sábado, 26 de agosto de 2023

 TROMBÓLISE E INVESTIGAÇÃO DE DISSECÇÃO AGUDA DE AORTA.

PAPEL DO ALARGAMENTO DO MEDIASTINO


Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico intensivista. Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.




O exame de radiografia (RX) na avaliação do tórax representa o método de imagem mais antigo, mais barato, mais disponível, utilizado para avaliação das doenças torácicas. Está disponível tanto a nível hospitalar como extra-hospitalar (unidades de pronto atendimento) e ainda pode ser feito por equipamentos portáteis, permitindo a realização de exames à beira do leito de pacientes acamados no centro cirúrgico, unidades de terapia intensiva ou nas salas de atendimento de urgência e trauma. Entretanto, apesar da sua ampla disponibilidade e versatilidade, sua acurácia, sensibilidade e especificada no auxílio do diagnóstico por imagem depende de vários fatores como, caraterísticas do paciente (tipo de doença, anatomia do tórax, localização da estrutura dentro do tórax etc.), tipo de equipamento usado (fixo ou portátil), incidência (póstero-anterior, anteroposterior, perfil, obliqua, etc.) assim como os parâmetros técnicos a serem utilizados (grau de penetração da radiação, inspiração correta e alinhamento).  A radiografia de tórax padrão com o paciente em ortostase (de pé), em inspiração profunda e na incidência P-A e em perfil, realizada por um equipamento fixo na sala de RX, com uma distância entre o paciente e a ampola (distância foco-paciente) de 1,5 – 1,8 metros, não é possível na grande maioria dos pacientes graves que usualmente estão acamados e em decúbito dorsal. Devido à distância entre a ampola emissora de feixes de raio X e o detector, a imagem em P-A é preferida em relação à A-P, pois aproxima o coração do detector e reduz sua magnificação. Os feixes do raio X, após emitidos pela ampola, se divergem até chegar no paciente e no detector. As estruturas mais próximas do detector vão se apresentar com o tamanho mais próximo ao real, sem magnificação. Na radiografia feita em A-P, a divergência dos raios aumenta a sombra do coração, que é mais anterior no tórax. Em pacientes deitados, as costelas posteriores apresentam-se mais horizontais. O diafragma está mais alto e o volume pulmonar diminuído A posição em A-P, portanto, cria uma imagem radiográfica de maiores dimensões o que poderia gerar uma falsa impressão de que a estrutura avaliada se encontra aumentada de tamanho (tórax pouco inspirado, mediastino alargado, aumento da área cardíaca, diafragma elevado, parênquima pulmonar mais opacificado). Note-se abaixo a imagem comparativa do mesmo paciente em pé e deitado (Fig. 1)[1].

 

Fig 1. Radiografia do tórax em PA ortostático (esquerda) e AP deitado (direita). Notar a diferença de qualidade das imagens, sendo que a imagem em PA permite melhor avaliação dos pulmões e estruturas mediastinais.

Uma das situações de maior complexidade na qual a radiografia de tórax tem muita importância e relevância é na avaliação do mediastino para descartar uma dissecção aguda de aorta (DAA) visando indicar trombólise num paciente com diagnóstico de infarto agudo de miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST (IAMCSST) com um tempo porta-balão maior de 120 minutos. No cenário extra-hospitalar isso é relativamente frequente nas unidades de pronto atendimento (UPAs) que não contam com retaguarda de unidade de hemodinâmica para realização de cinecoronarioangiografias de urgência ou as mesmas estão com todas suas salas ocupadas. Ainda, no cenário intra-hospitalar isso também pode ser possível para pacientes que se encontram nas salas de emergência do pronto socorro (PS) ou nas unidades de terapia intensiva (UTI).

Nas situações em que o tempo porta-balão for maior do que 120 minutos ou não se disponha de serviço de cardiologia intervencionista com equipe experiente e apta a realizar intervenção coronariana percutânea (ICP) primária, recomenda-se a trombólise do IAMCSST. Entretanto, antes de indicar o fibrinolítico as diretrizes orientar avaliar as contraindicações absolutas relativas. Uma das contraindicações absolutas listas é a dissecção aguda de aorta (DAA). Sendo absoluta, torna-se obrigatório afastar essa possibilidade.

Nesse sentido a V Diretriz Brasileira de Infarto Agudo de Miocárdio com Supradesnivelamento do Segmento ST (2015), faz a seguinte recomendação sobre o uso de fibrinolíticos como terapia de reperfusão[2]:

De acordo com as evidências disponíveis, nas situações de atendimento pré-hospitalar, o retardo máximo aceitável para a realização da estratégia invasiva de ICP primária é de 120 minutos ou, idealmente, 90 minutos, considerando-se, para esses casos, o intervalo de tempo entre o “primeiro contato médico-balão”. Na impossibilidade de ICP ou expectativa de tempo “primeiro contato médico-balão” superior a 90 minutos, o uso de fibrinolítico deve ser uma opção, desde que não haja contraindicação. (grifei)

Os fibrinolíticos têm indicação clara nos pacientes com sintomas sugestivos de SCA, associada a presença, no ECG, de supradesnivelamento persistente do segmento ST em pelo menos duas derivações contíguas ou de um novo ou presumivelmente novo BRE, desde que não existam contraindicações. (grifei)

As diretrizes citadas estabelecem uma lista de contraindicações como mostrado no quadro abaixo, destacando a DAA como contraindicação absoluta:

Torna-se, portanto, um grande desafio descartar, a possibilidade de DAA.

A dissecção aguda de aorta consiste em um evento no qual ocorre uma laceração na camada íntima do vaso, acarretando a formação de um falso lúmen, geralmente entre as camadas média e adventícia. Essa falsa luz é produzida pela infiltração de sangue, dado o evento de delaminação anterógrada e retrógrada de suas paredes, sendo separada da luz verdadeira por um septo denominado retalho de dissecção[3]. Diante da suspeita clínica e radiológica (Rx de tórax), após a estabilização, a confirmação diagnóstica é feita com Ecocardiograma transesofágico I (ETE), angiografia de aorta por TC (angio-TC de aorta) ou angiografia por ressonância magnética (angio-RM). Os achados de retalho de íntima e lúmen duplo confirmam a dissecção[4].

Classificação da Dissecção Aguda de Aorta[5]:

CLASSIFICAÇÃO DE STANFORD:

Tipo A: envolvimento da aorta ascendente

Tipo B: envolvimento da aorta descendente (distal à origem da artéria subclávia esquerda)

CLASSIFICAÇÃO DEBAKEY:

Tipo I: A mais frequente. A disseção tem origem na aorta ascendente e envolve a aorta descendente.

Tipo II: A disseção envolve apenas a aorta ascendente.

Tipo III: A disseção envolve apenas a aorta descendente (distal à artéria subclávia).

Tipo IIIa: termina acima do diafragma

Tipo IIIb: estende-se inferiormente ao diafragma



Em cenários sem possibilidade de realizar ETE, angio-TC ou angio-RM imediatas, a suspeita clínica deve ser aprimorada. Para tanto, a SUSPEITA CLÍNICA é de suma importância[6].[7]:

FATORES PREDISPONENTES: Hipertensão arterial sistêmica (HAS), valva aórtica bicúspide, doenças do tecido conectivo (síndrome de Marfan, Síndrome de Ehlers-Danlos, Síndrome de Loeys-Dietz), coarctação da aorta, aneurisma da aorta, cirurgia cardíaca prévia, gravidez e trauma torácico.

DOR. Tipicamente a dissecção aórtica, caracteriza-se pelo desenvolvimento abrupto de dor precordial ou interescapular excruciante, com frequência descrita como lancinante, dilacerante ou violenta. Em geral, a dor migra da localização original, à medida que a dissecção se estende ao longo da aorta.

SÍNCOPE. Até 20% dos pacientes desenvolvem síncope em virtude da intensidade da dor, ativação do barorreceptor aórtico, obstrução de artéria cerebral extracraniana ou tamponamento cardíaco. Hipotensão e taquicardia podem indicar sangramento ativo.

SINAIS DE MÁ PERFUSÃO. Às vezes, os pacientes apresentam sintomas de má perfusão (isquemia por obstrução resultante da dissecção), como acidente vascular encefálico, infarto do miocárdio, infarto intestinal, insuficiência renal, paraparesia ou paraplegia decorrentes da interrupção do suprimento sanguíneo a um leito vascular específico, incluindo medula espinal, cérebro, coração, rins, intestino ou extremidades. A interrupção do suprimento sanguíneo ocorre com mais frequência por obstrução aguda distal da artéria pela falsa luz. Oclusão de uma artéria do membro pode causar sinais de isquemia periférica ou neuropatia. A oclusão de artéria renal pode provocar anuria ou oligúria.

PULSOS E PRESSÃO ARTERIAL. Cerca de 20% dos pacientes têm déficits parciais ou completos dos principais pulsos arteriais, os quais podem aumentar e diminuir. Pode haver diferença nos pulsos na pressão arterial dos membros superiores > 20mmHg (às vezes > 30 mmHg) devido à dissecção da artéria inominada ou da subclávia. Hipertensão arterial ocorre quando há dissecção aórtica distal; enquanto a hipotensão e choque circulatório estão associados à dissecção proximal, além de resultar de situações como tamponamento cardíaco, insuficiência aórtica grave, ruptura aórtica intrapleural/ peritoneal. O tamponamento cardíaco pode provocar pulso paradoxal e distensão venosa jugular.

SOPROS. Sopro carotídeo intenso, devido à dissecção da inominada ou da artéria carótida. Sopro de regurgitação aórtica é auscultado em cerca de 50% dos pacientes com dissecção proximal devido à dissecção dos folhetos valvares aórticos, que podem se deformar e prolapsar para o ventrículo durante a diástole. Sopro diastólico, audível no foco aórtico e aórtico acessório, com irradiação para o ictus. É possível ouvir sopro de regurgitação aórtica.

SINDROME NEUROLOGICA. Pode ocorrer AVC (acidente vascular cerebral), quando há acometimento da artéria inominada ou carótida esquerda; ocorre paraplegia ou paraparesia quando compromete a artéria espinal.

SINDROME CORONARIANA.  Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) secundário a dissecção proximal que oclui o óstio coronário, mais comumente a artéria coronária direita, acarretando infarto da parede inferior. Pacientes com dor torácica de forte intensidade, alterações eletrocardiográficas de infarto do miocárdio agudo de parede inferior e sopro previamente não documentado de insuficiência aórtica (IA) devem suscitar alta suspeita de dissecção da aorta tipo I até a artéria coronária direita (causando infarto do miocárdio de parede inferior) e da valva aórtica (causando insuficiência aórtica)

 

PAPEL DA RADIOGRAFIA DE TÓRAX[8] [9] [10].

Os pacientes devem ser submetidos à radiografia do tórax e, em 60 a 90% dos casos, evidencia-se ALARGAMENTO DO MEDIASTINO, geralmente com abaulamento localizado, que significa ponto de origem. O derrame pleural esquerdo é comum devido a vazamento de sangue ou líquido seroso inflamatório no espaço pleural esquerdo (Fig2). Contudo, possui limitada sensibilidade, especialmente para as dissecções do tipo B de Stanford. O exame normal não afasta o diagnóstico.

 

Fig 2. Achados radiológicos.

Como interpretar corretamente a Radiografia de tórax diante da suspeita clínica de DAA?

A acurácia da radiografia simples de tórax deriva sua capacidade de discernir os contornos da aorta devido ao contraste entre os pulmões cheios de ar e a aorta cheia de líquido. Os contornos normais da aorta são bastante familiares e geralmente muito bem visualizados. A Fig. 3 exibe uma radiografia de tórax normal, bem como uma com locais marcados onde a aorta dilatada pode se manifestar.


Fig 3. Rx de tórax com linhas de visualização da aorta.

Na Fig. 4, vemos exemplos de imagens de aneurismas torácicos diagnosticados por radiografia de tórax.


Fig. 4. Aneurismas de aorta torácica.

3A: A aorta ascendente, substancialmente aumentada, aparecerá fora da silhueta cardíaca superior direita.

3B: O botão aórtico normalmente deve ser pequeno e distinto no mediastino superior esquerdo. Este botão aumentará no caso de aneurisma de arco. O botão fica indistinto em pacientes com dissecção aórtica, devido ao edema e hemorragia nos tecidos.

3C. A aorta descendente normalmente forma uma faixa limpa e nítida à esquerda da coluna vertebral. Observa-se claramente a dilatação aneurismática da aorta descendente, com abaulamento desta faixa à direita.


Além disso, em casos de aumento grave da aorta, a traqueia, o brônquio principal esquerdo ou o esôfago podem ser observados deslocados em uma radiografia simples de tórax.

Pode haver separação da calcificação intimal (SINAL DO CALCIO) 1 cm (10mm) do contorno externo do botão aórtico; presença de DUPLA DENSIDADE (DUPLO CONTORNO) ou PERDA DO BOTÃO AÓRTICO (Fig. 5, 6, 7, 8).


Fig. 5. O SINAL DE CÁLCIO é um achado na radiografia de tórax que sugere dissecção da aorta. É a separação da calcificação íntima da borda externa do tecido mole da aorta em 10 mm. Este não é um sinal importante para os radiologistas, visto que raramente é visto. A distância indicada pela seta representa a espessura da parede do aneurisma. Figura cortesia do Dr. MJ Fuller. Fonte: http://www.wikiradiography.net/.


Fig 6. SINAL DO CÁLCIO

 

Fig 7. Sinal do DUPLO CONTORNO OU DUPLA DENSIDADE.

 

Fig 8. PERDA DO BOTÃO AÓRTICO

 

LARGURA MEDIASTINAL

As diretrizes da American Heart Association e do American College para doença da aorta torácica (2010) recomendam a avaliação da largura mediastinal em pacientes avaliados para dissecção aórtica se o índice de suspeita for baixo. No entanto, deve-se ter em mente que seu valor diagnóstico na dissecção aórtica é limitado e que mais de 10% dos pacientes podem apresentar radiografia de tórax normal.

“Alargamento de mediastino” ou “mediastino alargado” é definido como mediastino com largura mediastinal máxima (LMM) > 6 cm em uma radiografia de tórax póstero-anterior (P-A) vertical ou > 8 cm em radiografia de tórax ântero-posterior em decúbito dorsal (A-P) medido a nível do botão aórtico[11]  [12]. O valor de 8 cm vem do estudo publicado em 1976 por Donald G. Marsh e col., medindo mediastino em pacientes com ruptura traumática de aorta, em decúbito dorsal, na incidência AP e com o gerador a 100 cm do tórax[13]. Outros estudos têm seguido esse mesmo valor para ruptura traumática de aorta, mas raramente em ruptura aórtica torácica não traumática ou dissecção aórtica, que é muito mais comum, mas muitas vezes menos enfatizada e com pouca atenção recebida. A largura mediastinal para trauma de aorta tem sido o critério mais comumente utilizado, com um valor de corte citado variando de 7,3 a 9,4 cm. Apesar de sua precisão diagnóstica relativamente baixa com especificidade significativamente baixa, descobriu-se que era a ferramenta radiográfica mais poderosa e melhor especificidade foi observada com o uso da largura mediastinal esquerda (LME), medida desde a linha média da traqueia até a borda lateral esquerda do mediastino ao nível do arco aórtico e da razão de largura mediastinal (RLM = LMM/LME)[14].

Em 2012, Vincent Lai e col., revisaram retrospectivamente todos os casos de dissecção aórtica aguda suspeita ou confirmada que tiveram radiografia de tórax e tomografia computadorizada de tórax realizadas durante a mesma admissão de emergência durante um período de 6 anos, de 2005 a 2010. O objetivo foi explorar a acurácia diagnóstica de várias medidas mediastinais na determinação da dissecção aguda da aorta torácica não traumática em relação às radiografias de tórax posteroanterior (PA) e ântero-posterior (AP) excluíndo aqueles que apresentavam história prévia de trauma ou doença aórtica. A largura mediastinal máxima (LMM) e a largura máxima do mediastino esquerdo (LMME) foram medidas por dois radiologistas independentes e a razão da largura mediastinal (RLM) foi calculada (LMM/LMME). A incidência P-A foi significativamente mais precisa que a projeção A-P, alcançando maior sensibilidade e especificidade. LMME e LMM foram os parâmetros mais poderosos nas radiografias de tórax em incidências P-A e A-P, respectivamente. Os níveis de corte ideais foram, para incidência P-A:  LMME = 4,95 cm (sensibilidade, 90%; especificidade, 90%) e LMM = 7,45 cm (sensibilidade, 90%; especificidade, 88,3%) e para incidência A-P: LMME = 5,45 cm (sensibilidade, 76%; especificidade, 65%) e LMM = 8,65 cm (sensibilidade, 72%; especificidade, 80%). A RLM foi considerada menos útil e menos confiável. O uso isolado de LMME na incidência P-A permitiria uma previsão mais precisa da dissecção aórtica. A radiografia de tórax P-A tem maior precisão diagnóstica quando comparada à radiografia de tórax A-P, com a radiografia de tórax P-A negativa mostrando menor probabilidade de dissecção aórtica (Fig. 9, 10)[15].


Fig. 9. Medição da Largura Mediastinal Máxima (LMM)

e Largura Máxima Mediastinal Esquerda (LME)

 

Fig. 10. Exemplos de alargamento mediastinal na Rx de tórax em A-P

  

Tomando com referência o estudo de Lai, tem se adotado como cut-off de referência definir alargamento mediastinal a nível do botão aórtico na radiografia de tórax em A-P, os valores de 8-9 cm para LMM e 5 – 5.5 para LME. Estes valores darão sustento à hipótese de DAA no contexto clínico correspondente e, portanto, à contraindicação de trombólise.

Aqui um vídeo que traz importantes informações sobre o assunto:

 


Fonte: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=XxnbXgMpKmQ

 

Deve se encorajar a elaboração de PROTOCOLOS DE TROMBÓLISE devidamente validados pelos gestores correspondentes tanto a nível hospitalar quanto extra-hospitalar, que incluam definições claras das indicações e das contraindicações, dos exames a serem previamente feitos (laboratório, eletrocardiograma e de imagem) antes durante e após trombólise; da forma correta de administração do trombolítico, sua monitorização e possíveis efeitos adversos; assim como orientações de como proceder quando não se tenham dados e informações para estabelecer as contraindicações ou quando se trate de contraindicações relativas em que a decisão deva ser tomada analisando os riscos versus os benefícios de forma compartilhada com o paciente ou seu responsável legal. Da mesma forma tais protocolos deverão conter fluxogramas de atendimento e check-list de avaliação das contraindicações.

 



[1] Wada DT, Rodrigues JAH, Santos MK. Aspectos técnicos e roteiro de análise da radiografia de tórax. Medicina (Ribeirão Preto) [Internet]. 15 de outubro de 2019 [citado 26 de agosto de 2023];52(supl1.):5-15. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rmrp/article/view/154763

[2] V Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre Tratamento do Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnível do Segmento ST. Arq Bras Cardiol. 2015; 105(2):1-105

[3] https://www.sanarmed.com/disseccao-aguda-de-aorta

[4] https://www.msdmanuals.com/pt/profissional/doen%C3%A7as-cardiovasculares/doen%C3%A7as-da-aorta-e-seus-ramos/dissec%C3%A7%C3%A3o-da-aorta

[5] https://www.lecturio.com/pt/concepts/dissecao-aortica/

[6] https://www.msdmanuals.com/pt/profissional/doen%C3%A7as-cardiovasculares/doen%C3%A7as-da-aorta-e-seus-ramos/dissec%C3%A7%C3%A3o-da-aorta

[7] Cedália Rosane Campos dos Santos, Thays Dornelles Gandolfi, Marco Antônio Goldani. Dissecção de aorta – diagnóstico diferencial e manejo. https://docs.bvsalud.org/biblioref/2018/02/879700/disseccao-de-aorta-diagnostico-diferencial-e-manejo-cedalia-campos.pdf

[8] Anneke Damberg, Bulat A. Ziganshin, John A. Elefteriades, Chapter 12 - Chest X-Ray in Aortic Disease, Editor(s): Ion C. Ţintoiu, Adrian Ursulescu, John A. Elefteriades, Malcolm John Underwood, Ionel Droc, New Approaches to Aortic Diseases from Valve to Abdominal Bifurcation, Academic Press, 2018, Pages 129-131,

[9] Emmanuel Salinas Miranda e col., Enfoque inicial de las alteraciones mediastinales: revisión de sus referencias anatómicas radiográficas. Rev. Colomb. Cardiol. vol.25 no.6 Bogota Nov./Dec. 2018. https://doi.org/10.1016/j.rccar.2017.10.010

[10] https://radiopaedia.org/articles/aortic-dissection

[11] Wackerman L, Gnugnoli DM. Widened Mediastinum. [Updated 2023 Jul 24]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2023 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK539890/

[12] Hanna M, Elshimy G, Ismail M, Ismail M. An Unusual Benign Cause of an Alarming Finding on Chest-X ray: A Case Report of Widened Mediastinum due to Rare Congenital Abnormality (Azygos Vein Continuation of Inferior Vena Cava). Case Rep Crit Care. 2019 Dec 9;2019:3457495. doi: 10.1155/2019/3457495. PMID: 31885936; PMCID: PMC6925908.

[13] Marsh D. G., Sturm J. T. Traumatic aortic rupture: roentgenographic indications for angiography. The Annals of Thoracic Surgery. 1976;21(4):337–340. doi: 10.1016/S0003-4975(10)64323-8

[14]  Wong YC, Ng CJ, Wang LJ, Hsu KH, Chen CJ. Left mediastinal width and mediastinal width ratio are better radiographic criteria than general mediastinal width for predicting blunt aortic injury. J Trauma. 2004;57:88–94. doi: 10.1097/01.TA.0000082158.49654.E7.

[15] Lai V, Tsang WK, Chan WC, Yeung TW. Diagnostic accuracy of mediastinal width measurement on posteroanterior and anteroposterior chest radiographs in the depiction of acute nontraumatic thoracic aortic dissection. Emerg Radiol. 2012 Aug;19(4):309-15. doi: 10.1007/s10140-012-1034-3. Epub 2012 Mar 14. PMID: 22415593; PMCID: PMC3396328.





domingo, 13 de agosto de 2023

                             TAMPONAMENTO RENAL E LESÃO RENAL AGUDA


Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico intensivista. Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.



O termo “tamponamento renal” (renal tamponade) vem sendo cada vez mais usado para descrever quadros de disfunção renal associados a congestão renal por compressão intrarrenal ou extra-renal de estruturas intrarrenais como artérias, veias, glomérulos e túbulos, diminuindo a função do rim. O quadro pode ser comparado ao derrame pericárdico com tamponamento cardíaco. Pacientes com derrame pericárdico agudo podem apresentar parada cardíaca devido a um tamponamento cardíaco, enquanto toleram grandes derrames pericárdicos crônicos. A taxa de acumulação é um fator decisivo para o efeito de tamponamento. É por essa semelhança que o termo “tamponamento renal” vem sendo citado em diferentes artigos.

Um exemplo clássico de lesão renal como resultado da compressão pode ser encontrado no rim de Page: uma síndrome clínica de função renal diminuída e/ou hipertensão decorrente da compressão externa no rim, mais comumente por hematoma subcapsular, que leva a hipoperfusão por compressão vascular principalmente do sistema arterial[1]. Irvine Page descreveu pela primeira vez essa entidade em 1939. Ele realizou experimentos com animais nos quais envolveu os rins em celofane. Seguiu-se uma intensa resposta inflamatória que produziu uma casca fibrocolágena que comprimiu o rim. A compressão dos vasos intrarrenais levou à isquemia e ativação do SRAA. A hipertensão se desenvolveu dentro de 4 a 5 semanas e foi curada por nefrectomia do rim afetado. Em 1955, Engel e Page descreveram o primeiro caso de rim de Page em um jogador de futebol de 19 anos com história de hipertensão há 2 anos, que havia sofrido trauma no flanco dois anos antes e que apresentava hematoma subcapsular. A hipertensão foi curada após nefrectomia. A hipertensão no rim de Page é mediada pela ativação do SRAA e o mecanismo da hipertensão é semelhante à hipertensão de Goldblatt. Goldblatt, em seus experimentos, aplicou pinças na artéria renal principal para reduzir o fluxo sanguíneo. A hipoperfusão dos rins leva à liberação de renina, ativação do SRAA que leva à hipertensão. No rim de Page, a compressão externa do rim leva à diminuição da perfusão nos vasos sanguíneos intrarrenais. A isquemia microvascular resultante causa ativação do SRAA levando à hipertensão[2]. O baixo fluxo renal reduz a TFG o que faz com que menos NaCl chegue até a macula densa do TCD, portanto haverá menor concentração de NaCl. Menos cloreto será reabsorvido neste segmento tubular. A queda da reabsorção de cloreto pela mácula densa é “sentida” pelas células justaglomerulares da arteríola aferente se constituindo em importante estímulo para a secreção de renina que por sua vez leva a um aumento da angiotensina II (potente vasoconstritor sistêmico) e a HAS. A arteríola eferente contém mais células musculares que a arteríola aferente tendo propensão maior a se contrair, fazendo aumentar a pressão intraglomerular e a TFG[3]. Entretanto, os efeitos do sódio no SRAA são contrários. Alta concentração de sódio na macula densa acarreta aumento na secreção de renina e concentração baixa de sódio diminui a produção de renina[4].

Em 2007, Abutaleb, N., e Obaideen, A. relatam um caso de lesão renal por hematoma subcapsular como “tamponamento renal”[5]. O fato de o rim ser circundado por uma cápsula rígida e não expansível (capsula renal) desempenha um papel crucial nos efeitos de compressão. Mais recentemente em 2023, Tamoki Taniguchi e col., descrevem um caso de hidronefrose relacionada ao rim de Page que apresentou hipertensão hiperreninêmica e disfunção renal cuja fisiopatologia seria o “tamponamento renal”, em que o rim foi comprimido entre a pelve renal e fáscia de Gerota, resultando em isquemia microvascular intrarrenal[6]. Em janeiro de 2023, Jonathan S. Chávez-Íñiguez e col., numa revisão do manejo da síndrome cardiorrenal tipo I (relato de caso) destacam a congestão venosa renal como um dos principais determinantes da disfunção renal, secundária à ativação neuro-hormonal, inflamatória e hemodinâmica, que agrava a incapacidade renal de excretar sódio e água. A esta congestão renal gerada por aumento da pressão venosa central promovendo a compressão do parênquima renal, se referem como “nefropatia congestiva” termo proposto por Husain-Syed F. e col., em 2021[7] . Mas, considerando que ocorre um aumento da pressão intersticial em um órgão encapsulado também se referem a essa entidade como “tamponamento renal” como sendo um dos principais mecanismos fisiopatológicos associados ao comprometimento da função renal[8].

 

CONCEITOS ANATOMO-FISIOLOGICOS

Os rins encontram-se fora da cavidade peritoneal (órgão extraperitonial). Cada rim em um adulto pesa aproximadamente 150 gramas. O rim é recoberto por uma membrana dura e fibrosa de tecido conjuntivo (constituída por tecido colágeno denso e irregular)  denominada capsula renal. O parênquima renal se divide em duas regiões: uma externa denominada cortical ou córtex renal (de aproximadamente 1cm de espessura, contém os glomérulos de Malpighi) e uma mais interna denominada medular ou medula, que se divide em 8 a 10 massas de tecido em forma de cone chamadas de pirâmides de Malpighi. A base de cada pirâmide origina-se na borda entre o córtex e a medula, e termina na papila, que se projeta para dentro do espaço da pelve renal, uma continuação da extremidade superior do ureter, em forma de funil. Nas regiões laterais, as pirâmides fazem contato com extensões de tecido cortical para a medula, denominadas colunas de Bertin. A borda externa da pelve é dividida em bolsas abertas denominadas cálices maiores, que se estendem para baixo e se dividem em cálices menores, que coletam a urina dos túbulos de cada papila. O rim pode ser dividido esquematicamente em lobos, cada um formado por uma pirâmide de Malpighi, associada ao tecido cortical adjacente. As paredes dos cálices, da pelve e do ureter contêm elementos contráteis que impulsionam a urina em direção a bexiga, onde é armazenada até que seja eliminada pela micção.

O sangue flui para cada rim através da artéria renal, que se ramifica progressivamente para formar as artérias interlobares, artérias arqueadas (ou arciformes), artérias interlobulares e as arteríolas aferentes, que dão origem aos capilares glomerulares (se capialriza na forma de tufo), onde a filtração dos líquidos e dos solutos começa. Os capilares de cada glomérulo se juntam para formar uma arteríola eferente que continua o trajeto arterial para nutrir o parenquima renal. As arteríolas eferentes que drenam os glomérulos corticais se dividem em um plexo capilar que envolve os túbulos renais (capilares peritubulares). Aquelas que drenam os glomérulos justamedulares formam os vasos retos; estes são feixes de vasos que mergulham na medula em profundidades variadas, formando plexos capilares que envolvem as alças de Henle e depois se juntam para formar os vasos retos ascendentes, que eventualmente drenam para as veias renais. Os vasos retos formam um sistema de troca em contracorrente essencial para a formação de urina concentrada e diluída (em relação ao plasma). Os capilares peritubulares se esvaziam nos vasos do sistema venoso, que correm paralelos aos vasos arteriolares, e progressivamente formam a veia interlobular, veia arqueada, veia interlobar e veia renal. A veia renal deixa o rim ao longo da artéria renal e do ureter. A parte externa do rim, o córtex renal, recebe a maioria do fluxo sanguíneo do rim e apenas 1% a 2% do total do fluxo sanguíneo renal passa pelos vasos retos, que suprem a medula renal. Duas características distintas da circulação renal são a alta taxa de fluxo de sangue e a presença de dois leitos capilares, os capilares glomerulares e peritubulares, que são arranjados em série e separados pelas arteríolas eferentes. Os capilares glomerulares filtram grandes quantidades de líquidos e solutos, a maioria dos quais são reabsorvidos dos túbulos renais nos capilares peritubulares. As arteríolas aferentes, antes de se capilarizarem, costumam apresentar uma modificação da camada média, e passam a exibir células especializadas que, pela localização são chamadas de células justaglomerulares. O túbulo contorcido distal (TCD), em determinado momento de seu trajeto, aproxima-se da arteríola aferente (do mesmo néfron) exatamente no mesmo ponto onde estão as células justaglomerulares. Neste local sua parede se modifica, formando uma estrutura conhecida como mácula densa. O conjunto de células justaglomerulares com a mácula densa forma o Aparelho Justaglomerular que serve de meio de comunicação entre o fluido tubular e a arteríola aferente para promover um “feedback tubuloglomerular”, importante para a regulação da filtração glomerular.







O fluxo sanguíneo renal é mantido constante apesar das variações da pressão arterial sistêmica, determinando assim a “pressão de perfusão renal” (PPR). A PPR se mante constante pelo mecanismo de “autoregulação da taxa de filtração glomerular” entre pressões arteriais medias de 80 a 200mmHg (pressão intraglomerular deve se manter em aproximadamente 60mmHg). São 4 mecanismos que funcionam para essa autoregulação[9]:

1) Vasodilatação da arteríola aferente. O tônus da arteríola aferente é o principal determinante da resistência vascular do rim. Os miócitos da arteríola aferente possuem “receptores de estiramento” dos quais depende um reflexo vascular de vasodilatação ou vasoconstrição. Aumentos da PAM provoca distensão dos miócitos, gerando uma resposta imediata de vasoconstrição cálcio mediada da arteríola aferente (endotelina). Quedas de PAM provocara relaxamento dos miócitos promovendo vasodilatação, mediada por vasodilatadores endógenos como prostaglandinas (PGE2), cininas e oxido nítrico. Quando a PAM cai abaixo de 80mmHg o fluxo sanguíneo renal sofre redução, pois o mecanismo de autoregulação chegou no seu limite.

2) Vasoconstrição da arteríola eferente. A arteríola eferente contém mais células musculares do que a arteríola aferente, pelo que tem maior propensão a se contrair. Ao haver queda inicial da PAM, se reduz o fluxo sanguíneo renal, a pressão intraglomerular e a TFG com menos fluido tubular chegando até a região da macula densa do TCD. Essa queda ativará o feedback tubuloglomerular do aparelho justaglomerular dependente da reabsorção de cloreto, com secreção de renina pelas células justaglomerlares que por sua vez ativará o sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA). A angiotensina II gerada atuará local e sistemicamente na arteríola eferente provocando vasoconstrição, fazendo aumentar a pressão intraglomerular e a TFG. O eventual efeito vasoconstritor na arteríola aferente é superado pelos efeitos dos mediadores vasodilatadores secretados localmente na arteríola aferente.

3) Feedback Tubuloglomerular. O baixo fluxo renal reduz a TFG o que faz com que menos NaCl chegue até a macula densa do TCD, portanto haverá menor concentração de NaCl. Menos cloreto será reabsorvido neste segmento tubular. A queda da reabsorção de cloreto pela mácula densa é “sentida” pelas células justaglomerulares da arteríola aferente, o que promove uma vasodilatação da aa e ainda estimula a secreção de renina que por sua vez leva a um aumento da angiotensina II com vasoconstrição da arteríola eferente. Um aumento da PAM e consequentemente da TFG terá um efeito oposto: mais cloreto chega à mácula densa, mais cloreto é reabsorbido, inibindo provocando vasoconstrição da arteríola aferente.

4) Retenção hidrosalina e natriurese. O SRAA termina na produção de aldosterona pelas suprarenais que promove a retenção de sódio e água pelos túbulos renais, visando aumentar a volemia e a TFG.




CHOQUE CIRCULATÓRIO E LESÃO RENAL AGUDA

Frequentemente estamos mais familiarizados a ver quadros de lesão renal aguda (LRA) associada a estados de choque circulatório que levam a redução do fluxo sanguíneo arterial renal, comprometimento da irrigação das células tubulares pelas arteríolas eferentes e necrose tubular aguda de tipo isquêmica (NTA isquêmica); ou a diversas nefrotoxinas que são capazes de modificar o ritmo de filtração glomerular por induzir alterações em vários determinantes da filtração glomerular (NTA nefrotóxica). A fisiopatologia da LRA isquêmica ou tóxica envolve alterações estruturais e bioquímicas que resultam, basicamente, em comprometimento vascular e/ou celular que leva à vasoconstrição, alteração de função e/ou morte celular, descamação do epitélio tubular e obstrução intraluminal, vazamento transtubular do filtrado glomerular e inflamação. A vasoconstrição intrarrenal é causada por um desequilíbrio entre os fatores vasoconstritores e vasodilatadores, resultante da ação, tanto sistêmica como local, de agentes vasoativos. Assim, ocorrem modificações importantes na hemodinâmica glomerular e intrarrenal como consequência natural desse desequilíbrio. Esse mecanismo fisiopatológico é mediado por hormônios, com ativação de hormônios vasoconstritores (angiotensina II, endotelina etc.) e/ou inibição de vasodilatadores (prostaglandinas, óxido nítrico etc.). Esse desequilíbrio resulta em vasoconstrição das arteríolas aferente e eferente (esta última responsável pela perfusão das células tubulares) e contração da célula mesangial e leva à redução do coeficiente de ultrafiltração glomerular. Conforme mencionado anteriormente, as alterações hemodinâmicas são, na maioria das vezes, mediadas por ação predominante de hormônios vasoconstritores; entretanto, a via final comum pela qual estes hormônios realizam suas ações envolve a elevação do cálcio intracelular (Ca), tanto em células da vasculatura como em células mesangiais. Nesse sentido, vários estudos experimentais mostram que o cálcio é um dos mediadores mais importantes da vasoconstrição intrarrenal. O aumento do cálcio livre no citosol de células da musculatura lisa eleva o tônus vascular e contribui para a vasoconstrição, a qual pode ser revertida ou minimizada pela utilização de bloqueadores de canais de cálcio. Outra participação importante do cálcio na cascata fisiopatológica da LRA envolvendo a hemodinâmica renal se relaciona com a contração da célula mesangial. O aumento do Ca é, geralmente, iniciado pela interação de hormônios vasoconstritores com seus receptores ou pela ação direta de toxinas. Um dos eventos mais precoces resultantes da isquemia ou mesmo na vigência de uma nefrotoxina é a redução dos níveis intracelulares de ATP e, portanto, das porções do néfron que possuem alta taxa de reabsorção tubular com gasto de energia, como o túbulo proximal e a alça ascendente espessa de Henle, que são particularmente mais suscetíveis à isquemia por apresentarem elevado consumo de ATP. Os efeitos imediatos da depleção de ATP são: redução da atividade ATPase da membrana citoplasmática, desequilíbrio nas concentrações intracelulares de eletrólitos como Na, K e Ca, e edema celular. Esse desarranjo desencadeia, por sua vez, uma série de eventos que incluem desestruturação do citoesqueleto, perda da polaridade celular, perda da interação célula-célula, produção das espécies reativas de oxigênio (altamente tóxicas para a célula) e alterações do pH intracelular, que podem culminar com a morte da célula. Um fator agravante, na fisiopatologia da LRA, particularmente nas situações de LRA isquêmica, é a dificuldade em distinguir os danos causados pela isquemia per se daqueles causados pela reperfusão. Isso ocorre porque os efeitos da reoxigenação súbita podem produzir danos adicionais à célula por mecanismos que envolvem a formação de espécies reativas de oxigênio, aumento do influxo de cálcio e reversão abrupta da acidose intratubular[10].

 

CONGESTÃO VENOSA E LESÃO RENAL AGUDA: TAMPONAMENTO RENAL

Em março de 2002, Eva M. Boorsma e col., publicou no Jornal os American College of Cardiology, uma interessante revisão sobre síndrome cardiorenal tipo I na qual levanta como fundamento fisiopatológico o “tamponamento renal”, discutindo 3 mecanismos que, isoladamente ou combinados, podem levar à congestão renal por compressão intrarrenal ou extrarrenal[11]. Os autores propõem a hipótese do “tamponamento renal” para explicar o comprometimento desproporcional da função renal quando as pressões venosas centrais aumentam em pacientes com IC. A cápsula renal que envolve o rim é muito rígida e não permite a expansão quando a pressão aumenta. O aumento das pressões venosas centrais leva ao aumento das pressões intersticiais renais, comprimindo estruturas renais como túbulos, veias intrarrenais e glomérulos no rim encapsulado.

1. Aumento da pressão intracapsular

O aumento da pressão dentro do parênquima renal pode resultar do aumento do volume no rim causado pelo aumento do líquido intersticial na IC, no contexto de um órgão (o rim) que não pode expandir em volume.

Histologicamente, a cápsula renal fibrosa consiste em muitas fibras colágenas em uma estrutura densa e irregular, tornando-a decididamente rígida. Pressões de até 10.000 mmHg são necessárias para esticar a cápsula até o dobro de seu tamanho ou até mesmo rompê-la. Pressões dessa magnitude geralmente são alcançadas apenas durante eventos traumáticos ou doença renal policística. Já são conhecidos os mecanismos pelos quais na IC aumenta a pressão intravascular principalmente venosa (PVC) levando a edema intersticial. Na pele, se manifesta como edema depressível; nos pulmões, como edema intersticial e alveolar. O edema intersticial também está presente nos rins, embora menos visível. Os rins, no entanto, não têm a capacidade de se expandir como a pele e o tecido subcutâneo. O motivo dessa falta de expansibilidade é a presença da cápsula renal muito rígida. Vários modelos de congestão renal em ratos e cães demonstraram que quando as pressões vasculares centrais ou renais são aumentadas, geralmente por clipagem da respectiva veia, as pressões intersticiais renais aumentam colinearmente. Além disso, a TFG e a produção urinária diminuem quase instantaneamente. Além disso, o clampeamento da veia renal induz proteinúria, refletindo (induzido por pressão) o dano à cápsula de Bowman. Dois estudos examinaram independentemente a perfusão renal em um modelo de rim congestionado e encontraram perfusão diminuída da medula renal, mas não do córtex renal. Anatomicamente, isso significa que os túbulos correm mais risco de danos por congestão do que os glomérulos. Isso é ainda apoiado pela noção de que a expressão intrarrenal de biomarcadores de dano tubular, em particular KIM-1 e osteopontina, foi aumentada em um modelo murino de congestão renal. Ainda mais interessante, a expressão desses biomarcadores foi atenuada pela remoção da cápsula antes de induzir a congestão. Além dos túbulos e glomérulos, as veias também são afetadas pela sobrecarga de pressão intracapsular, como demonstrado em vários pequenos estudos ultrassonográficos em humanos. No rim saudável, o fluxo sanguíneo venoso é minimamente alterado por alterações hemodinâmicas. No entanto, aumentos na pressão dentro da cápsula renal levarão ao colapso das veias renais porque a cápsula impede que o rim se expanda e as pressões são refletidas para dentro. Na ultrassonografia, um padrão de fluxo venoso descontínuo (bifásico ou monofásico) pode ser reconhecido; esse padrão está correlacionado com sinais e sintomas clínicos de congestão. Isso indica que, no rim congestionado, o sangue está sendo puxado por uma veia comprimida apenas durante a diástole (fase de menor compressão). Em resumo, a congestão intersticial do rim, combinada com a incapacidade do interstício de se expandir devido à cápsula renal, comprime estruturas intrarrenais como veias, glomérulos e túbulos, diminuindo sua função.

2. Aumento da pressão perirrenal

O aumento do volume de tecido adiposo dentro da fáscia perirrenal de Gerota pode levar ao aumento da pressão perirrenal. Tanto a espessura do tecido adiposo perirrenal ao redor do rim quanto o acúmulo de gordura no seio renal tem sido associado à doença renal crônica, arteriosclerose, hipertensão e ao aparecimento de diabetes. Essa associação pode ser explicada pelo tecido adiposo perirrenal comprimindo a vasculatura renal, levando à ativação patológica do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e redução da perfusão renal, bem como compressão venosa (mais) congestionando o interstício renal. Alternativamente, o tecido adiposo perirrenal pode causar ativação do SRAA por meio de suas propriedades inflamatórias e aumento dos níveis locais de TNF-α. A gordura do seio renal é interessante em relação à cápsula renal, visto que o seio renal não é protegido da compressão externa pela cápsula renal. Isso significa que o aumento do volume de gordura do seio renal aumenta diretamente as pressões dentro da cápsula renal. De fato, o volume do seio renal tem sido correlacionado tanto com a TFG quanto com a perfusão intrarrenal em pacientes com diabetes tipo 2. Embora este não seja um mecanismo agudo, a hemodinâmica intrarrenal alterada resultante da gordura perirrenal pode contribuir para uma diminuição da função renal no cenário de congestão intersticial. Ainda não está estabelecido se o aumento da gordura perirrenal e/ou da gordura do seio renal contribui para a congestão renal na IC.

3) Aumento da pressão intra-abdominal

Em pacientes com IC grave, a pressão intra-abdominal (PIA) pode aumentar devido à ascite ou ao aumento do líquido no sistema esplâncnico na ausência de ascite. A presença de ascite e sua gravidade têm sido associadas ao comprometimento da função renal na IC. A redução da PIA das terapias descongestivas e a remoção mecânica do fluido restauram a função renal. Isso indica uma relação indireta entre congestão venosa e função renal prejudicada, um efeito de massa direto nos rins retroperitoneais devido ao peso do peritônio cheio de líquido ou ambos. Em pacientes com obesidade (mórbida), a PIA aumenta de forma semelhante e diminui após a cirurgia de redução de peso. Além disso, vários estudos indicam que a cirurgia de redução de peso melhora os resultados renais e cardiovasculares em pacientes com obesidade mórbida. Dois estudos do mesmo grupo indicam que a compressão venosa renal, em vez da compressão do parênquima, é o principal fator por trás da diminuição da TFG, aumento da renina e aldosterona e início da proteinúria em pacientes com hipertensão intra-abdominal.




COMENTÁRIOS

A tese do tamponamento renal vem cobrando força para explicar situações de lesão renal aguda por congestão renal decorrente de edema intersticial, que pode estar associada a estados mórbidos como insuficiência cardíaca, mas também poderia ocorrer em decorrência de aumentos da pressão venosa central por outras causas dentre as quais importante lembrar dos estados de sobrecarga volêmica na fase de ressuscitação do choque.

A primeira questão é saber se o paciente é “fluidonecessitado”. O uso de fluidos nos estados de choque circulatório deveria obedecer a critérios claros de indicação, especialmente nos casos em que a hipovolemia é relativa como nos casos de choque vasoplégico com sequestro volêmico no compartimento venoso. Afinal, a ressuscitação nestes casos, a despeito de tentar aumentar o volume circulante efetivo, caso não se resolva a causa da vasoplegia levará apenas a uma melhora transitória com sobrecarga volêmica secundaria. Esta sobrecarga volêmica levará a aumento da pressão venosa central e lesão renal aguda por tamponamento renal. Desta forma o primeiro passo deveria ser sempre avaliar o status volêmico real do paciente para saber se está ou não precisando de volume.

A segunda questão é saber se o paciente é ou não “fluidoresponsivo”, isto é, se o coração ainda poderá responder ao aumento de volume com aumento da contratilidade. Paciente com função cardíaca previa reduzida, que se apresentam já como choque cardiogênico ou que desenvolvem disfunção cardíaca associada a outras formas de choque, devem ter sua reposição de fluidos, caso exista indicação, cuidadosamente guiada e monitorizada dando-se preferência a marcadores dinâmicos de fluidoresponsividade.

A terceira questão a ser considerada é avaliar se o paciente ainda é “fluidotolerante”. Isso significa que o paciente poderia ter sua volemia reduzida, ser ainda fluidoresponsivo, porém ele poderá estar no limite da sua tolerância tendo em visto que o aumento das pressões intravasculares poderá estar provocando edema intersticial em diferentes órgãos, sendo o rim talvez o que mais precocemente se afeta, gerando edema intersticial e tamponamento renal com lesão renal secundaria. O uso POCUS e o método VExUS é uma das ferramentas atualmente utilizadas para avaliar o grado de congestão venosa, monitorando o diâmetro da veia cava inferior, o fluxo da veia supra-hepática, da veia porta e das veias renais. O fluxo venoso renal discontinuo bifásico ou pior ainda monofásico serão indicadores de grau de congestão venosa.

Finalmente a quarta questão a ser considerada é a terapia de desresuscitação (ROSE) que deve estar sempre alinhada com a de ressuscitação. Exceto nos casos de choque hipovolêmico por perda real, a administração de fluidos nos outros tipos de choque, levará a estados de sobrecarga volêmica, especialmente na fase de resolução do quadro em que a volemia “sequestrada no compartimento venoso” retorna ao compartimento arterial. Nestes casos, oportuno será sempre usar estratégias de retirada de volume de forma gradual e monitorizada através da estratégia de desresuscitação.



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[2] Vaidya PN, Rathi BM, Finnigan NA. Page Kidney. [Updated 2023 Jan 22]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2023 Jan-.

[3] William J. Arendshorst, Elsa Bello-Reuss. Macula-Densa Control of Renin Release. Handbook of Cell Signaling (Second Edition), Vol3. 2010

[4] Robson Augusto S. dos Santos, Cristiane R. Fagundes-Moura, Ana Cristina Simões e Silva. Efeitos cardiovasculares e renais do sistema renina-angiotensina. Rev Bras Hipertens 3: 227-36, 2000.

[5] Abutaleb, Nasrulla; Obaideen, Abdulmunaem. Renal Tamponade Secondary to Subcapsular Hematoma. Saudi Journal of Kidney Diseases and Transplantation 18(3):p 426-429, Jul–Sep 2007.

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[7] Husain-Syed F, Gröne H, Assmus B, Bauer P, Gall H, Seeger W, et al. Congestive nephropathy: a neglected entity? Proposal for diagnostic criteria and future perspectives. ESC Heart Fail. (2021) 8:183–203. doi: 10.1002/ehf2.13118

[8] Jonathan S. Chávez-Íñiguez, et. al., How to interpret serum creatinine increases during decongestion. Front. Cardiovasc. Med., 04 January 2023. Sec. General Cardiovascular MedicineVolume 9 - 2022 | https://doi.org/10.3389/fcvm.2022.1098553

[9] Medcurso 2012. Capítulo Nefrologia.  Volume 1.

[10] Oscar F. Pavão dos Santos, Sandra M. Laranja, Mirian A. Boim e Nestor Schor. Fisiopatologia da Injúria Renal Aguda. Curso on-line “Injúria renal aguda” 2015

[11] Eva M. Boorsma, Jozine M. ter Maaten, Adriaan A. Voors, Dirk J. van Veldhuisen, Renal Compression in Heart Failure: The Renal Tamponade Hypothesis, JACC: Heart Failure, Volume 10, Issue 3, 2022,