sábado, 16 de março de 2024

 

USO AZUL DE METILENO NO CHOQUE SÉPTICO.

DEPOIS DE 25 ANOS, AINDA SEM CONSENSO?

 

PARTE I. O QUE SÃO O AZUL DE METILENO E O OXIDO NÍTRICO?


Dr. ALEJANDRO ENRIQUE BARBA RODAS. Médico Especialista em Medicina Intensiva. Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos. 



Recente publicação do Critical Care (16.02.2024) de autoria de Julian Arias-Ortiz e Jean-Louis Vincent, nos traz uma rápida e curta revisão sobre os prós e contras do uso do azul de metileno (AM) no choque séptico, colocando mais “lenha na fogueira” a um velho debate sobre os benefícios do AM neste cenário específico de choque vasoplégico. É claro que, as ponderações a favor e contra, balizadas pelo Prof. Vincent, trazem um forte sustento de credibilidade. Entretanto, os autores não se posicionam nem a favor nem contra, mas pela necessidade de esperar mais estudos consistentes e de alto nível de evidência sobre segurança e benefícios, antes que o uso rotineiro de AM no choque séptico possa ser considerado[1].

Portanto, vou fazer uma revisão do estado da arte e, afinal, colocar minha posição.

 

1. O QUE É O AZUL DE METILENO (AM)?

O azul de metileno, é um composto químico aromático heterocíclico da classe das fenotiazinas, sólido, verde escuro, solúvel em água, produzindo solução azul, inodoro, com fórmula molecular: C16H18N3SCl e massa molar 319,85 g/mol. Cloreto de metiltionínio, é um dos nomes do azul de metileno pela Denominação Comum Internacional (Fig 1).



Fig.1. Estrutura química do azul de metileno

 

Foi sintetizado em 1876 pelo químico alemão Heinrich Caro como um corante a base de anilina. Não deve ser confundido com o azul de metila, outro corante histológico, nem com o novo azul de metileno (um corante hematológico para caracterizar resíduos de RNA intracitoplasmático em eritrócitos jovens, denominados de reticulócitos), nem com as variações do violeta de metila, frequentemente usados como indicadores de pH. É altamente solúvel em água e solventes orgânicos e tem alta permeabilidade nas membranas celulares. Em química, o azul de metileno é utilizado como um indicador redox de química analítica. Soluções dessa substância são azuis quando expostas a um agente oxidante (puxa elétrons), mas tornam-se incolores quando expostas a um agente redutor (cede elétrons). As propriedades redox podem ser vistas em uma clássica demonstração de cinética química em química geral, o chamado experimento da "garrafa azul". Prepara-se uma solução feita com dextrose, azul de metileno (na sua forma reduzida, incolor), e hidróxido de sódio. Após sacudir a garrafa, o oxigênio (agente oxidante) oxida o azul de metileno (que libera elétrons), e a solução torna-se azul. A dextrose, atuando como agente redutor (cedendo elétrons) irá gradualmente reduzir novamente o azul de metileno (ganha os elétrons) devolvendo sua forma incolor, isto é reduzida. Então, quando o oxigênio dissolvido é inteiramente consumido, a solução irá tornar-se incolor. Em biologia, o azul de metileno é usado como corante nas colorações de Gram, Wright e Jenner. Desde que ele é uma técnica de coloração temporária, azul de metileno pode também ser usado para examinar RNA ou DNA sob o microscópio ou em um gel. Pode também ser usado como um indicador para determinar se uma célula tal como uma levedura está viva ou não. O azul de metileno torna-se incolor na presença de enzimas ativas, indicando células vivas. Entretanto se permanecer azul não significa que a célula está morta já as enzimas poderiam estar inativas/desnaturadas. Deve-se notar que o azul de metileno pode inibir a respiração da levedura enquanto desloca os íons de hidrogênio produzidos durante o processo. A célula da levedura não pode então usar aqueles íons para liberar energia. Em medicina, devido a suas propriedades de agente redutor (cede elétrons, oxidando-se), o azul de metileno é utilizado no tratamento de metahemoglobinemia, ao reduzir o grupo heme da metahemoglobina (Fe⁺³) a hemoglobina (Fe⁺²). O azul de metileno obstrui também a acumulação do monofosfato cíclico do guanosina (GMP cíclico) inibindo a enzima guanilato ciclase: esta ação resulta em resposta reduzida dos vasos a vasodilatadores GMP-dependentes como óxido nítrico e monóxido de carbono. O azul de metileno pode também servir como um inibidor não seletivo da enzima óxido nítrico sintetase (NOS). Pela inibição do óxido nítrico sintetase pode ser usada para tratar hipotensão refratária a catecolaminas no choque séptico. O efeito antimalárico do azul de metileno foi identificado por Paul Ehrlich em 1891. Tem atividade in vitro contra o Plasmodium falciparum e Plasmodium vivax, além da atividade sinérgica do azul de metileno com a artemisinina, quinino e pirimetamina. Mas houve atividade antagônica com a cloroquina. No aquarismo, o azul de metileno é usado em soluções para combater doenças como: dactilogirose, girodactilose, saproleniose, oodinose, plistoforose Íctio e outras[2]. O azul de metileno é considerado como relativamente seguro, e sua toxicidade é dose dependente. Não há dados suficientes na literatura que estabeleçam com segurança a mínima dose tóxica ou letal do azul de metileno. Entretanto, alguns dados sugerem que a ingestão aguda de doses acima de 4mg/kg pode resultar em sinais e sintomas de toxicidade. Em crianças, os quadros tóxicos podem ocorrer com doses menores.

1.1. Afinal, se há muito tempo é usada para fins terapêuticos, o azul de metileno é um medicamento?

No cadastro da Anvisa, o azul de metileno não consta no bulário eletrônico. Ele é encontrado como “produtos para saúde” usado principalmente como um corante[3]. Entretanto, a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) Anvisa nº 199 de 26.10.2006, levando em consideração que, de acordo com o art. 4º inciso II da Lei 5.991 de 1973[4], define-se “medicamento” como todo “produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico” e como “droga” toda “substância ou matéria-prima que tenha a finalidade medicamentosa ou sanitária”; listou ou azul de metileno 1% como medicamento de notificação simplificada, isto é “produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa ou paliativa na qual existe baixo risco de que seu uso ou exposição possa causar consequências e ou agravos à saúde quando observadas todas as características de uso e de qualidade descritas no Anexo I dessa Resolução”. Dessa forma, o azul de metileno 1% (concentração mínima de  0.959% e máxima de 1.050%), no Brasil, é considerado medicamento de baixo risco sujeito a notificação simplificada, na forma de solução líquida de cor azul, odor característico, sem presença de substâncias em depósito ou suspensão, com indicação de uso como antisséptico, de uso tópico, aplicado sobre o local, com o auxílio de gaze, algodão ou espátula, tendo como advertência a possibilidade de poder manchar a pele, podendo nesse caso ser utilizada uma solução de hipoclorito de sódio para clarear[5]. Conforme § 1º do art. 8 da RDC nº 199/2006, os medicamentos de notificação simplificada possuem apenas “rotulagem” contendo informações sobre o produto, ficando dispensados de apresentação de bula. Sendo assim, a rigor, não possuem bula e, por isso, não constam no bulário eletrônico. Definitivamente, não se encontra dentro dos registros da Anvisa, cadastro do azul de metileno para uso no tratamento de doenças como metahemoblobinemia (antídoto), choque vasoplegico (séptico e não séptico), encefalopatia induzida por ifosfamida, onicomicose ou ouras patologias como descrito na literatura.

1.2. Poderia se considerar o uso do azul de metileno no campo da medicina, para fins terapêuticos como medicamento de uso off-label?

O uso off label (fora da bula) é definido como sendo o uso de medicamentos para uma indicação, subgrupo populacional ou numa dosagem/via de administração, não aprovada pela entidade reguladora competente, baseando-se no conceito da liberdade de decisão pertencente aos médicos, no que consideram ser o mais benéfico para os seus pacientes. A rigor, o entendimento para o uso off label descreve o uso para indicação terapêutica não descrita em bula (label) em relação à dose, faixa etária, via de administração, contraindicação, e frequência de uso. O uso/prescrição de medicamento off label é possível na prática médica, não sendo considerado ato médico ilegal, pois os médicos têm liberdade de decisão em relação ao que acham melhor para os pacientes. O uso off label geralmente tem suporte em evidência científica, embora não sujeita ao rigor da avaliação de uma entidade reguladora. No Brasil, o registro de medicamentos é ato privativo do órgão competente do Ministério da Saúde – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Dentre as competências desse órgão, conforme se depreende da Lei nº 9.782/99, está a de regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, entre os quais medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias. Cada medicamento registrado no Brasil recebe a aprovação da ANVISA para uma ou mais indicações, as quais precisam ser comprovadas por meio da apresentação de estudos clínicos robustos e confiáveis. A partir de sua aprovação pelo órgão sanitário, a indicação do medicamento passa a constar em sua bula (label). Segundo a Resolução RDC Anvisa nº 47/09, a bula é o documento legal sanitário que contém informações técnico-científicas orientadoras sobre os medicamentos para o seu uso racional. Assim, todo uso de um medicamento em situações divergentes das que constam na bula correspondente ao registro junto à Anvisa é considerado off label, não sendo aprovado pelo órgão sanitário, passando o médico prescritor a assumir os riscos e consequências do tratamento escolhido[6] [7] [8] [9] [10].

Desta forma, no Brasil, inexistindo label (bula) para o azul de metileno, não há que e falar em off label (fora de bula). O que se encontra divulgado como “bula do azul de metileno” [11] é uma rotulagem baseada na RDC Nº 199, de 26 de outubro de 2006, que como já visto anteriormente trata dos medicamentos de notificação simplificada. Talvez o correto seria falar em uso “fora de rotulagem” (off-labeling).

Diferentemente, nos Estados Unidos, em 18 de dezembro de 2012 a Food and Drug Administration (FDA) concedeu ao azul de metileno (da empresa farmacêutica francesa Provepharm SAS) a designação de medicamento órfão (Orphan Drug Designation[12]) para o tratamento de metahemoglobinemia hereditária. Essa designação foi alterada em 28 de junho de 2013 para incluir o tratamento da metemoglobinemia adquirida. Em maio de 2016, o azul de metileno 0.5% (ProvayBlue ampolas de 5mg/ml de 2ml e 10ml), foi aprovado como medicamento (New Drug Aplication) para o tratamento de pacientes pediátricos e adultos com metahemoglobinemia adquirida. A injeção de azul de metileno da empresa francesa Provepharm foi previamente aprovada pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA), pela Agência de Produtos Farmacêuticos e Dispositivos Médicos (PMDA) do Japão e na Austrália pela Administração de Produtos Terapêuticos (TGA) para a mesma indicação[13] [14] [15] [16]. A dosagem em bula para tratar a metahemoglobinemia adquirida é de 1 mg/kg diluída em 50ml de SG 5% por via intravenosa durante 5-30 minutos. Se o nível de metahemoglobina permanecer superior a 30% ou se os sinais e sintomas clínicos persistirem, repetir uma dose de 1mg/kg uma hora após a primeira dose. Se a metahemoglobinemia não desaparecer após 2 doses, deve se considerar iniciar intervenções alternativas para tratamento de metahemoglobinemia[17]. Entretanto, na FDA não se encontra registros e/ou cadastros para uso do azul de metileno em concentrações maiores para as patologias como choque vasoplégico. Assim, poder-se-ia dizer que, nos Estados Unidos, havendo bula do azul de metileno, seu uso em concentrações diferentes e para indicações diferentes das constantes em bula aprovada pela FDA, constitui sim uso off-label[18].

Concluindo, poder-se-ia dizer que o uso do azul de metileno como medicamento para tratamento de doenças diferentes da metahemoglobinemia, a exemplo da vasoplegia e choque vasoplégico, é off-label em países como estados Unidos, União Europeia Japão e Australia. No Brasil, entretanto, por carecer de registro formal na Anvisa, inclusive para metahemoglobinemia, seu uso é baseado na liberdade que o médico possui para prescrever, fundamentado em princípios bioéticos como o da beneficência, considerando o máximo de benefício com a menor quantidade de prejuízos ao seu paciente, e da autonomia, que garante ao paciente decidir livremente aceitar ou recusar o tratamento, após esclarecimento dos riscos e benefícios, isto é após o devido consentimento esclarecido. Os mesmos fundamentos que permitem a prescrição de medicamentos para indicações “fora de bula” (off-label), serviriam para prescrever medicamentos para indicações “fora da rotulagem” (off-labeling) como é o caso do azul de metileno hoje considerado medicamento de notificação simplificada.

Na seara judicial este tem sido inclusive o entendimento de decisões a favor de compelir à União, Estados e Municípios a fornecer certos medicamentos que embora não possuam registro na Anvisa e/ou padronização em protocolos clínicos, sejam imprescindíveis para um tratamento e tenham sua prescrição atestada por médico. Veja-se, por exemplo:

Decisão do TJDFT:

5. A ausência de registro na ANVISA e padronização nos protocolos clínicos não constitui obstáculo intransponível à implementação do tratamento medicamentoso prescrito às expensas do Estado quando atestado sobejamente por médicos especialistas do SUS a inexistência de tratamento similar e eficaz, pois, na ponderação dos direitos e interesses em colisão, prepondera a garantia do acesso à saúde através da aquisição e dispensação do fármaco, ainda que não registrado, como medida de tutela dos direitos fundamentais que sobrepujam qualquer argumento contrário à preservação da vida e de todos os bens jurídicos que a circundam (REsp 1.366.857-PR)

6. Dizer que o tratamento pretendido pelo administrado não atende às indicações dos protocolos de diretrizes clínicas e terapêuticas do Ministério da Saúde, mas na contramão da realização do direito constitucional de acesso à saúde, fechar os olhos à inexistência de outro tratamento mais eficaz, significa compactuar com a violação à integridade e dignidade da pessoa humana em condição de fragilidade, o que é impensável e impraticável no âmbito da função jurisdicional do estado, que é precisamente denunciar a injustiça e realizar o direito.[19]

Decisão do STF:

1.Em regra, o Poder Público não pode ser obrigado, por decisão judicial, a fornecer medicamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), tendo em vista que o registro representa medida necessária para assegurar que o fármaco é seguro, eficaz e de qualidade.

2.Possibilidade, em caráter de excepcionalidade, de fornecimento gratuito do Medicamento “Hemp Oil Paste RSHO”, à base de canabidiol, sem registro na ANVISA, mas com importação autorizada por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde, desde que demonstrada a hipossuficiência econômica do requerente.

3.Excepcionalidade na assistência terapêutica gratuita pelo Poder Público, presentes os requisitos apontados pelo Plenário do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, sob a sistemática da repercussão geral: RE 566.471 (Tema 6) e RE 657.718 (Tema 500).

4. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, com a fixação da seguinte tese de repercussão geral para o Tema 1161: "Cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS”.[20]

 

1.3. O azul de metileno na Metahemoglobinemia (MHb)e seu efeito paradoxal[21] [22]

A metahemoglobina ou metemoglobina (MHb) se forma quando o átomo de ferro em estado ferroso (Fe 2+) da hemoglobina (Hb) perde um elétron (se oxida) para um agente oxidante (este, se reduz) diferente do oxigênio. O ferro contido no núcleo hem da Hb em estado ferroso (Fe 2+) ao perder o elétron, é oxidado ficando em estado férrico (Fe 3+), e neste estado será incapaz de se ligar e transportar O2. Juntamente com uma diminuição da capacidade de transporte de O2, a metemoglobina resulta num desvio para a esquerda da curva de dissociação da oxi-hemoglobina (CDOH), aumentando a afinidade da Hb pelo pouco O2 que transporta, resultando numa redução adicional na entrega de O2 aos tecidos. A combinação de MHb, desvio para a esquerda da CDOH e anemia (Hb 7,8 g/dL) resultará em uma diminuição dramática no fornecimento de O2 aos tecidos do paciente. Durante o transporte normal de O2, a molécula de ferro ferroso (Fe 2+) compartilha um elétron com O2 ocorrendo o que poderia se denominar “oxidação fisiológica do ferro ferroso pelo oxigênio”. Normalmente quando a molécula de O2 é liberada, o elétron compartilhado fica com a molécula de ferro, e esta permanece no estado ferroso. Ocasionalmente, o elétron compartilhado é liberado com a molécula de O2 que sai e o átomo de ferro é deixado no estado férrico oxidado. Isto explica o nível normal de metemoglobina de 1% na maioria dos indivíduos. A metemoglobinemia ocorre quando >1% da hemoglobina é metemoglobina. A metemoglobinemia frequentemente se apresenta como sangue escuro, “marrom chocolate”, apesar de uma PaO2 normal. A oximetria de pulso não é confiável na presença de MHb e pode ter uma tendência a ler aproximadamente 85% apesar de uma saturação arterial real, medida pela co-oximetria, que é muito menor. A causa do MHb pode ser hereditária, mas mais comumente é o resultado da exposição a drogas e/ou produtos químicos oxidantes (Tabela 1).

 

Tabela 1. Medicamentos associados à metemoglobinemia.

Nitrato de amila

Óxido nítrico

Benzocaína

Nitroglicerina

Cetacaína

Nitroprusiato

Cloroquina

Fenazopiridina

Dapsona

Nitrato de prata

Lidocaína

Sulfanilamida

Azul de metileno

Antibióticos contendo sulfa

Metoclopramida

nitrobenzeno

 

Níveis de metemoglobina >15% produzem cianose assintomática que não responde ao O2 suplementar. Níveis >20% resultam nos seguintes sintomas: dispneia, fadiga, náusea, tontura, dor de cabeça e síncope. A morte pode ocorrer com níveis de metemoglobina >70%. Devido à diminuição do fornecimento de O2, pacientes com condições como anemia, insuficiência cardíaca congestiva e doença arterial coronariana podem ser particularmente suscetíveis a resultados ruins com o MHb.

Existem vários mecanismos para manter os níveis normais de metemoglobina ≤1%. Esses mecanismos funcionam doando um elétron ao átomo de ferro oxidado. O sistema mais importante em circunstâncias normais envolve o dinucleotídeo de nicotinamida adenina (NADH) e a enzima NADH metemoglobina redutase. Os bebês são particularmente suscetíveis a agentes oxidantes porque esse sistema enzimático não está totalmente funcional até os 4 meses de idade. Há também uma variação generalizada nas respostas dos pacientes ao estresse oxidativo.

1.4. Com atua o azul de metileno (AM) no tratamento da metahemoglobinemia?

AM pode agir tanto como agente redutor e como agente oxidante. Como agente oxidante, na presença de NADPH e da enzima NADPH metemoglobina redutase, se reduz (ganha um elétron) a azul de leucometileno, que por sua vez cede esse elétron ao Fe 3+ da metemoglobina reduzindo o Fe 3+ para Fe 2+ e convertendo a metemoglobina em Hb com Fe em estado ferroso (Fe 2+) apto para de unir ao O2. O fosfato de dinucleotídeo de nicotinamida adenina (NADPH) é outro sistema enzimático responsável pela redução do ferro oxidado (Fe 3+). Este sistema NADPH é responsável apenas por uma pequena percentagem de redução da metemoglobina em circunstâncias normais. No entanto, quando combinado com AM, o sistema NADPH torna-se o principal meio de redução da metemoglobina (Fig.2).

 

Fig.2. Mecanismo de ação do azul de metileno na metahemoglobinemia

O tratamento da metemoglobinemia induzida por medicamentos (adquirida) é a única indicação aprovada pela FDA para o uso de AM. Dose: A dose para MHb recomendada pela literatura é de 1–2 mg/kg IV, geralmente administrada como 0,1–0,2 mL/kg de uma solução a 1% (10 mg/mL), muito lentamente durante vários minutos (>5 minutos). A literatura genericamente também relata que o AM também pode ser diluído em NaCl 0,9%, embora na bula do ProvayBlue existe a orientação de não diluir em NaCl 0.9% devido a que reduz a solubilidade do azul de metileno. Uma dosagem semelhante é frequentemente usada para o tratamento da síndrome vasoplégica e uso de uma infusão contínua de 0,25–0,5 mg/kg/h. AM é excretado na urina e na bile. As contraindicações incluem pacientes com hipersensibilidade ao AM, MHb produzida por antídotos na intoxicação por cianeto (porque a metemoglobina tem maior afinidade pelo cianeto do que pela citocromo oxidase, embora esta hipótese tenha sido questionada[23]) e pacientes com insuficiência renal grave. O AM pode exacerbar a anemia hemolítica induzida pela dapsona, mas nenhuma outra interação medicamentosa foi relatada. Os efeitos adversos graves incluem arritmia cardíaca, anemia hemolítica (em pacientes com deficiência de G6PD), hipertermia maligna, metahemoglobinemia paradoxal e anafilaxia. O AM deve ser administrado com cautela em pacientes com insuficiência renal e deficiência de G6PD. Considerando ser difícil saber se o paciente é portador de deficiência de G6PD poderia ser adequado usar uma dose inicial baixa calculado pelo peso corporal real, com limite de 100mg e observar a resposta do paciente[24] [25]. Caso não ocorram efeitos adversos poderia se administrar doses adicionais. Extravasamento: O azul de metileno tem um pH de 3 a 4,5 e o extravasamento pode causar necrose tecidual[26] e, por essa razão é preferível usar um acesso calibroso ou veia central e em casos de extravasamento usar as mesmas medidas adotadas nos casos de extravasamento de vasopressores (fentolamina, pomada de nitroglicerina 2%)[27].

1.5. UpToDate[28] [29]

1.5.1. Segundo o UptoDate, o AM é o tratamento de escolha quando níveis de metahemoglobina > 30%. O AM também é apropriado para aqueles sintomáticos com níveis de metemoglobina entre 20 e 30%, especialmente aqueles com comorbidades pulmonares ou cardíacas. Para pacientes assintomáticos com níveis de metemoglobina < 30%, com ou sem cianose, é prudente acompanhar o paciente sem terapia após a retirada do medicamento ou agente agressor.

1.5.2. Dosagem: Metemoglobinemia (adquirida): IV: 1 a 2 mg/kg durante 5 a 30 minutos (dose única máxima: 100 mg, utilizando o peso corporal real; entretanto, a dose máxima não foi estabelecida). Pode repetir a dose 1 hora depois se o nível de metemoglobina permanecer acima de 30% ou os sintomas persistirem. Nota: Se a resolução não ocorrer após 2 doses, considere terapia alternativa e consulte um centro de controle de intoxicações, pois altas doses podem resultar em hemólise ou metemoglobinemia paradoxal, especialmente em pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase. A repetição da dosagem pode ser necessária em pacientes que ingeriram uma droga ou toxina oxidante de ação prolongada (por exemplo, dapsona).

1.5.3. MHb Grave (exposição tóxica com sintomas preocupantes e/ou metemoglobina >30%): 1 a 2 mg/kg por via intravenosa, administrados durante 5 minutos (5 a 30 minutos usando peso corporal real). A dose ideal é desconhecida e outras doses têm sido utilizadas. Pode ser repetido após 1 hora se o nível de metemoglobina permanecer elevado (por exemplo, >20%) e/ou estiver aumentando. No entanto, a administração de mais de 2 a 3 doses (>7 mg/kg) é geralmente evitada devido à possibilidade de causar hemólise, mesmo em indivíduos que não apresentam deficiência de G6PD.

1.5.4. MHb Leve (exposição tóxica com sintomas menos preocupantes e metahemoglobina de 20 a 30%): Pode ser razoável começar com 1 mg/kg.

1.5.5. Resposta esperada: A maioria dos indivíduos apresenta rápida melhora clínica com AM e redução dos níveis de metemoglobina para <10% em 10 a 60 minutos. Aqueles que melhoram rapidamente (como a maioria) e cuja cianose diminui não precisam ter seu nível de metemoglobina verificado novamente, pois a precisão da medição da metemoglobina é prejudicada pela interferência do AM no mesmo comprimento de onda de absorção. Para aqueles cuja cianose retorna e os sintomas de hipóxia recorrem (provavelmente devido à presença contínua do agente agressor), podem ser necessárias doses repetidas de AM. Como a co-oximetria detecta AM como metahemoglobina, esta técnica não pode ser usada para acompanhar a resposta dos níveis de metemoglobina ao tratamento com AM. Se disponível, o método específico de Evelyn-Malloy discriminará entre metemoglobina e AM. Se não ocorrer uma melhora rápida, confirme se o diagnóstico original está correto e considere outras intervenções, como transfusão, exsanguinotransfusão ou oxigênio hiperbárico.

1.5.6. Contraindicações: AM não deve ser usado nos seguintes casos:

Indivíduos com deficiência de G6PD: AM pode precipitar hemólise e metahemoglobinemia paradoxal em indivíduos com deficiência de G6PD. Se o status de G6PD de um indivíduo for desconhecido e houver preocupação sobre uma possível deficiência de G6PD, como em indivíduos de ascendência mediterrânea, porto-riquenha, africana ou do sudeste asiático, pode ser possível começar com uma dose baixa de AM (por exemplo, 100 mg) e monitorar de perto, embora sejam preferidas doses mais altas administradas rapidamente. O AM não é eficaz no tratamento da metemoglobinemia em indivíduos com deficiência de G6PD. Para que o AM reduza a metemoglobina a hemoglobina, ele deve primeiro ser reduzido a azul de leucometileno por elétrons transferidos do NADPH. Em indivíduos com deficiência de G6PD, os eritrócitos apresentam reservas esgotadas de NADPH e uma capacidade prejudicada de gerar o metabólito ativo do AM, azul de leucometileno. O AM em sua forma não reduzida pode atuar como agente oxidante e precipitar hemólise em indivíduos com deficiência de G6PD.

Indivíduos que recebem agentes serotoninérgicos: AM pode precipitar a síndrome da serotonina (potencialmente fatal) em indivíduos que recebem agentes serotoninérgicos, como inibidores seletivos da recaptação da serotonina-ISRS (fluoxetina, paroxetina, sertralina, fluvoxamina, velafaxina, citalopram escitaloparam) e outros antidepressivos serotoninérgicos (mirtazapina, IMAO, etc). Isso ocorre porque o AM atua como um potente inibidor da monoamino oxidase (IMAO). Uma revisão da literatura de 2018 identificou 50 casos de síndrome da serotonina induzida por AM em indivíduos que receberam antidepressivos serotoninérgicos, um dos quais foi fatal.

1.5.7. Dosagem: Insuficiência Renal: Adulto

Genérico: Não há ajustes de dosagem fornecidos na rotulagem do fabricante. No entanto, use com cautela na insuficiência renal grave.

ProvayBlue: TFGe 60 a 80 mL/min/1,73 m2: Não é necessário ajuste posológico.TFGe 15 a 59 mL/min/1,73 m2: 1 mg/kg em dose única; considerar tratamento alternativo se o nível de metemoglobina permanecer >30% ou se os sintomas clínicos persistirem 1 hora após a administração.

1.5.8. Dosagem: Insuficiência Hepática: Adulto

Não há ajustes de dosagem fornecidos na rotulagem do fabricante; entretanto, o azul de metileno é extensivamente metabolizado no fígado. Monitore as toxicidades por um longo período de tempo após o tratamento com azul de metileno em pacientes com insuficiência hepática.

1.5.9. Dosagem: Ajuste para Toxicidade: Adulto

1.5.10. Hemólise grave: Interrompa e considere um tratamento alternativo.

1.5.11. Síndrome serotoninérgica: Interrompa o tratamento e inicie tratamento de suporte se surgirem sinais/sintomas.

1.6 De acordo com a bula oficial do azul de metileno aprovado pela FDA (USA) para o produto ProvayBlue (ampolas de 0,5%, de 10ml contendo 50mg ou 5mg/ml), ProvayBlue é hipotônico e pode ser diluído antes do uso em solução de 50 mL de dextrose 5% injetável para evitar dor local, principalmente na população pediátrica. Evitar diluir com soluções de cloreto de sódio, pois foi demonstrado que o cloreto reduz a solubilidade do azul de metileno. Administrar 1 mg/kg por via intravenosa durante 5-30 minutos. Se o nível de metemoglobina permanecer > 30% ou se os sinais e sintomas clínicos persistirem, uma dose repetida de 1 mg/kg pode ser administrada 1 hora após a primeira dose. Se a metemoglobinemia não desaparecer após 2 doses de ProvayBlue, considere opções alternativas de tratamento. pode causar síndrome serotoninérgica grave ou fatal quando usado em combinação com medicamentos serotoninérgicos. Evite o uso concomitante de ProvayBlue com inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), inibidores da recaptação de serotonina e norepinefrina (IRSN) e inibidores da monoamina oxidase. Da mesma forma, evitar não tomar medicamentos serotoninérgicos dentro de 72 horas após a última dose de ProvayBlue. As reações adversas mais comumente relatadas (≥10%) são dor nas extremidades, cromatúria, disgeusia, sensação de calor, tontura, hiperidrose, náusea, descoloração da pele e dor de cabeça. Foi relatada uma reação adversa grave (síncope devido a pausas sinusais de 3 a 14 segundos). Outras reações adversas relatadas após a administração de produtos da classe do azul de metileno incluem, mas não estão limitadas a, as seguintes: anemia hemolítica, hemólise, hiperbilirrubinemia, metemoglobinemia paradoxal; palpitações, taquicardia; prurido ocular, hiperemia ocular, visão turva; dor abdominal inferior, boca seca, flatulência, glossodinia, erupção da língua; morte, extravasamento no local de infusão, endurecimento no local de infusão, prurido no local de infusão, inchaço no local de infusão, urticária no local de infusão, inchaço periférico, sede; enzimas hepáticas elevadas; mialgia; disúria; congestão nasal, dor orofaríngea, rinorréia, espirros; úlcera necrótica, pápula, fototoxicidade; e hipertensão. Gravidez e Lactação: ProvayBlue pode causar danos fetais quando administrado a mulheres grávidas. A injeção intra-amniótica de mulheres grávidas com um produto da classe do azul de metileno durante o segundo trimestre foi associada à atresia intestinal neonatal e à morte fetal. Aconselhe as mulheres grávidas sobre o risco potencial para o feto. Não há informações sobre a presença de azul de metileno no leite humano. Devido ao potencial de reações adversas graves, incluindo genotoxicidade, interrompa a amamentação durante e até 8 dias após o tratamento com ProvayBlue. Insuficiência renal: As concentrações de azul de metileno aumentaram em indivíduos com insuficiência renal (TFGe 15 a 89 mL/min/1,73 m2). Ajustar a dosagem de ProvayBlue ® em pacientes com insuficiência renal moderada ou grave (TFGe 15 a 59 mL/min/1,73 m2). Nenhum ajuste de dose é recomendado em pacientes com insuficiência renal leve. Insuficiência Hepática: O azul de metileno é extensivamente metabolizado no fígado. Monitore pacientes com qualquer insuficiência hepática quanto a toxicidades e potenciais interações medicamentosas por um longo período de tempo após o tratamento com ProvayBlue[30].

1.7. Outras referências consultadas, relatam que aproximadamente 40% do AM é excretado pelos rins. Pacientes com qualquer insuficiência renal devem ser monitorados quanto a toxicidades e potenciais interações medicamentosas por um período prolongado após a terapia. Insuficiência renal: leve (TFG 60-89mL/min/1,73m2): Não é recomendado ajuste de dose. Insuficiência renal moderada ou grave (TFG 15-59 mL/min/1,73m2): 1 mg/kg (uma única dose). Se o nível de metemoglobina permanecer >30% ou se os sintomas clínicos persistirem 1 hora após a administração, considerar iniciar intervenções alternativas para metahemoglobinemia. Insuficiência hepática: O azul de metileno é extensivamente metabolizado no fígado. Deve se monitorar pacientes com qualquer insuficiência hepática quanto a toxicidades e possíveis interações medicamentosas por um longo período após a terapia[31] [32]. Toxicidade: Com 2-4 mg/kg/dose: anemia hemolítica, descamação da pele. Com >4 mg/kg/dose: Coloração azul-esverdeada da urina e fezes. Com 7 mg/kg/dose: Náuseas, vómitos, dor abdominal, febre, hemólise. Com 20 mg/kg/dose: Hipotensão. Com 80 mg/kg/dose: Coloração azulada da pele (semelhante à cianose). Isso pode ser tratado topicamente com solução diluída de hipoclorito[33].

1.8. Efeito paradoxal do AM produzindo metahemoglobina

Paradoxalmente, também foram relatados caos nos quais o AM causou MHb. Sendo o AM um agente oxidante, poderia então oxidar o Fe 2+ da Hb para Fe 3+ produzindo MHb. Isto sugere a existência de um equilíbrio entre a capacidade do AM de oxidar diretamente a Hb para MHb e sua capacidade de reduzir indiretamente a MHb para Hb na presença de NADPH e NADPH metemoglobina redutase. Este equilíbrio parece favorecer a redução da MHb para Hb, a menos que grandes doses de AM sejam administradas (>4mg/kg[34] ou >7mg/kg cumulativas[35]) ou se o AM for administrado muito rapidamente (bolus). O azul de metileno é um medicamento seguro em dose terapêutica inferior a 2 mg/kg; no entanto, quando os níveis são superiores a 7 mg/kg, ocorrerão muitos dos efeitos adversos que apresenta. Descobriu-se que a síndrome serotoninérgica ocorre quando se combinam agentes serotoninérgicos com azul de metileno na dose de 5 mg/kg. O uso do azul de metileno também requer cautela em pacientes com insuficiência renal devido à sua capacidade de reduzir o fluxo sanguíneo renal. Além disso, conforme observado nos efeitos adversos, os pacientes que tomam qualquer medicamento com atividade serotoninérgica, como os inibidores da recaptação de serotonina, devem evitar a administração de azul de metileno devido ao risco de síndrome serotoninérgica[36]. Se o AM for administrado muito rapidamente, uma concentração local elevada do medicamento pode resultar na formação de MHb, provavelmente por saturação ou diante de alguma anormalidade do sistema NADPH/NADPH metemoglobina redutase. A hipotermia é considerada um fator potencial no possível desenvolvimento de MHb pelo paciente, considerando que as vias enzimáticas que reduzem a MHb para Hb podem ser retardadas, resultando numa redução mais lenta do que o normal da metemoglobina e em níveis de metemoglobina mais elevados do que o normal. Hemodiluição e anemia também estão entre fatores associados. A deficiência de G6PD é uma contraindicação relativa ao uso de azul de metileno. Indivíduos com deficiência de G6PD não geram NADPH suficiente para reduzir eficientemente o azul de metileno em azul de leucometileno, que é necessário para a ativação do sistema NADPH/NADPH metahemoglobina redutase. Pacientes com deficiência de G6PD são propensos à hemólise induzida pelo azul de metileno, pois pode contribuir para a hemólise oxidativa. Além disso, na presença de hemólise, altas doses de azul de metileno podem iniciar a formação de metemoglobina. Portanto, o azul de metileno não é o modo ideal de tratamento para metahemoglobinemia em pacientes com deficiência de G6PD, uma vez que pode piorar a condição do paciente, aumentando a hemólise. Assim, é necessário avaliar qualquer deficiência de G6PD antes da administração do azul de metileno. O tratamento nestes casos é a transfusão de sangue ou a exsanguinotransfusão. A transfusão de sangue fresco melhorou a capacidade de transporte de oxigênio e o conteúdo de hemoglobina, melhorando os sintomas do paciente. O ácido ascórbico é um antioxidante que também pode ser administrado em pacientes com metahemoglobinemia. Foi demonstrado que a N-acetilcisteína reduz a metahemoglobina, mas ainda não é um tratamento aprovado para a metemoglobinemia.

1.9. Falsa MHb ou pseudo-MHb induzida pelo AM

AM pode afetar a leitura feita por monitores de oximetria comumente usados ​​durante cirurgia cardíaca. Leituras baseadas em faixas de luz próximas do infravermelho e em leituras ópticas podem ser errôneas na presença de AM. O AM absorve luz na mesma frequência (550–700 nm) que vários derivados da Hb, incluindo a metemoglobina. Isto pode resultar em falsas elevações dos valores de metemoglobina e Hb total, conforme medido por co-oximetria[37]. O AM também interfere nas leituras do oxímetro de pulso e pode diminuir falsamente as leituras de saturação de O2. A combinação de interferência nos valores de co-oximetria e oximetria de pulso pelo AM pode levar a um diagnóstico falso de metemoglobinemia (MHb falsa ou pseudo MHb).

Quando há suspeita de MHb durante a cirurgia cardíaca com CEC, deve-se realizar gasometria arterial, venosa e co-oximetria. A metemoglobinemia é confirmada por um nível elevado de metemoglobina e uma saturação arterial medida baixa (apesar de uma PO2 adequada), que é inferior à saturação arterial calculada. No caso de MHb real durante a CEC, deve-se tentar encontrar e remover o agente causador. Se o MHb for grave e não causada por AM, AM deve ser administrado (1–2 mg/kg IV) lentamente para reverter o MHb. Se o AM for o agente causador suspeito, não deverá ser mais administrado. Hipotermia, hiperoxigenação, transfusão de sangue, pinçamento aórtico com parada cardioplégica hipotérmica e altos fluxos de bomba arterial podem ser estratégias de perfusão sábias para diminuir a demanda de oxigênio e aumentar a oferta de oxigênio até que o MHb seja resolvido por meios intrínsecos. A meia-vida do MHb é de aproximadamente 1 hora. A exsanguinotransfusão é outra estratégia possível quando o AM é ineficaz. No caso de falsa MHb causada pela infusão de AM, a gasometria arterial, venosa e co-oximetria deve ser usada para medir com precisão as saturações de oxigênio arterial e venoso (e confirmar que o MHb existe) e orientar a prática de perfusão até o efeito AM se dissipar. O tratamento para acidose pode ser necessário devido ao baixo pH do AM. Gasometria arterial também deve ser usada para medição precisa do pH sanguíneo porque parece que o AM pode interferir na medição precisa do pH de certos monitores de gasometria em linha.

 

2. O QUE É O OXIDO NÍTRICO (NO)[38] [39]?

O óxido nítrico é uma molécula gasosa simples, habitualmente encontrada no ar atmosférico em pequenas quantidades, altamente tóxica devido à presença de radical livre (elétron extra desemparelhado) que a torna um agente químico altamente reativo (Fig.3). O NO é gasoso, inorgânico, incolor, possui sete elétrons do nitrogênio e oito do oxigênio, tendo um elétron desemparelhado. Quando diluído, o NO tem uma meia vida de menos de 10 segundos devido à sua rápida oxidação a nitrito e nitrato. O NO liga-se à hemoglobina e outras proteínas que contém o núcleo heme levando ao término de sua atividade biológica.

Fig.3 Estrutura do Oxido Nítrico

O NO era considerado um poluente ambiental com potencial carcinogênico. Entretanto, investigações despertaram interesse pelo NO em medicina. Primeiro, sua relação com a vasodilatação. Furchgott e Zawadzki atribuíram a ação de alguns vasodilatadores à liberação de um fator denominado endothelial-derivated relaxing factor (EDRF). Rapoport e Murad propuseram que a ação do EDRF era mediada pela guanosina monofosfato cíclica (GMPc). Posteriormente, Salvador Moncada demonstrou que o EDRF era idêntico ao NO. Pesquisas sobre os efeitos vasodilatadores de nitratos orgânicos levaram a descoberta de que essa ação era devido a aumento dos níveis de GMPc dependente da dose e que estes nitratos eram, a princípio, inativos, mas sua metabolização resultava na produção de NO, molécula efetora comum a todos os nitrovasodilatadores. O NO ativa a enzima guanilato ciclase (GC), levando a aumento do GMPc, que por sua vez leva a diminuição do cálcio citoplasmático (retorna ao reticulo sarcoplasmático) provocando desacoplamento da actina e miosina e, consequentemente relaxamento da fibra muscular lisa vascular. Segundo, sua relação com os mecanismos de imunidade do organismo, mediante ação citotóxica/citostática. Estudos mostraram que o organismo humano era capaz de converter nitrato (NO3-) e nitrito (NO2-) da dieta em nitrosaminas carcinogênicas, após a reação do NO2- com aminas. Posteriormente foi demonstrada a produção de NO3- em homens saudáveis. Estudos mostraram também a produção de NO3- e NO2- por macrófagos de rato in vitro, em resposta ao lipolissacarídeo de Escherichia coli, e estabeleceram, de forma definitiva, uma associação entre a presença de macrófagos, a resposta imune e a síntese de NO3-. Estudos subsequentes, esclareceram a origem do NO3-, estabelecendo a L-arginina como o aminoácido essencial para a sua produção. Palmer et al. demonstraram que a L-arginina era o precursor fisiológico do NO nas células endoteliais. Com base nesta informação, vários grupos de investigadores suspeitaram que o NO era o provável precursor da síntese de NO3- e NO2- em macrófagos. Subsequentemente, esta hipótese foi comprovada, restando demonstrado que o NO é o principal mediador citotóxico de células imunes efetoras ativadas e constitui a mais importante molécula reguladora do sistema imune. Terceiro, sua relação com a ação de neurotransmissores do SNC. Ferrendelli et al. demonstraram que o glutamato, um conhecido neurotransmissor, provocava um aumento de GMPc no sistema nervoso central. Miki et al. demonstraram a ativação da guanilato ciclase cerebral pelo NO. Nessa mesma época, foi constatada a presença de um fator endógeno, de baixo peso molecular, capaz de ativar a GC em sinaptossomas do cérebro de rato. Posteriormente, o ativador endógeno da GC em células de neuroblastoma foi identificado. Naturalmente, nessa época não havia, ainda, qualquer conhecimento do NO como molécula mensageira e tampouco da sua formação a partir da arginina. O estabelecimento da via L-arginina:NO e do paralelismo entre síntese de NO e acúmulo de GMPc nas células endoteliais levou vários grupos a pesquisarem a existência desta via no sistema nervoso central. Em 1989, foi confirmada a produção de NO no sistema nervoso e demonstrado que o glutamato é o mediador da liberação de NO por receptores N-metil-d-aspartato (NMDA) estimulados. No ano seguinte, foi isolada do cerebelo de rato e purificada uma isoforma da enzima responsável pela formação de NO, a óxido nítrico sintase (NOS).

 

2.1 Síntese e inibição

A síntese de NO tem como precursor a L-arginina. O NO resulta da oxidação de um dos dois nitrogênios guanidino da L-arginina, que é convertida em L-citrulina. Esta reação é catalisada pela enzima NO-sintase (NOS). A síntese de NO, envolve duas etapas. Na primeira, ocorre a hidroxilação de um dos nitrogênios guanidinos da L-arginina para gerar NG-hidroxi-L-arginina (NHA). Esta reação utiliza NADPH e oxigênio (O2) e, provavelmente, envolve o complexo heme presente na estrutura da NOS. Na segunda etapa, ocorre a conversão da NHA em NO e citrulina como subproduto (Fig. 4).


Fig. 4. Reação catalisada pela NO-sintetase

 

A NO funciona como homodímero com subunidades estruturalmente suportadas por um íon Zinco (Zn 2+). A dimerização é essencial para a ativação e leva ao sequestro de ferro e à criação de locais de ligação para a arginina e o cofator essencial tetrahidrobiopterina (BH4). Além disso, a dimerização facilita a transferência de electrões entre dois domínios chave ligados por um motivo de ligação à calmodulina. Na e-NOS e na n-NOS, a ligação da calmodulina ao homodímero NOS é dependente do cálcio. Por outro lado, a calmodulina está fortemente ligada à i-NOS e, portanto, apresenta ativação independente do cálcio. Após o sequestro do ferro, o sítio de ligação da arginina é expresso. A transferência de elétrons também depende da disponibilidade do mononucleotídeo de flavina (FMN) e do dinucleotídeo de flavina adenina (FAD) e da ligação da calmodulina (CaM), que é dependente de cálcio para e-NOS e n-NOS e independente para i-NOS. NADPH, oxigênio e tetrahidrobiopterina (BH4) são cofatores essenciais para a síntese de óxido nítrico (Fig. 5).

 

Fig.5 NOS e os cofatores do mononucleotídeo de flavina (FMN), dinucleotídeo de flavina adenina (FAD), NADPH, oxigênio e tetrahidrobiopterina (BH4). Calmodulina (CaM), que é dependente de cálcio para e-NOS e n-NOS e independente para i-NOS.

Isoformas de NOS. Existe uma variedade de isoformas de NOS aparentemente codificadas por três genes distintos. Estas isoformas são agrupadas em duas categorias, a NOS constitutiva (c-NOS), dependente de íons cálcio (Ca++) e de calmodulina, que está envolvida na sinalização celular, e a NOS induzível (i-NOS, tipo II), produzida por macrófagos e outras células ativadas por endotoxinas bacterianas ou citocinas. A c-NOS compreende a NOS neuronal (n-NOS, tipo I), encontrada predominantemente nos sistemas nervoso e entérico, mas também no músculo liso vascular e nos miócitos cardíacos, e a NOS endotelial (e-NOS, tipo III), presente normalmente nas células endoteliais vasculares, miócitos cardíacos e nas plaquetas. A c-NOS produz pequenas quantidades de NO (nano ou picomols) e sua ativação depende da interação com a calmodulina, que, por sua vez, é controlada pelos níveis de Ca++. A i-NOS não é expressa sob condições normais, é induzida por citocinas e/ou endotoxinas em uma variedade de células, incluindo-se macrófagos, linfócitos T, células endoteliais, miócitos, hepatócitos, condrócitos, neutrófilos e plaquetas. Esta isoforma requer algumas horas para ser expressa, mas, uma vez sintetizada, libera quantidades maiores de NO que a c-NOS e a produção deste continua indefinidamente até que a L-arginina ou os cofatores necessários para sua síntese sejam depletados ou ocorra a morte celular. Posteriormente foi demonstrado que a n-NOS e e-NOS são também objeto de regulação expressional, além do que a i-NOS também poderia ser expressa constitutivamente, mesmo em condições fisiológicas[40].

A expressão diferencial das isoformas da NOS dentro da célula ou nos tecidos também influencia a síntese do NO. A e-NOS é comumente encontrada ligada à caveolina, uma proteína de ancoragem especializada dentro das cavéolas da membrana da célula endotelial que pode regular a produção de NO. Esta conformação tem sido implicada no desenvolvimento da síntese reduzida de NO na microvasculatura séptica. Nos miócitos, as três isoformas de NOS estão distribuídas diferencialmente, sendo a e-NOS encontrada predominantemente no endotélio, a n-NOS nos nervos pré-sinápticos e ambas encontradas em diferentes porções do retículo sarcoplasmático. A i-NOS, por outro lado, quando induzida por estresse pró-inflamatório, é mais comumente encontrada no citoplasma, onde gera aumentos duas ou três vezes maiores na síntese de NO em comparação com as isoformas constitutivas.

Todas as isoformas de NOS podem ser inibidas por análogos da arginina N-substituídos, como a NG-monometil-L-arginina (L-NMMA), N-imino-etil-L-ornitina (L-NIO), NG-amino-L-arginina (L-NAA), NG-nitro-L-arginina (L-NA) e o metil éster correspondente, o NG-nitro-L-arginina-metil-éster (L-Name). Estes análogos competem com a L-arginina e agem como inibidores estereoespecíficos da NOS. Além destes inibidores, a aminoguanidina é também capaz de inibir a NOS e apresenta uma relativa seletividade para i-NOS. O azul de metileno inibe a i-NOS, que é ativada na presença de endotoxinas e citocinas, e compete com o NO pelos sítios de ligação da enzima intracelular guanilato ciclase (GC). A inibição do GC previne um aumento na guanosina cíclica 3′,5′ mono-fosfato (GMPc). Vários destes inibidores têm sido utilizados em estudos da função do NO, tanto em células isoladas como in vivo.

2.2 Mecanismo de ação do NO

2.2.1 NO produzido pela e-NOS

O NO produzido pelas células endoteliais tem um papel essencial no processo de relaxamento do vaso sanguíneo. Em condições fisiológicas, o relaxamento vascular ocorre quando receptores da membrana das células endoteliais são ativados por estímulos solúveis (incluindo-se acetilcolina, bradicinina, adenosina difosfato, substância P, serotonina e outros) ou quando há um aumento do atrito exercido pelas células circulantes sobre a camada endotelial (shear-stress ou stress de cisalhamento), levando à ativação da e-NOS presente nestas células e à consequente produção de NO. A e-NOS está estrategicamente ancorada à membrana da célula endotelial, o que favorece a presença de grandes quantidades de NO próximo à camada muscular do vaso e às células sanguíneas circulantes. Em resposta ao estímulo, ocorre a fosforilação da e-NOS, determinando sua translocação para o citosol. Este mecanismo provavelmente tem um papel na regulação da produção de NO in situ e na sua atividade biológica. O NO produzido na célula endotelial difunde-se rapidamente para a célula muscular e para o lúmen vascular. A difusão rápida e a facilidade com que esta molécula penetra em outras células, graças ao seu pequeno tamanho e à sua característica lipofílica, são cruciais para o entendimento das suas atividades biológicas. No interior da célula muscular, o NO interage com o ferro do grupo heme da enzima guanilato ciclase (GC), acarretando uma alteração da conformação desta enzima, tornando-a ativa (GCa). A GCa catalisa a saída de dois grupamentos fosfato da molécula de guanosina trifosfato (GTP), resultando na formação de guanosina monofosfato cíclica (GMPc). O sistema GC-GMPc parece ter uma importância central para a ação fisiológica do NO. O aumento da concentração de GMPc na célula muscular resulta no relaxamento desta célula. O mecanismo de relaxamento envolve a diminuição da entrada de Ca++ para a célula, a inibição da liberação de Ca++ do retículo endoplasmático e o aumento do sequestro de Ca++ para o retículo endoplasmático. Além da ação direta na GC, o NO se liga diretamente às porções heme em uma variedade de proteínas e leva a uma série de processos, incluindo a modulação da cadeia de transporte de elétrons mitocondrial no nível do complexo IV e a inibição do metabolismo mediado pelo citocromo P450. O mecanismo pelo qual o NO é removido da GC após ocorrer a vasodilatação necessária é desconhecido. Sabe-se que a produção de GMPc é interrompida segundos após a remoção do NO da enzima guanilato ciclase. O NO que deixa a célula endotelial em direção à corrente sanguínea pode penetrar nas plaquetas, especialmente nas que se encontram justapostas à parede do vaso ou nas hemácias. No interior das plaquetas, de modo análogo ao discutido para a célula muscular, o NO promove um aumento de GMPc e a consequente diminuição do Ca++ livre. Como o Ca++ é essencial para o processo de ativação plaquetária, esse processo estará inibido, prejudicando a agregação ou adesão plaquetária. As plaquetas humanas possuem e-NOS e são também produtoras de NO. Tanto o NO oriundo das células endoteliais quanto o produzido endogenamente são importantes no controle da função plaquetária. No interior das hemácias, o NO é eliminado através de sua reação com o ferro da hemoglobina, tanto oxigenada (Hb-O2) quanto desoxigenada.

·         Hb-O2 + NO = Metemoglobina (metHb) + NO3-

·         Hb + NO = Nitrosil-hemoglobina (NO-Hb)

·         NO-Hb + O2= MetHb + NO3-

 

2.2.2 NO produzido pela i-NOS

O NO resultante da ativação da i-NOS possui ação citotóxica e citostática, promovendo a destruição de microrganismos, parasitas e células tumorais. A citotoxicidade do NO resulta da sua ação como radical livre, seja diretamente ou da sua reação com outros compostos liberados durante o processo inflamatório. A base bioquímica para a ação direta do NO consiste na sua reação com metais (especialmente o ferro) presentes nas enzimas do seu alvo. Desta forma, são inativadas enzimas cruciais para o ciclo de Krebs, para a cadeia de transporte de elétrons, para a síntese de DNA e para o mecanismo de proliferação celular. Em processos infecciosos, células ativadas como macrófagos, neutrófilos e células endoteliais secretam simultaneamente NO e intermediários reativos do oxigênio, e a ação citotóxica indireta do NO consiste, principalmente, na sua reação com esses intermediários do oxigênio. Uma ação tóxica cooperativa de NO e ânion superóxido (O2-) resulta na formação de peroxinitrito (ONOO-), um poderoso oxidante de proteínas. O ONOO- pode, posteriormente, se protonar na presença de íon hidrogênio (H+), originando um radical altamente reativo e tóxico, o hidroxilo (OH), aumentando efetivamente a ação tóxica do NO e do O2-. Entretanto, a célula produtora de NO e sua vizinhança não estão a salvo da toxicidade dessa molécula, podendo ser destruídas. Evidências estão se acumulando no sentido de admitir que o NO contribui para algumas condições patológicas como asma, artrite reumatoide, lesões ateroscleróticas, tuberculose, esclerose múltipla, Alzheimer e gastrite induzida por Helicobacter pylori.

2.3 Óxido nítrico e vasoproteção

Atualmente, está bem estabelecido que o NO resultante da e-NOS desempenha um papel na proteção do vaso sanguíneo. Esta ação deriva de:

2.3.1. Manutenção do tônus vascular

O tônus vascular é normalmente mantido por uma constante liberação de quantidades ínfimas de NO sempre que há um aumento do atrito exercido pelas células circulantes sobre a camada endotelial do vaso (shear-stress), resultando em uma discreta vasodilatação. Além disso, a pressão sanguínea e o fluxo pulsátil contribuem para regular a liberação de NO em condições fisiológicas.

2.3.2 Regulação da pressão sanguínea

Experimentos com modelos animais comprovam que a inibição de NO resulta em um aumento drástico da pressão arterial.

2.3.3 Prevenção da agregação (adesão) plaquetária

Através da elevação da GMPc e da diminuição do Ca++ intraplaquetário.

2.3.4 Inibição da adesão de monócitos e neutrófilos ao endotélio vascular

A adesão de neutrófilos ao endotélio vascular é um complicador importante para a patogênese da aterosclerose. A adesão depende da expressão de moléculas de adesão na superfície da célula endotelial, como a molécula de adesão da célula vascular (VCAM-1), a molécula de adesão intercelular (ICAM), a proteína quimiotática de monócitos (MCP-1), a selectina e as citocinas. Estas moléculas são expressas quando há um aumento do estresse oxidativo na célula endotelial. Doadores de NO têm mostrado potentes inibidores da adesão de monócitos e neutrófilos à camada endotelial.

2.3.5 Efeito antiproliferativo

A proliferação das células da camada muscular do vaso tem um papel-chave no estreitamento da luz vascular. Um estímulo proliferativo é o fator de crescimento derivado das plaquetas (PDGF). Nesse processo, as células da camada muscular apresentam alterações importantes da sua função, com perda da atividade contrátil. As células musculares podem migrar para a íntima, contribuindo para a hiperplasia desta. Tem sido demonstrado que o NO produzido pelo endotélio vascular ou oriundo de doadores exógenos é capaz de inibir a proliferação da camada muscular, embora o mecanismo de atividade antiproliferativa não esteja completamente esclarecido.

2.3.6. Efeito antioxidativo

O estresse oxidativo do vaso contribui para as doenças tromboembólicas. O NO produzido pela e-NOS induz a produção da enzima superóxido dismutase (SOD) na camada muscular do vaso e extracelular, diminuindo o aníon superóxido (O2-) disponível e, consequentemente, a produção de peroxinitrito (ONOO-). O NO também induz a síntese de ferritina, que se liga a íons ferro livres e previne a geração de O2-. Por outro lado, na presença da placa aterosclerótica, os macrófagos ativados produzem O2-, ativam a i-NOS e produzem NO. Desta forma, são produzidos ONOO- e OH, comprometendo a integridade tissular, favorecendo a ativação da coagulação e contribuindo para a obstrução da luz vascular.

2.3.7 Determinação laboratorial de NO

A detecção do NO em amostras biológicas representa um desafio, em função da ínfima concentração e da meia-vida extremamente curta deste composto, cerca de 4 a 6 segundos no plasma e 10 a 60 segundos nos tecidos. Diversos métodos utilizando as mais avançadas tecnologias têm sido propostos na literatura para determinação de NO, tanto direta quanto indiretamente, através de ensaios que reflitam a sua presença. A determinação direta de NO é obtida utilizando-se metodologias complexas (como a ressonância eletrônica paramagnética (EPR) e a quimioluminescência) e por detecção eletroquímica, utilizando sensores intravasculares. A determinação indireta pode ser feita por dosagem plasmática ou urinária de nitrato e nitrito (produtos da reação do NO com o oxigênio), da GMPc, do coproduto (L-citrulina), da detecção de nitrosil hemoglobina (NO-Hb) nas hemácias circulantes, da quantificação histoquímica da NOS, da determinação da atividade da NOS, da avaliação de suas ações fisiológicas, como o relaxamento vascular e a inibição da agregação plaquetária, do uso de inibidores da NOS e da detecção de resíduos de 3-nitrotirosina, formados pela ação do ONOO- sobre os resíduos tirosina das proteínas. O turnover de proteínas contendo resíduos 3-nitrotirosina gera resíduos livres de 3-nitrotirosina.

Na prática clínica almeja-se encontrar um marcador de inflamação e destruição celular, e a detecção de 3-nitrotirosina por cromatografia liquida de alta performance (High-performance liquid chromatography – HPLC) tem sido um marcador promissor. A dosagem no plasma ou no líquido sinovial de 3-nitrotirosina reflete a exposição ao ONOO- proveniente da reação do NO e O2-.

2.4 NO na sepse[41]

No início da sepse, observa-se também a presença de i-NOS plasmática associada a microvesículas (MV-iNOS) extracelulares, que produzem quantidades tóxicas de NO, resultando em disfunção orgânica. É importante ressaltar que as MV-iNOS encontradas no plasma permanecem inativadas, mas, ao se instalarem em células receptoras suscetíveis, produzem quantidade de NO tóxico dentro da célula, causando morte celular. Sabe-se que a produção fisiológica de NO pela expressão de e-NOS exerce papel protetor na microcirculação, devido à sua capacidade de induzir a vasodilatação, para equilibrar a pressão arterial na presença de estresse ou cisalhamento do vaso sanguíneo, mas, na fase tardia da sepse, é observada uma vasodilatação microvascular prejudicada, pela diminuição de NO derivado de e-NOS, contribuindo, assim, para a gravidade da microcirculação. Cabe destacar que, em pacientes com sepse, a hiperprodução de NO pela i-NOS, em condições de endotoxemia, lipopolissacarídeos microbianos e citocinas pró-inflamatórias, pode levar ao aumento da vasodilatação e queda da pressão arterial, hiporreatividade endotelial a vasopressores convencionais e disfunção miocárdica. A disfunção endotelial induzida pela sepse é uma síndrome multifacetada, que inclui comprometimento da coagulação, fibrinólise, permeabilidade, recrutamento de leucócitos e tônus vascular, resultando em alteração na biodisponibilidade de NO derivado de e-NOS. Portanto, as células endoteliais são, sem dúvida, um fator importante na resposta sistêmica à infecção e ao início da falência de órgãos. É importante ressaltar que, durante a sepse, a biodisponibilidade endógena de NO também pode diminuir devido aos níveis elevados dos inibidores de NOS, como a dimetilarginina assimétrica e a dimetilarginina simétrica, sendo que esses inibidores desempenham papel importante na fisiopatologia da sepse, mas também podem estar associados a desfechos ruins em pacientes com sepse. A diminuição da produção de NO devido ao aumento de dimetilarginina assimétrica consequentemente diminuiria a hipotensão, que seria um benefício durante a sepse, porém pode diminuir também a proteção microvascular e a resposta imune inata. Por outro lado, a inibição de longo prazo de NOS pode ser muito arriscada devido aos efeitos na e-NOS, em particular para pacientes com riscos cardiovasculares ou doenças metabólicas e renais, pois o NO fisiológico derivado da e-NOS é considerado um protetor microvascular, e sua inibição deve ser evitada. A compreensão dos efeitos do NO durante a sepse ainda é complexa, pois, da mesma forma que o aumento da concentração de NO encontrado em pacientes sépticos se associa com a gravidade e o óbito, a inibição também pode levar à falha na microcirculação. Essa inibição também pode levar à falência de órgãos e óbito, pois induz disfunção microvascular, levando à redução da perfusão e à entrega de oxigênio aos órgãos, estado pró-inflamatório e pró-trombótico no endotélio, liberação de citocinas inflamatórias, estresse oxidativo e disfunção mitocondrial. Estudos realizados em pacientes com sepse, internados em unidade de terapia intensiva, evidenciaram correlação positiva entre o NO e o escore de APACHE II (Acute Physiology and Chronic Health Evaluation), inferindo que o NO aumentado pode refletir a gravidade da sepse, bem como o grau de disfunção de múltiplos órgãos. Em estudo, realizado na China em 2018, os autores compararam o nível de NO entre pacientes com choque séptico e pacientes com choque não sépticos e evidenciaram que o nível de concentração de NO em pacientes sépticos é maior no estágio inicial e permanece até 3 dias pós-diagnóstico. Assim, nos estágios iniciais da sepse, estresse oxidativo, inflamação e níveis séricos de NO aumentados podem refletir na gravidade de pacientes com sepse. O aumento da concentração de NO desempenha papel de mediador da perda do tônus vascular (vasoplegia) e contribui para a depressão miocárdica observada no estágio tardio da sepse, representando o aumento da gravidade e a exacerbação da sepse. Estudos mostram altos níveis de NO em pacientes com sepse, que vieram a óbito e apresentaram disfunção hemodinâmica. A produção elevada contribui para uma hipotensão refratária associada à sepse e também para a lesão de órgãos específicos em casos de superprodução de NO, assim como está associada ao comprometimento da função pulmonar, intestinal e hepática, bem como à insuficiência renal. Cabe destacar que a sepse também é uma das principais causas de lesão renal aguda, e o aumento do NO está envolvido em vários mecanismos dessa disfunção das células endoteliais, como as alterações microcirculatórias e o estresse oxidativo. As isoformas endoteliais e-NOS e n-NOS são as principais fontes de NO em condições basais no controle da perfusão renal, porém a i-NOS aumenta a produção de NO durante a sepse, e sua super-expressão no córtex renal resulta em isquemia medular. Pode-se inferir que o aumento do NO pode estar visto como um biomarcador de gravidade em pacientes com sepse e predizer resultados clínicos deles, sendo necessário na prática clínica reconhecer precocemente os sinais de alerta da sepse para nortear os cuidados assistenciais aos pacientes sépticos.

Percebe-se que o impacto da produção de NO na sepse é extenso com aspectos conflitantes. De um lado, o NO é essencial para a manutenção das respostas cardiovasculares e imunológicas normais à infecção, através de diversos efeitos, incluindo manutenção da função microvascular, regulação da agregação plaquetária e atividade leucocitária, adesão e transporte. Da mesma forma, o NO é diretamente tóxico para a maioria das bactérias e tem ação eliminadora de radicais livres, o que reduz a lesão tecidual e a disfunção bioenergética. Por outro lado, na sepse e no choque séptico, esses processos tornam-se desregulados em graus variáveis. A produção exagerada de NO tem sido implicada no desenvolvimento de comprometimento macrovascular, disfunção miocárdica, capacidade de resposta reduzida a estímulos adrenérgicos, toxicidade celular direta e falha bioenergética. Ademais, a produção local prejudicada de NO no endotélio tem sido citada como causa da disfunção microvascular e da perfusão regional prejudicada observada no choque séptico.


[1] Arias-Ortiz, J., Vincent, JL. Administration of methylene blue in septic shock: pros and cons. Crit Care 28, 46 (2024). https://doi.org/10.1186/s13054-024-04839-w

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Azul_de_metileno

[3] https://consultas.anvisa.gov.br/#/saude/q/?nomeProduto=azul%20de%20metileno

[4] Lei nº 5.991 de 17.12.1973. Dispõe sobre o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos, e dá outras Providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5991.htm

[5] RDC Anvisa nº 199 de 26.10.2006. Institui a notificação simplificada de medicamentos mediante peticionamento eletrônico. https://bvs.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2006/res0199_26_10_2006.html

[6] CFM. ESPACHO SEJUR Nº 482/213. O uso de material/medicamento OFF LABEL não pode ser tratado de forma ampla e geral, devendo ser analisado casuisticamente.

[7] CFM. PARECER nº 2/2016. Os procedimentos médicos off label são aqueles em que se utilizam materiais ou fármacos fora das indicações em bula ou protocolos, e sua indicação e prescrição são de responsabilidade do médico. Não compete às Comissões de Ética emitir juízo de valor sobre o uso de off label.

[8] GOMES CARDOSO, Luis André. Uso Off-Label de Medicamentos. Trabalho apresentado à Universidade Fernando Pessoa como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Mestre em Ciências Farmacêuticas. Universidade Fernando Pessoa. Porto, 2014

[9] FARIA PIRES ANICETO, Dalmo Luiz. Anvisa e o uso off label de medicamentos: as relações entre evidência e regulação. Fortaleza 2019.

[10] CUNHA DA SILVEIRA, Marilusa. O uso Off Label de Medicamentos no Brasil. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, na Fundação Oswaldo Cruz, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Saúde Pública. Área de concentração: Políticas Públicas, Gestão e Cuidado em Saúde. Brasília, 2019.

[11] https://consultaremedios.com.br/azul-de-metileno/bula

[12] Um medicamento órfão é um agente farmacêutico desenvolvido para tratar certas condições médicas raras. Não seria rentável produzir um medicamento órfão sem assistência governamental, devido à pequena população de pacientes afectados pelas condições. As condições que os medicamentos órfãos são usados ​​para tratar são chamadas de doenças órfãs. A atribuição do estatuto de órfã a uma doença e aos medicamentos desenvolvidos para a tratar é uma questão de política pública que depende da legislação (se houver) do país. Ref: https://en.wikipedia.org/wiki/Orphan_drug

[13] https://www.accessdata.fda.gov/drugsatfda_docs/nda/2016/204630Orig1s000PharmR.pdf

[14] https://provayblue.com/FDA-Approved

[15] https://www.biospace.com/article/releases/provepharm-receives-fda-approval-for-marketing-of-provayblue-methylene-blue-injection-/

[16] https://www.ema.europa.eu/en/medicines/human/EPAR/methylthioninium-chloride-proveblue

[17] https://provayblue.com/pdf/provayblue-full-prescribing-information_RevJAN2024.pdf

[18] https://www.goodrx.com/methylene-blue/methylene-blue-uses

[19] TJDFT. AC 20150110710680APC (0017379-06.2015.8.07.0018). Rel. Des. Teófilo Caetano. 1ª Turma Civel. Decisão unânime. Publicado no DJE: 16/08/2017. Pág.: 173-191

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[28]https://www.uptodate.com/contents/methemoglobinemia?search=azul%20de%20metileno&source=search_result&selectedTitle=1%7E132&usage_type=default&display_rank=1

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[30] https://provayblue.com/Dosage-Administration

[31] https://www.drugs.com/dosage/methylene-blue.html

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[37] O termo co-oximetria refere-se a dispositivos que utilizam pelo menos quatro comprimentos de onda de luz para medir não apenas oxi e desoxi-hemoglobina, mas também outras formas de hemoglobina (por exemplo, CO-Hb, MHb). Embora a maioria dos oxímetros de pulso convencionais use dois comprimentos de onda de luz e só possam detectar oxi-hemoglobina ou desoxi-hemoglobina (para fornecer uma saturação funcional, SO2), alguns oxímetros de pulso contêm muito mais comprimentos de onda e a capacidade de funcionar como “co-oxímetros de pulso”. Com mais comprimentos de onda, esses dispositivos podem medir dishemoglobinas e fornecer saturação “fracionada” de oxigênio”.

[38] Dusse, L. M. S., Vieira, L. M., & Carvalho, M. das G. (2003). Revisão sobre óxido nítrico. Jornal Brasileiro De Patologia E Medicina Laboratorial, 39(4), 343–350. https://doi.org/10.1590/S1676-24442003000400012

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