁVEIS

Potencial de membrana (PM): Imagine dois eletrodos, um colocado fora e outro dentro da membrana plasmática de uma célula viva. Se fizer isso, você poderá medir a diferença de potencial elétrico, ou voltagem, entre os eletrodos. Essa diferença de potencial elétrico é chamada potencial da membrana (PM). Expressa a diferença de cargas positivas e negativas entre o intra e o extracelular num determinado momento (repouso, despolarização, repolarização). As cargas positivas e negativas são dadas pelos elementos carregados positivamente (Na+, K+, Ca++, Mg+) e negativamente (Cl-, HCO3-, proteínas) dentro e fora da célula (https://pt.khanacademy.org/science/biology/human-biology/neuron-nervous-system/a/the-membrane-potential).




Para o potencial da membrana de uma célula, usamos ponto de referência é fora da célula, isto é, o extracelular. Na maioria das células excitáveis em repouso, considerando que o extracelular tem mais cargas positivas que o intracelular (predominância de Na+), a diferença de potencial ao longo da membrana é em torno de 30 a 90 mV (1 mV é 1/1000 de um volt), com o interior da célula mais negativo do que o exterior (menos cargas positivas). Podemos dizer então, que os miócitos (assim como os neurônios) possuem um potencial de repouso da membrana (ou simplesmente, potencial de repouso) que varia de -30 a -90 mV. Por existir uma diferença de potencial na membrana celular (não é 0), a membrana é dita polarizada. A magnitude deste potencial é dada pela maior concentração de K+ intracelular em relação ao extracelular (30:1) com canais próprios mais permeáveis, o que leva a um constante efluxo de K+ de forma passiva, por gradiente de concentração. Os canais de Na+ em contrapartida são relativamente impermeáveis ao Na+ para difusão passiva (tamanho dos canais e do Na+). A membrana é impermeável a anions (ions negativos) devido às caudas negativas dos fosfolipídios da bicapa lipídica que repelem cargas também negativas. Ainda, a bomba de Na-K ATPase extrai Na+ da célula e devolve K para o intracelular (na proporção de 15:1).  Afinal o balaço será uma maior saída de cargas positivas (K+) do intra para o extracelular que entrada de cargas positivas (Na+) do extra para o intracelular. O PM representa, portanto, um ponto de equilíbrio eletroquímico. 

Se o potencial da membrana se torna mais positivo do que está no potencial de repouso (ou menos negativo que –90 mV: -80, -70, -60.... +20, +30 mV), então a membrana é dita despolarizada. Se o potencial da membrana se torna mais negativo do que está no potencial de repouso (-95, -100 mV), a membrana é dita hiperpolarizada (https://pt.khanacademy.org/science/biology/human-biology/neuron-nervous-system/a/the-membrane-potential).



Assim, o aumento de cargas positivas no extracelular (vindas do intracelular ou administradas exogenamente) tornará mais positivo o extracelular e a diferença de cargas, fazendo que o PM se torne mais negativo (hiperpolarizado) e a celular menos excitável (se afasta do limiar de potencial de ação). Por outro lado, o aumento de cargas positivas no intracelular (vindas do extracelular) o tornará menos negativo (ou até positivo) se aproximando do limiar de ação (potencial despolarizado) tornando a celular mais excitável até que a potencial de repouso alcance um novo ponto de equilíbrio inclusive acima do potencial de ação, situação que paradoxalmente tornará a celular menos excitável ou em “repouso permanente despolarizado”. A progressão da hipercalemia leve a moderada e grave se observam esses fenômenos.

Potencial de Ação (PA): A despolarização e repolarização de átrios e ventrículos depende de mecanismos de estimulação elétrica que ocorrem de forma diferente no nódulo sinusal ou no músculo cardíaco (Figuras 1, 2, 3 e Vídeo 1)[9]:

No nó sinusal (ou sino-atrial), o potencial de ação é se caracteriza pelo automatismo das células especializadas, chamadas de “células marcapasso”. O potencial de repouso é de –60 mV (na verdade, não se trata de um verdadeiro potencial de repouso, já que não se mantem constante) e o limiar de despolarização é menos negativo (–40 mV).


Fig. 1. Nas células com automatismo, a fase 4 (repouso) pode ser representada por uma linha inclinada, pois existe uma entrada lenta e gradual de sódio para o interior da célula. Isto se dá porque estas células (por exemplo, as células do nó sinusal) possuem mais canais lentos de sódio e comparação com as outras células.


A propriedade de automatismo durante a fase 4, se deve à ocorrência de correntes elétricas espontâneas geradas através dos denominados “fanny channels” (canais engraçados e correntes engraçadas) permeáveis ao sódio. Estes fanny channels se abrem quando a voltagem chega a -60 mV, permitindo um pequeno influxo de Na⁺ reduzindo a voltagem para -40 mV. A despolarização resultante é conhecida como “potencial de marcapasso”. Neste ponto, se abrem os canais de cálcio, despolarizando ainda mais a membrana, resultando na fase ascendente. No seu pico (aproximadamente +10 mV), canais de K⁺ se abrem e os de cálcio de fecham. A saída de K⁺ faz com que o intracelular se torne mais negativo (ou menos positivo) e potencial de membrana retorne para – 60 mV (fase descendente do potencial de ação), reiniciando a abertura dos funny channels.

Já a nível dos miócitos dos ventriculos, existe um verdadeiro potencial de repouso de membrana (PRM) de -90 mV e permanecerá como tal (fase 4) enquanto um estímulo externo não mude esse valor. Ao todo o processo envolve 5 fases, sem a fase 0 de despolarização, as fases 1,2 e 3 de repolarização e a fase 4 de repouso.

FASE 0. Corresponde à despolarização da célula miocárdica. Estando o miócito em estado de repouso (com PRM de -90mV), a fase 0 sempre será iniciada pelo estímulo proveniente do nodo sinusal que vem se transmitindo célula-a-célula (sincício miocárdico com miócitos interligado por intersecções ou junções gap que permite o acoplamento elétrico de células vizinhas). Este estímulo provoca abertura dos canais lentos de sódio, fazendo com que o Na+ extracelular se mova por gradiente para dentro da célula (influxo lento de sódio). Isto deixa o interior da célula menos negativo (ou mais positivo) reduzindo o PRM. Ao atingir cerca de –70 mV (limiar de abertura dos canais rápidos de Na+ ou de potencial de ação), todos os canais rápidos de sódio de abrem e mais Na+ entra para o meio intracelular (influxo rápido de sódio). Isto eleva ainda mais polaridade da membrana, até atingir entre +20 mV a +30 mV. Então, os canais rápidos de sódio se fecham e se mantêm fechados até a polaridade voltar para –90 mV. Nesta fase também ocorre a entrada de íons Ca++. No ECG, a fase 0 corresponde a onda R (ou complexo QRS) de uma célula miocárdica. Por existir milhões de células miocárdicas, demora entre 60 ms a 100 ms (milissegundos) até todos as células miocárdica serem despolarizadas.

Depois da despolarização, a célula começa a se repolarizar. Isto prepara a célula para o próximo estímulo.

A repolarização da célula corresponde as fases 1, 2 e 3 do potencial de ação.

FASE 1. Ocorre logo após o fechamento brusco dos canais rápidos de sódio. Os canais de potássio (K+) se abrem transitoriamente e os íons K+ se movem para fora da célula. Isto diminui o potencial de +20mV para 0 mV (fase de repolarização precoce). No ECG, a fase 1 e o começo da fase 2 coincidem com o ponto J, que marca o final do complexo QRS e o começo do segmento ST.

FASE 2. Ocorre um platô, isto é, o potencial elétrico se mantém em 0 mV (aproximadamente por 200 mseg). Isto se dá porque ocorrem, simultaneamente, dois fenômenos opostos: a entrada de íons Ca++ (íons positivos) e a saída de íons K+ (também positivos). Esta sobrecarga de cálcio no intracelular também é responsável pelo mecanismo de contração da célula muscular, já que o cálcio extracelular induza liberação do cálcio do retículo sarcoplasmico (liberação de cálcio do RS induzido pelo cálcio). Durante toda fase 2 a célula permanece em estado de contração. Durante esta fase a célula permanece em período refratário absoluto, isto é, não pode ser despolarizada por estímulo externo. No ECG, a fase 2 corresponde ao segmento ST, que normalmente é isoelétrico.

FASE 3. É a fase de repolarização rápida. Durante esta fase, o potencial elétrico se torna cada vez mais negativo, até atingir –90 mV. Isto ocorre porque os canais de cálcio se fecham (cessa a entrada de Ca++) e se mantem a saída de potássio para o espaço extracelular. A fase 3 corresponde à onda T do ECG.

FASE 4. Corresponde a fase de repouso. Nesta fase, o potencial da membrana se mantem em torno de – 90 mV, e se mantem assim até receber um novo estímulo externo. No ECG, a fase 4 corresponde ao segmento T-Q e geralmente é isoelétrico.

 

Fig 2. O potencial de ação inclui as fases de despolarização e de repolarização. A fase de despolarização, ou fase 0 (zero), consiste na entrada rápida de íons de sódio elevando o potencial elétrico da célula de —90 mV para +20 mV. A repolarização inclui a fase 1 (saída de íons de potássio), a fase 2 (saída de potássio e entrada de íons de cálcio) e a fase 3 (saída de íons de potássio). A saída de potássio cessa quando o potencial elétrico cai para —90 mV e assim permanece (fase 4 ou repouso) até o próximo potencial de ação.

 

Fig. 3 Resumo das fases do potencial de ação no cardiomiócito


Durante a fase de repolarização, a capacidade da célula cardíaca responder a um novo estímulo depende do seu estado elétrico (Fig. 4).

1) Período Refratário Absoluto: a célula está totalmente despolarizada e por isso não pode responder a nenhum tipo de estímulo. Corresponde as fases 1 e 2. É muito mais longo no músculo cardíaco.

2) Período Refratário Efetivo: A célula pode gerar um potencial, porém muito fraco para ser propagado; corresponde a pequena parte da fase 3.

3) Período Refratário Relativo: a célula se encontra parcialmente repolarizada e pode responder a um estímulo, desde que este seja forte o suficiente. Corresponde a parte da fase 3 e se estende até ao limiar de despolarização (– 70 mV).

 

Fig.4 O período refratário corresponde a capacidade de a célula gerar ou não um potencial de ação. Durante o período refratário absoluto (fase 1 e fase 2) não é possível um novo potencial. Durante o período refratário relativo podem ocorrer novos potenciais de ação, dependendo se estes são fortes o suficiente ou não.

 

 


Vídeo 1. Potencial de ação e de repouso. https://www.youtube.com/watch?v=bP3DxzY_q8k

 

1.3.1. Alterações eletrocardiográficas associadas à hipercalemia

Os primeiros estudos de hipercalemia em modelos experimentais caninos mostraram uma progressão previsível nas alterações eletrocardiográficas com o aumento das concentrações de potássio, porém, na prática clínica, uma ampla gama de efeitos pode ser observada

O potássio (K+) é um cátion monovalente essencial na fisiologia humana. É o principal cátion intracelular, com 98% do conteúdo total de potássio corporal mantido dentro da célula e apenas 2% no espaço extracelular. As reservas corporais totais de potássio são de aproximadamente 3.500 miliequivalentes (mEq) em um adulto saudável (aprox.. 50mEq/kg), com concentração sérica normal de 3,5 a 5,0 miliequivalentes por litro (mEq/L) e concentração intracelular de cerca de 150 mEq/L.

A homeostase do potássio é fortemente regulada pelos sistemas extracelular e intracelular. Apesar do fato de que a ingestão diária total de potássio pode exceder o conteúdo extracelular total, a mudança diária no conteúdo de potássio sérico normalmente não é superior a 10%. Esse controle cuidadoso é mantido por meio de mecanismos extracelulares e intracelulares. O potássio é principalmente (80-90%) excretado pelos rins, com pequenas quantidades armazenadas no fígado e no músculo esquelético. Dentro do néfron, o potássio passa livremente pelo glomérulo e é então reabsorvido, primeiro no túbulo contorcido proximal e depois novamente no ramo ascendente da alça de Henle. No túbulo contorcido distal, o potássio é então secretado na urina em troca da reabsorção de sódio. Um intrincado equilíbrio de ciclos de feedback negativo e positivo envolvendo o sistema renina-angiotensina-aldosterona, eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e outros sistemas manipula rapidamente a excreção e reabsorção renal e gastrointestinal de potássio, bem como a liberação do armazenamento de potássio do músculo hepático e esquelético locais de armazenamento para manter a homeostase extracelular.

A nível celular, existe um grande gradiente de concentração entre o potássio intracelular e extracelular. O potencial eletroquímico significativo desse gradiente é mantido pela bomba de sódio-potássio adenosina trifosfatase (Na/K ATPase), que gasta a energia contida no trifosfato de adenosina para mover o potássio para dentro da célula contra gradiente e contra o potencial eletroquímico, em troca de sódio (Na+). A bomba de Na+/K+ATPase funciona em conjunto com os canais de vazamento de potássio, o que permite que o potássio se mova para fora da célula a favor de seu gradiente de concentração. O potencial eletroquímico criado por este gradiente é crucial na manutenção do potencial de membrana de repouso (PMR) de aproximadamente -90 mV em miócitos cardíacos. Na figura 5 se mostram as alterações produzidas pela hipercalemia no potencial de repouso de membrana (PRM) e no potencial de ação (PA) assim como no traçado do eletrocardiograma (ECG).

 

Fig. 5. Efeito da hipercalemia no potencial de ação cardíaco e no traçado eletrocardiográfico.

 

A parte esquerda da figura ilustra o traçado do ECG e sua correlação com as diferentes fases do potencial de ação atrial e ventricular num paciente normocalêmico. Os painéis do meio e da direita ilustram como os níveis crescentes de concentração sérica de potássio influenciam o fluxo iônico do potencial de ação e, consequentemente o traçado do ECG. Eles também descrevem os efeitos subsequentes nas fases do potencial de ação e os desarranjos no traçado do eletrocardiograma associados ao aumento dos níveis de potássio sérico. A despolarização atrial se traduz na onda P do ECG.

A hipercalemia leve (K+ sérico >5.5 mEq/L), gera uma diminuição do gradiente de K+ ( efluxo de K+ lentificado), provocando um potencial de repouso de membrana (normalmente -90mV) menos negativo (novo equilíbrio eletroquímico) e, portanto, mais próximo do limiar de potencial de ação de -70 mV (miocito mais excitável). Isso leva a um incremento inicial do impulso. Em que pese a haver maior excitabilidade inicial, o fato de haver um aumento na concentração de K+ extracelular (hipercalemia) cria uma tendência a levar o potencial de ação para o lado mais negativo, reduzindo a disponibilidade de canais rápidos de Na+ voltagem dependentes (abrem quando se atinge o PA de -70mV). Isso torna a Fase 0 da despolarização mais lenta (redução do declive ou slope) diminuindo a amplitude da onda P (nas células do nó sinusal) e do QRS nas células ventriculares, mas alargando sua duração. Mesmo com uma despolarização mais lenta, ao atingir um PA de +20 a +30mV os canais rápidos de Na+ se fecham (permanecendo os de Ca++ abertos) e os de K+ de abrem. Apesar da hipercalemia reduzir o gradiente, sendo de grau leve, ainda assim a saída de K+, levará a célula a um potencial de repouso menos negativo durante a repolarização, de forma mais rápida ou acelerada o que se manifesta como uma maior declive da Fase 2 (expressada como depressão do ST) já que a entrada de cálcio nesta fase não consegue equilibrar a rapidez com que a negatividade do potencial de repouso se estabelece devido à soma da saída de K+ e a hipercalemia já existente. Esta mesma rapidez da repolarização atinge a Fase 3 que se manifesta no ECG como uma onda T alta, apiculada e de curta duração (em tenda). Devido ao encurtamento da duração da onda T, o QT resta também encurtado. A hipercalemia moderada (K+ sérico >6.5 mEq/L)diminui ainda mais a magnitude do gradiente de concentração transmembrana de potássio, retardando o efluxo de potássio, acentuando as alterações produzidas na hipercalemia leve, quanto à lentificação da despolarização atrial e ventricular (ondas P pequenas e alargadas, QRS alargado, PR alargado). Apesar que a repolarização na Fase 3 (onda T) estar acelerada e encurtada o intervalo QT pode começar a se alongar devido ao alargamento do PR e do QRS. O alargamento do QRS pode mimetizar um bloqueio de ramo esquerdo (BRE) ou direito (BRD), mas se diferencia deles devido a ser um alargamento uniforme, isto é, de todos seus componentes. Já no BRE somente se alargam suas partes inicias e no BRD suas partes finais. Na hipercalemia grave (K+ sérico >7.5 mEq/L), a medida que o potássio sérico continua a subir, há uma diminuição acentuada no número de canais de sódio ativados, o que retarda a propagação do potencial de ação. A piora da hipercalemia e a saída do potássio faz com que a repolarização se torne ainda mais rápida e mais curta. Ondas P largas e de baixa amplitude ocorrem em níveis superiores a 7,0 mEq/L, desaparecendo geralmente próximo de 8,0 a 9,0 mEq/L. O achado de QRS largo, associado com ondas P baixas ou ausentes, ajuda a distinguir hipercalemia por outras causas de atraso de condução intraventricular (por exemplo, BR). O nó sinoatrial é mais resistente a hipercalemia do que o miocárdio atrial. Um impulso do nó sinoatrial pode ser propagado para o ventrículo sem despolarização do músculo atrial (ou seja, sem onda P). Estudos caninos mostraram que traçados morfologicamente parecendo "taquicardias ventriculares" são na verdade ondas sinusais ou de origem nodal, com alargamento do QRS devido a desaceleração da condução. Quando o nível de potássio excede 10 mEq/L, a condução sinoventricular não ocorre mais. Neste ponto marca-passo juncional passivo ou acelerado podem assumir. Elevação do segmento ST ou, mais comumente, depressão do segmento ST (maior declive da Fase 2) pode ocorrer com níveis de concentração de potássio de 7,0 a 8,0 mEq/L. Isso pode levar ao diagnóstico errôneo de isquemia, infarto ou pericardite. Em raras ocasiões, ondas Q significativas podem ser vistas, confundindo ainda mais a imagem. O alargamento progressivo do QRS continua com proeminência da onda S e diminuição da amplitude da onda R. A hipercalemia adicional leva a uma fusão do QRS com a onda T, produzindo uma onda sinusoidal. Valores muito elevados de K+ podem levar o potencial de repouso para valores entre -65mV e -40mV, inativando os canais rápidos de sódio (se ativam com -70mV). Esse novo potencial de repouso bloqueia a condução do potencial de ação miocárdico, induzindo assim a parada cardíaca em diástole com a membrana despolarizada mas sem gerar potencial de ação. Ao não haver despolarização efetiva (potencial de ação) não acontecerá o fenômeno mecânico (contração muscular ou sístole) levando a assistolia. Entretanto, a hipercalemia não inativa completamente os canais lentos de sódio (janela de sódio que ativam pela chegada de uma despolarização neuronal), aumentando sua concentração intracelular de maneira lenta. Associado a isso, o canal de cálcio tipo L (dihidropiridínico), que é ativado com potencial entre -20mV a -30mV, faz com que o cálcio adentre o citosol, fenômeno esse chamado de janela do cálcio. A seguir, a bomba antiporte Na+/Ca2+ é ativada ao contrário, retirando sódio do intracelular e internalizando o íon cálcio. A bomba Na+/K+ será inibida pela concentração elevada do potássio extracelular, permitindo com que o nível de Na+ intracelular permaneça elevado, perpetuando a ação da bomba antiporte Na+/Ca2+ funcionando ao contrário. Esse panorama intracelular de cálcio elevado leva a contratura do miócito mesmo sem deflagrar potencial de ação, com gasto energético, podendo ocasionar fibrilação ventricular. O sódio elevado pode provocar edema celular e citólise. Estes fenômenos são vistos na cardioplegia hipercalêmica que podem ser agravados ainda mais pela isquemia, reperfusão, acidose e hipotermia (Dittrich KL, Walls RM. Hyperkalemia: ECG manifestations and clinical considerations. J Emerg Med. 1986;4(6):449-55. Geoffrey P. Dobson, et.al. Hyperkalemic cardioplegia for adult and pediatric surgery: end of an era?. Front. Physiol., 28 August 2013 Sec. Clinical and Translational Physiology Volume 4 - 2013).

As alterações do ECG têm sido correlacionadas com faixas de hipercalemia (Fig. 6).

Classicamente, a primeira evidência de hipercalemia no ECG é uma onda T pontiaguda e de base estreita, ocorre quando a concentração sérica de potássio é de aproximadamente 5,5 mEq/L. Isso provavelmente é causado por um aumento na excitabilidade do miócito cardíaco e um encurtamento da fase de repolarização do potencial de ação. 

Com um potássio sérico de aproximadamente 6,5 mEq/L, a diminuição adicional do potencial de membrana em repouso causa um atraso no potencial de ação, causando prolongamento do segmento PR, seguido de alargamento do QRS. A bradicardia pode ocorrer à medida que a automaticidade do nó SA é prejudicada. À medida que o atraso da condução intraventricular progride, podem ser observadas morfologias QRS semelhantes a bloqueio de ramo. 

À medida que as concentrações de potássio atingem 8,0-9,0 mEq/L, a onda P pode ser achatada ou perdida à medida que a amplitude do potencial de ação diminui ainda mais.

Em concentrações de potássio superiores a 10 mEq/L, a função do nó SA é perdida e assumindo o comando o nó A-V, ocorrendo ritmo juncional, com eventual progressão para uma morfologia semelhante a uma onda sinusoidal à medida que as ondas T e QRS se aproximam. Isso acaba resultando em fibrilação ventricular, atividade elétrica sem pulso (AESP) ou assistolia. 

Outras anormalidades no eletrocardiograma foram relatadas, incluindo encurtamento precoce de PR e QT, elevação do segmento ST que pode mimetizar infarto do miocárdio e bloqueios de condução atrioventricular e fascicular.

 

Fig. 6. Alterações eletrocardiográficas que podem ser observadas com hipercalemia .

 

1.3.2. Um eletrocardiograma normal não exclui hipercalemia.

Infelizmente, a progressão ordenada das alterações eletrocardiográficas hipercalêmicas descritas em modelos experimentais não equivale a um padrão previsível na prática clínica. Várias séries de casos ilustraram pacientes com hipercalemia grave (≥ 8,0 mEq/L) sem nenhum dos achados clássicos do eletrocardiograma. Szerlip, et al. descreveram dois pacientes com concentração sérica de potássio > 9,0 mEq/L com eletrocardiograma inicial apenas notável por alterações inespecíficas da onda T. Dois relatos de casos semelhantes notaram as inversões da onda T nas derivações precordiais como as únicas anormalidades do ECG, apesar das concentrações séricas de potássio superiores a 10,0 mEq/L. Em ambos os casos, as inversões da onda T foram resolvidas após o tratamento da hipercalemia. Martinez-Vea, et al. expandiu isso com uma série de 7 casos, todos com potássio ≥8,0 mEq/L, com várias alterações eletrocardiográficas inespecíficas. Além disso, as anormalidades do ECG podem variar drasticamente em um período muito curto de tempo. A maioria desses casos ocorreu em pacientes criticamente enfermos com múltiplas comorbidades e anormalidades metabólicas graves concomitantes, o que pode sugerir que as manifestações eletrocardiográficas de hipercalemia não se devem apenas ao nível de potássio sérico. Tem sido sugerido que a rapidez de início, pH sérico, anormalidades eletrocardiográficas subjacentes, medicamentos e outros fatores são críticos para determinar o efeito clínico da hipercalemia na condução cardíaca. Infelizmente, esses efeitos são extremamente difíceis de prever.

Estudos maiores repetiram os resultados dessas séries de casos. Um estudo de coorte retrospectivo de 220 episódios de hipercalemia encontrou alterações eletrocardiográficas “típicas” em apenas 43% dos casos com concentração de potássio ≥ 6 mEq/L e em apenas 55% dos casos com concentrações de potássio > 6,8 mEq/L. Da mesma forma, em um estudo retrospectivo de 90 pacientes internados com hipercalemia, Montague et al. observaram alterações eletrocardiográficas em 52% dos casos e picos de ondas T em 32% dos casos. Apenas 39% dos pacientes com concentração de potássio ≥ 7,2 mEq/L apresentaram alterações no ECG. Fordjour, et al. avaliaram prospectivamente 154 episódios de hipercalemia em pacientes internados e constataram que apenas 50% dos pacientes com K ≥6,5 mEq/L apresentavam alterações eletrocardiográficas. Anormalidades registradas incluíram ondas T apiculadas em 28% e anormalidades de condução, incluindo bloqueio AV de 1º grau e QRS prolongado em 8 e 9% dos pacientes, respectivamente. Curiosamente, eles relataram que pacientes com anormalidades de condução tinham uma concentração média de potássio mais baixa do que aqueles com ondas T apiculadas, ao contrário do padrão evolutivo clássico. Em um estudo retrospectivo de 175 consultas de emergência com uma concentração média de potássio de 6,5 mEq/L, Freeman et al. encontraram que o ECG inicial foi interpretado como anormal em 83% dos casos. Aproximadamente um terço dessas anormalidades eram ondas T apiculadas e um terço eram anormalidades de ST não específicas. Na análise retrospectiva do ECG dos autores, 50% dos ECGs foram interpretados como tendo qualquer anormalidade consistente com hipercalemia, 24% apresentaram anormalidades inespecíficas do segmento ST e 17% foram considerados normais. Wrenn, et al. relataram que o ECG tem sensibilidade de 34% a 43% e especificidade de 85% para hipercalemia. A sensibilidade aumentou para 55 a 62% para pacientes com potássio sérico superior a 6,5 ​​mEq/L. Um estudo mais recente relatou sensibilidade e especificidade de 19% e 97%, respectivamente, para eletrocardiogramas lidos por médicos de emergência em uma coorte de pacientes com hipercalemia moderada a grave, com valor preditivo positivo de 92% e valor preditivo negativo de 46%. Quando restrita à hipercalemia grave, a sensibilidade aumentou para 29%, enquanto a especificidade diminuiu marginalmente para 94%.


1.3.3. Alterações no eletrocardiograma podem ajudar a prever resultados adversos na hipercalemia

Embora o ECG possa não prever de forma confiável a hipercalemia, as evidências disponíveis sugerem que as alterações do ECG podem prever resultados adversos da hipercalemia, como bradicardia sintomática, arritmia ventricular, parada cardíaca ou morte. Na série de casos citada acima, nenhum dos pacientes com eletrocardiogramas normais apresentou eventos adversos graves.

Em 2017, Durfey, et al. publicaram um estudo avaliando a associação entre achados de eletrocardiograma e eventos adversos de curto prazo em pacientes com hipercalemia no setor de emergência. Em 188 pacientes com uma concentração média de potássio sérico de 7,1 mEq/L, eles encontraram 71% dos pacientes com qualquer anormalidade eletrocardiográfica sugestiva de hipercalemia, e 15% dos pacientes tiveram um evento adverso, mais comumente bradicardia sintomática (12%). Nenhum paciente com evento adverso apresentou ECG normal. Os achados eletrocardiográficos mais frequentes em pacientes com eventos adversos foram prolongamento do QRS (79%) e FC < 50 (61%), e múltiplas anormalidades eletrocardiográficas foram encontradas em 86%. Apenas 26% dos pacientes com eventos adversos apresentaram ondas T apiculadas. Embora bem realizado, este estudo relativamente pequeno, retrospectivo e de centro único é o único a avaliar diretamente se o ECG pode prever resultados adversos devido à hipercalemia.

Ao todo, as evidências disponíveis indicam que, embora um eletrocardiograma normal não exclua hipercalemia, ele confere um risco muito menor de eventos adversos, e um eletrocardiograma com atrasos de condução pode ajudar a identificar pacientes com alto risco de toxicidade cardíaca com risco de vida . No entanto, dada a falta de estudos avaliando se o eletrocardiograma pode prever resultados adversos devido à hipercalemia, ainda pode haver casos em que um eletrocardiograma normal progride rapidamente para atrasos de condução com risco de vida. Uma vez que o ECG está frequentemente disponível antes dos valores laboratoriais e os eventos adversos ocorrem frequentemente antes da identificação laboratorial da hipercalemia, ele continua sendo uma ferramenta importante para orientar o tratamento empírico da hipercalemia grave no paciente crítico. Pacientes hipercalêmicos com anormalidades isoladas da onda T têm, em geral, baixo risco de um evento adverso grave, enquanto pacientes com anormalidades de condução e outras anormalidades eletrocardiográficas mais graves merecem monitoramento rigoroso e tratamento rápido.


Recomendação: Um eletrocardiograma normal não exclui hipercalemia, mas está associado a uma menor probabilidade de eventos adversos graves.

 

1.4. MITO 4: TODOS OS PACIENTES COM HIPERCALEMIA DEVEM SER TRATADOS COM CÁLCIO

O cálcio intravenoso foi descrito pela primeira vez como tratamento para arritmias relacionadas à hipercalemia em 1950 por Merrill, et al. Isso foi posteriormente replicado em uma pequena série de casos por Chamberlain, et al. em 1964, e desde então, o cálcio intravenoso permaneceu como um dos pilares do tratamento da hipercalemia aguda. Sugere-se que o aumento da concentração sérica de cálcio “estabiliza” os miócitos aumentando o limiar de despolarização (tornando-os menos “excitáveis”). 

O aumento da concentração de cálcio extracelular neutraliza os efeitos cardíacos da hipercalemia por três mecanismos (Parham WA, Mehdirad AA, Biermann KM, Fredman CS. Hyperkalemia revisited. Tex Heart Inst J. 2006;33(1):40-7)

1) Como já visto, no cenário de hipercalemia, o potencial de repouso da membrana é deslocado para um valor menos negativo, ou seja, de -90 mV para -80 mV, o que, por sua vez, move o potencial de repouso da membrana para mais perto do potencial de ação normal de -75 mV, resultando em aumento da excitabilidade dos miócitos. Quando o cálcio é administrado, o potencial de ação muda para um valor menos negativo (ou seja, de -75 mV para -65 mV), de modo que a diferença inicial entre os potenciais de repouso e de ação de 15 mV pode ser restaurada. Por exemplo, se um miócito tem um potencial de membrana de repouso normal de -90 mV e um potencial de ação normal de -75 mV, então 15 mV de despolarização são necessários antes de atingir o potencial de ação. No cenário de hipercalemia, o potencial de repouso da membrana pode mudar para um novo nível (isto é, -80 mV), de modo que agora apenas 5 mV de despolarização devem ocorrer antes de atingir o potencial de ação de -75 mV. Quando o cálcio é administrado, o potencial de ação torna-se menos negativo (ou seja, muda de -75 mV para -65 mV). Assim, a diferença entre o potencial de membrana em repouso induzido por hipercalemia de -80 mV e o potencial de ação induzido por cálcio de -65 mV novamente será de 15 mV, e a excitabilidade dos miócitos pode retornar ao normal.

2) O aumento da concentração extracelular de cálcio altera a relação entre os canais de sódio voltagem-dependentes (responsáveis ​​pela fase 0 do potencial de ação cardíaco) e o potencial de membrana, fazendo com mais canais de sódio estejam ativos em qualquer potencial. O recrutamento de mais canais de sódio dependentes de voltagem aumenta a taxa de despolarização durante o potencial de ação cardíaco, retornando a propagação do impulso de volta ao níveis fisiológicos. 

3) O aumento da concentração de cálcio extracelular aumenta a corrente de entrada de cálcio e o gradiente de cálcio através do miócito cardíaco, aumentando a velocidade de propagação do impulso durante as fases 2 e 3 do potencial de ação cardíaco. Esses mecanismos se combinam para causar uma normalização rápida, muitas vezes dramática, dos atrasos de condução induzidos por hipercalemia no ECG ou no monitoramento cardíaco.

Apesar de ser um pilar no tratamento da hipercalemia aguda, a administração intravenosa de cálcio não é isenta de riscos. As sais de cálcio podem causar lesões nos tecidos moles se ocorrer extravasamento. Embora a lesão possa ocorrer com qualquer preparação, a gravidade da lesão do tecido mole parece estar correlacionada com a concentração de cálcio. Séries históricas de casos sugerem que a administração de cálcio pode exacerbar a toxicidade da digoxina . Embora evidências mais recentes lancem dúvidas sobre essa associação, cuidado extra deve ser tomado ao tratar pacientes com suspeita de toxicidade por digoxina com taxas de infusão diminuídas. Dado que a administração de cálcio IV não é isenta de riscos, deve-se tomar cuidado para reservar seu uso para pacientes com alto risco de complicações cardíacas de hipercalemia.

Ampolas de cloreto de cálcio 10% (10ml) contém, 1gr/10ml, 1ml = 27,3 mgCa = 1,4 mEqCa)  e as de gluconato de cálcio (gluconato de cálcio 10% (10ml), 1gr/10ml, 1ml = 8.9 mgCa = 0.45 mEqCa). Usualmente recomenda-se Gluconato de Cálcio 10%, 10 ml (1 ampola) em uma solução de glicose 5% – 100 ml ou Cloreto de Cálcio 10%, 3-4 ml (1/3 da dose do gluconato) em SG 5% – 100 ml, administrados em 3-5 minutos. 

Nenhum ECR comparou a eficácia ou segurança do cloreto de cálcio. Várias fontes citam a diminuição do risco de lesão de tecidos moles como justificativa para o uso de gluconato de cálcio como agente de primeira linha, com cloreto de cálcio reservado para pacientes em parada cardíaca. No entanto, como o gluconato de cálcio normalmente vem em doses de 10 mL de solução a 10%, são necessárias 2 a 3 doses sequenciais para atingir uma dosagem equivalente de 1 g de cloreto de cálcio (dose do cloreto = 3 vezes a dose do gluconato). Os tempos ideais de infusão das preparações de cálcio não foram estudados. Em casos de instabilidade hemodinâmica, atrasos graves de condução ou parada cardíaca, a injeção intravenosa rápida de cloreto de cálcio é indicada, pois geralmente está mais prontamente disponível e pode ser administrada mais rapidamente do que o gluconato de cálcio. No entanto, a administração excessiva de preparações de cálcio pode causar rubor, bradicardia, náuseas ou vómitos, ou alterações transitórias da pressão arterial. Assim, é razoável infundir cálcio durante 5 minutos na ausência de instabilidade hemodinâmica ou parada cardíaca. Na ausência de instabilidade hemodinâmica ou parada cardíaca, é razoável o uso de gluconato de cálcio, pois há menor risco de necrose tecidual se a medicação extravasar em comparação ao cloreto de cálcio. Além disso, os estudos não encontraram diferença na taxa ou valor do aumento da concentração sérica de cálcio ionizado ao administrar doses equivalentes de qualquer formulação.

 

1.4.1. Uso clínico

Apesar de muitas orientações, revisões e recomendações profissionais, não há evidências de alta qualidade sobre quais pacientes hipercalêmicos se beneficiam da administração de cálcio intravenoso. Há um consenso geral de que o cálcio é indicado para pacientes com evidência de atrasos de condução ou arritmias típicas de hipercalemia no ECG, mesmo que a concentração de potássio seja desconhecida. Alterações significativas no ECG colocam os pacientes em risco muito maior de eventos adversos graves e esses eventos geralmente ocorrem antes do relatório laboratorial da concentração de potássio. Também é consenso que o cálcio é indicado para pacientes em parada cardíaca com evidência eletrocardiográfica de hipercalemia, mesmo na ausência de evidência laboratorial. Da mesma forma, há consenso de que pacientes com hipercalemia leve (< 6,0–6,5 mEq/L para o autor do artigo de referência) sem alterações eletrocardiográficas não devem ser tratados com cálcio.

No entanto, não há consenso sobre se o cálcio é indicado na hipercalemia grave (> 6,0–6,5 mEq/L para o autor do artigo de referênciasem alterações eletrocardiográficas ou com ondas T apiculadas isoladasPacientes sem atrasos de condução têm menor risco de eventos adversos induzidos por hipercalemia e, como a infusão de cálcio tem algum potencial de dano, é razoável evitar dar cálcio na ausência de alterações no ECG. Embora as ondas T apiculadas por si só não estejam associadas a eventos adversos significativos, a rapidez da descompensação aos atrasos de condução é desconhecida, provavelmente multifatorial e altamente variável de paciente para paciente. Sem evidências de alta qualidade, cabe ao clínico usar seu melhor julgamento caso a caso. Em qualquer um desses cenários, a decisão de tratar com cálcio não deve atrasar o início de outros tratamentos para diminuir a concentração sérica de potássio. 

A Tabela 1 resume as diretrizes atuais para o uso de cálcio na hipercalemia.

Tabela 1. Recomendações para o tratamento com cálcio na hipercalemia

Fonte: The Renal Association, European Resuscitation Council, American Heart Association

 

Recomendação: O tratamento com cálcio intravenoso é indicado apenas para pacientes com hipercalemia manifestando alterações eletrocardiográficas.

 

2. CONCLUSÃO

A hipercalemia é uma anormalidade eletrolítica comum e potencialmente fatal. Equívocos e controvérsias sobre sua gestão têm levado a estratégias de gestão conflitantes. 

 A avaliação clínica, eletrocardiográfica e laboratorial devem ser pilares na avaliação deste distúrbio. No entanto, em pacientes críticos, sedados e intubados, o quadro clínico pode restar por vezes mascarado ou atrasado, devendo-se sempre se atentar as alterações do traçado do ECG contínuo que se apresentam nos monitores cardíacos, assim como aos valores de K⁺ nas rotinas laboratoriais. Dificilmente hipercalemias graves se instalam de um dia para outro, porém, os pacientes muitas vezes já chegam hipercalcêmicos graves nas emergências, especialmente pacientes portadores de DRC em tratamento irregular ou com outras causas sobrepostas de hipercalemia. Não poucas vezes tais pacientes usam de forma contínua medicamentos que provocam algum grau de rabdomiólise (estatinas por exemplo ou propofol endovenos na UTI).

Os profissionais devem se atentar a determinar o momento em que a hipercalemia deve ser tratada de forma intensiva com medicações como sais de cálcio, soluções polarizantes (glico-insulina), bicarbonatode sodio, beta-2 agonistas, furosemida ou resinas trocadoras de potássio (PSS ou PSC). Deve se lembrar que o manejo da hipercalemia aguda de forma intensiva deve ser feito apenas quando o exame clínico, auxiliado pelo padrão de ECG confrontado com o nível sérico de potássio, se incline pela existência de risco de vida. Nestes casos, não há dúvida que o manejo deverá ser sempre intensivo, se atentando para o uso das doses certas, pela via certa e nos tempos certos de infusão.

Recomenda-se que os médicos continuem a avaliar as evidências disponíveis e tomem decisões de manejo com base na análise risco versus benefício de cada uma dessas intervenções.



[1] Arnav A. Gupta, Michael Self, Matthew Mueller, Gabriel Wardi, Christopher Tainter, Dispelling myths and misconceptions about the treatment of acute hyperkalemia. The American Journal of Emergency Medicine, Volume 52, 2022, Pages 85-91. Inteiro teor acessível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0735675721009347#!

[2] Department of Emergency Medicine, University of California at San Diego, 200 W. Arbor Drive, San Diego, CA 92013, USA. Corresponding author at: Department of Emergency Medicine, University of California at San Diego, 200 W. Arbor Drive, San Diego, CA 92013, USA. E-mail: aagupta@health.ucsd.edu

[3] https://pebmed.com.br/hipercalemia-revendo-conceitos-e-terapeutica/

[4] https://consultas.anvisa.gov.br/#/bulario/q/?nomeProduto=CALNATE

[5] https://consultas.anvisa.gov.br/#/bulario/

[6] https://consultas.anvisa.gov.br/#/medicamentos/q/?nomeProduto=SORCAL

[7] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/medicamentos/novos-medicamentos-e-indicacoes/lokelma-r-ciclossilicato-de-zirconio-sodico-hidratado-novo-registro

[8] https://consultas.anvisa.gov.br/#/pareceres/q/?nomeProduto=Lokelma

https://consultas.anvisa.gov.br/#/medicamentos/25351367698201829/?nomeProduto=LOKELMA

[9] http://angomed.com/electrofisiologia-basica/