sábado, 21 de novembro de 2020

 MEDICINA INTENSIVA PERSONALIZADA E MEDICINA INTENSIVA CUSTOMIZADA 

Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos. Coordenador da Residência em Medicina Intensiva – COREME e membro do Grupo Técnico de Enfrentamento à COVID -19 da Santa Casa de São Jose dos Campos.



A Medicina centrada no paciente e não na doença tem sido um modelo de atenção que tem ganhado força nos últimos anos, permitindo o desenvolvimento de tratamentos médicos centrados no cuidado da pessoa, com a identificação de suas ideias e emoções a respeito do adoecer e a resposta a elas; assim como a identificação de objetivos comuns entre médicos e pacientes sobre a doença e sua abordagem, com o compartilhamento de decisões e responsabilidades[1]. Resulta numa mudança de paradigma dos padrões de cuidado tradicional, baseados em protocolos de tratamento com base na melhor evidência resultante de pesquisas científicas. Assim, a melhor evidencia para tratar a doença “X” determina que seja feito o tratamento “Y” que será aplicado por igual a todos os pacientes portadores da doença “X”. Entretanto, isso não corresponde à realidade, já que cada organismo funciona de uma maneira bastante particular e, por mais que se tente randomizar as populações de estudo, sempre existira uma heterogeneidade determinada pela genética própria de cada individuo que não é levada em consideração.


A MEDICINA INTENSIVA PERSONALIZADA

Nessa perspectiva, a Medicina personalizada é um modelo de prática médica no qual são considerados aspectos individuais do paciente no desenvolvimento do plano terapêutico, como sua condição genética, biomarcadores específicos, histórico de doenças e tratamentos anteriores, fatores ambientais e preferências comportamentais, entre outras.  Também tem sido denominada de "medicina de precisão", "medicina estratificada", "medicina genômica". Medicina de precisão, porque faz uso da genética, epigenética, exposição ambiental e outros dados para definir padrões individuais de doença, permitindo individualizar o tratamento. Medicina estratificada, porque divide os pacientes com uma doença específica em subgrupos, usando como parâmetros suas características individuais, permitindo estabelecer uma melhor resposta para um medicamento particular ou um menor risco de efeitos colaterais.  Como corolário surgiu a farmacogenética[2]. O conceito de medicina personalizada engloba: testes genéticos para revelar predisposição a doenças; intervenção no estilo de vida para prevenção; detecção precoce da doença no nível molecular; diagnóstico preciso e estratégia de tratamento customizada; resultados melhorados através de tratamentos em alvos pré-selecionados com redução de efeitos colaterais; e monitoramento ativo de resposta ao tratamento e progressão da doença. Portanto, a medicina personalizada é um conceito que além das caraterísticas genéticas do paciente, envolve avaliar idade, sexo, altura, peso, dieta, estilo de vida, ambiente de trabalho, histórico familiar, entre muitos outros fatores[3]. Atualmente o campo de desenvolvimento da medicina personalizada abrange a oncologia com o uso de biomarcadores para detectar câncer em indivíduos assintomáticos (exemplo o câncer SEEK test); uso do perfil genético para ajudar a estratificar a necessidade de terapia ou o tipo de terapia em pacientes com câncer em estágio inicial (exemplos incluem câncer de mama, pulmão e cólon). A farmacogenética, também conhecida como farmacogenômica, é o estudo da variabilidade na resposta ao medicamento devido a fatores genéticos e inclui a previsão da resposta do paciente a uma terapia específica e a suscetibilidade à toxicidade e eventos adversos. Os dados farmacogenéticos podem informar tanto a seleção de um tratamento específico quanto a dose individualizada e o esquema de dosagem para esse tratamento. Embora mais notavelmente impactando a dosagem de medicamentos usados ​​para tratar doenças malignas hematológicas e tumores sólidos, marcadores farmacogenéticos também estão disponíveis para medicamentos usados ​​no tratamento de doenças infecciosas, cardíacas, reumatológicas e pulmonares. Em obstetrícia, com o reconhecimento de que uma quantidade suficiente de DNA fetal está presente na circulação materna para estudo clínico, está se tornando cada vez mais fácil e seguro avaliar com precisão a integridade estrutural e a variação da sequência dos genomas fetais. Consequentemente, os testes genéticos pré-natais estão desempenhando um papel cada vez mais importante na assistência obstétrica, com um movimento em direção à implementação de abordagens personalizadas em medicina fetal[4].

No 13º Congresso Mundial de Medicina Intensiva e 13º Congresso Brasileiro de Medicina Intensiva, realizados em novembro de 2017, no Rio de Janeiro, o Dr. Jean Louis Vincent, palestrou sobre o potencial valor a expressão genética no tratamento individualizado da sepse. Assim ele se manifestou[5]:

 

“A medicina em geral precisa ser personalizada, e ainda não fazemos isso na medicina intensiva. A nova abordagem já está sendo utilizada em doenças pulmonares, para asma, e em cardiologia, para agentes antiagregantes. Precisamos abrir os olhos para isso”.

(...)

“as drogas para a sepse acabaram, assim como as drogas para o câncer, e há poucos ensaios clínicos relacionados às novas terapias que não sejam limitados e abaixo da expectativa, no que diz respeito a sobrevida ou hospitalização”.

(...)

“Precisamos de medicina baseada em evidências, mas também precisamos ampliar, ultrapassar critérios amplos para algo mais conciso. Deveríamos ter ensaios menores, mais seletivos. Obviamente, não sou contra ensaios clínicos randomizados, mas precisamos de ensaios clínicos individualizados – individualizar a terapia e a medicina” (...).

Na opinião do J.L. Vincent, os ensaios clínicos sempre aplicaram medicina personalizada, mas a abordagem não foi a mesma no campo de medicamento para cuidados intensivos. Essa metodologia equivocada, segundo ele, resultou em ensaios randomizados negativos para sepse, e desperdiço de tempo e recursos. Nesse sentido afirmou que a razão para que os tradicionais ensaios terapêuticos de sepse tenham demonstrado poucos efeitos benéficos é o fato de as populações de pacientes terem sido muito heterogêneas. Para ele, selecionar os pacientes com base em sintomas gerais não é suficiente. Em vez disso, eles devem ser eleitos de acordo com a ação provável da droga em questão, disse. Na ocasião o médico defendeu o uso de biomarcadores citando estudos do uso para diagnóstico de pneumonia comunitária na admissão na UTI[6], o que permitiria uma melhor estratificação de risco e diagnóstico, para fins de monitoramento e previsão de resultados. Citou também o estudo da Dra. Emma Davenport, da University of Oxford (Inglaterra), publicado no The Lancet, em 2016, que trata do perfil imunológico de pacientes com sepse relacionada à pneumonia adquirida na comunidade. Os pesquisadores conduziram uma análise transcriptômica de leucócitos, ou seja, investigaram o conjunto de transcritos derivados de genes dessas células de defesa de pacientes internados em 29 unidades de terapia intensiva no Reino Unido. A equipe da Dra. Emma identificou diferentes assinaturas de resposta à sepse (SRS), mostrando que alguns indivíduos têm um fenótipo imunossuprimido e com pior prognóstico, enquanto outros têm um perfil mais favorável[7].O próprio Vincent e outros já tem publicações a esse respeito[8] [9] [10].“Precisamos de medicina baseada em evidências, mas também precisamos ampliar, ultrapassar critérios amplos para algo mais conciso. Deveríamos ter ensaios menores, mais seletivos. Obviamente, não sou contra ensaios clínicos randomizados, mas precisamos de ensaios individualizados – individualizar a terapia e a medicina”, afirmou.

É claro que avançar em estudos genéticos não é algo simples. Além do elevado custo que já representa uma barreira de acessibilidade, a maioria dos médicos ainda não está qualificada para compreender os testes genéticos e muito menos para comunicar os resultados com precisão aos seus pacientes. Erros de interpretação desses exames também constituem um risco, podendo causar problemas sérios. Um estudo de 2012 na publicação científica The Cancer Journal, por exemplo, descreve o caso de uma mulher que foi submetida a cirurgias extremas, incluindo a remoção de seu útero, devido a uma leitura incorreta de seus resultados do teste genético.


MEDICINA INTENSIVA CUSTOMIZADA

Em contrapartida à medicina centrada no paciente, há um campo que no Brasil tem merecido pouca atenção dentro da prática da medicina intensiva: a heterogeneidade das unidades de terapia intensiva no tocante à seus recursos humanos e disponibilidade de recursos materiais.

A medicina em geral vem avançado a passos agigantados, e a tecnologia a cada dia que passa oferece novas ferramentas para o diagnóstico e tratamento do paciente crítico dentro da UTI. A medicina intensiva não foge desse contexto e a cada novo evento científico presenciamos o lançamento de novas tecnologias que infelizmente não estão ao alcance da maioria da UTIs do Brasil.

Censos sobre UTIs brasileiras tem sido realizado em 2010, 216 e 2017[11], revelando informações acerca do número de leitos de UTI, sua distribuição geográfica por estados e por setor público e privado (2010/2016) e sobre a qualificação dos médicos plantonistas, diaristas e coordenadores (2017).

No último censo de 2017 pode se observar uma pesquisa de 1464 entrevistados, 59% dos pesquisados desempenhava a função de plantonista, 31% diarista/rotina e 10% função de coordenação. Apenas 55% possuía título de especialista em medicina intensiva AMIB/AMB, sendo que 92% era de UTI adulto. Apenas 42% fez residência MEC de medicina intensiva. 17% dos entrevistados afirmaram que fizeram programa de especialização AMIB em medicina intensiva, sendo que mais da metade (58%) terminou a especialização entre 2012 e 2015. Três quartos dos pesquisados trabalham em 1 (37%) ou 2 (38%) UTIs e apenas 2% trabalham em mais de 4 UTI.70% dos participantes dedicavam mais da metade do seu tempo à UTI e os tipos de trabalho mais comuns era Pessoa Jurídica (PJ) com 33% das menções, seguido de CLT com 28%.  Uma outra pesquisa voltada para censo de coordenadores de UTI, analisou os dados provenientes de 428 entrevistados de diferentes regiões, cidades e hospitais no Brasil. 94% dos coordenadores possuíam título de especialista em medicina intensiva; 84,5% dos hospitais dos respondentes possuíam médicos diarista/rotineiro com título de especialista, enquanto apenas 10% possuem médicos diarista/rotineiro sem título de Especialista e 5,5% afirmam não ter médico diarista/rotineiro em suas UTIs. O panorama se mostrava parecido em relação às UTIs especializadas.

Entretanto não se encontram pesquisas que avaliem se as UTIs brasileiras cumprem com o disposto nas normas sanitárias, no tocante a requisitos de infraestrutura física disposto na RDC nº 50/2002 da Anvisa[12], assim como de recursos humanos, assistenciais e materiais determinados na RDC 07/2010[13], assim como na Portaria MS/GM nº 895/2017[14] e na Resolução CFM nº 2271/2020[15]. Embora sem esses dados em pesquisas sabemos que as normas não se cumprem.

Nesse sentido sabe-se que as normas exigem que toda Unidade de Terapia Intensiva Adulto (UTI) e inclusive toda Unidade de Cuidados Intermediários Adulto (UCI-a) possua pelo menos 1 monitor de débito cardíaco, um ventilômetro e 1 capnógrafo por unidade. Pressupõe, portanto, que tais equipamentos sejam exclusivos de cada unidade. No entanto, a realidade é muito diferente e a grande maioria das UTis e UCIs carece desses equipamentos pelo que limita a capacidade de fazer uma monitorização hemodinâmica adequada.

No tocante à qualificação profissional, as normas são claras em determinar que o médico coordenador/responsável técnico e o médico diarista devam possuir título de especialista em medicina intensiva. Muito embora a legislação não exija para uma UTI geral que o médico plantonista possua especialidade em medicina intensiva, a Resolução CFM nº 2271/2020 recomenda que os médicos preferencialmente tenham título de especialista em medicina intensiva para atuar em UTI adulto. Alternativamente, recomenda que tenham concluído um programa de residência médica em área básica ou que tenham ao menos 2 anos de experiência clínica e, nesses casos, apresentem no mínimo três certificações atualizadas entre as descritas a seguir: a) suporte avançado de vida em cardiologia; b) fundamentos em medicina intensiva; c) via aérea difícil; d) ventilação mecânica; e) suporte do doente neurológico grave. Já a Portaria MS/GM nº 895/2017, para as UTIs do Sistema Único de Saúde, torna esse mínimo de 3 certificações do médico plantonistas uma exigência para a habilitação da UTI.

Em diversas ocasiões ouve se falar em “UTIs de poucos recursos”, mas certamente cabe se perguntar antes: O que seria uma “UTI de poucos recursos” e por conseguintes uma “UTI de grades recursos”?  De fato, acredito que o ponto de referência para responder a essas perguntas seriam justamente as normas acima citadas que estabelecem os REQUISITOS MÍNIMOS para o funcionamento de uma UTI/UCI-a.

Entretanto, numa UTI de 10 leitos, mesmo dispondo de 1 monitor de débito cardíaco, este poderá ser usado em apenas um único paciente, pelo que havendo mais de um paciente com indicação de uso, o médico será desafiado ao manejo do paciente crítico sem esse recurso.

Portanto, mesmo contando com os recursos mínimos o profissional médico que atua numa UTI deverá estar devidamente qualificado e treinado para agir com menos recursos, desafiando sua habilidade para desenvolver uma medicina intensiva muitas vezes apenas com os recursos básicos. Daí, a necessidade de estar devidamente treinado e qualificado com um mínimo de certificações de treinamento.

Da mesma forma, apesar que uma UTI pode dispor de ventiladores mecânicos, sabe-se que existem diferentes tipos e modelos com disponibilização de ferramentas diferentes que poderiam ser usadas pelo médico, se devidamente treinado. Mesmo raciocínio para monitores e outros equipamentos.

A Medicina Intensiva Customizada, pode ser entendida como o exercício e ensino da medicina intensiva conforme a realidade de cada unidade de terapia intensiva, considerando que existe uma heterogeneidade entre as unidades no tocante à disponibilidade de recursos humanos e materiais. Trata-se de treinar o profissional a realizar uma prática médica otimizando o uso dos recursos com que conta. Envolve necessariamente conhecer bem o funcionamento e as funções disponibilizadas pelos seus equipamentos e aprender a usá-los com base na melhor evidência existente. Envolve também saber o nível de qualificação dos profissionais da sua equipe para traçar metas de educação continuada.

Este novo modelo proposto, não implica em hipótese alguma abandonar o conhecimento das novas tecnologias que vão surgindo. Certamente o ideal seria que todas as UTIs disponham das melhores e mais avançadas tecnologias que permitam melhorar o exercício da medicina intensiva, mas sabemos que essa é uma realidade ainda muito distante na maioria dos países, incluindo o Brasil. Assim, certamente é importante se atualizar mesmo que muitas vezes fique apenas no campo teórico.

Hospitais através de suas diretorias médicas (clínica e técnica) devem neste cenário, promover cursos de medicina intensiva customizada in loco, e, nesse contexto, as entidades médicas e sociedades cientificas regionais de medicina intensiva podem desempenhar um papel fundamental para que isso seja uma realidade.

 


[1] Stewart M. Towards a global definition of patient centred care: the patient should be a judge of patient centred care.

BMJ 2001; 322(7284): 444-5

[2] http://biotec-ahg.com.br/index.php/pt/acervo-de-materias/saude/855-medicina-personalizada

[3] https://www.interfarma.org.br/noticias/1958

[6] Scicluna BP, Klein Klouwenberg PM, van Vught LA, et al. A molecular biomarker to diagnose community-acquired pneumonia on intensive care unit admission. Am J Respir Crit Care Med 2015; 192: 826−35.

[7] Davenport EE, Burnham KL, Radhakrishnan J, et al.  : a prospective cohort study. Lancet Respir Med 2016; published online Feb 22. Disponível em: http://www.thelancet.com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(16)00046-1/fulltext.

[8] Vincent JL. Individual gene expression and personalised medicine in sepsis. Lancet Respir Med. Abril 2016. Disponível em: http://www.thelancet.com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(16)00068-0/fulltext.

[9] Barcella, M., Bollen Pinto, B., Braga, D. et al. Identification of a transcriptome profile associated with improvement of organ function in septic shock patients after early supportive therapy. Crit Care 22, 312 (2018). https://doi.org/10.1186/s13054-018-2242-3

[10] Leligdowicz, A., Matthay, M.A. Heterogeneity in sepsis: new biological evidence with clinical applications. Crit Care 23, 80 (2019). https://doi.org/10.1186/s13054-019-2372-2

[11] https://www.amib.org.br/

[12] Resolução – RDC nº 50, de 21 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre o Regulamento Técnico para planejamento,

programação, elaboração e avaliação de projetos físicos de estabelecimentos assistenciais de saúde.

[13] Resolução-RDC Nº 7, de 24 de fevereiro de 2010. Dispõe sobre os requisitos mínimos para funcionamento de Unidades de Terapia Intensiva e dá outras providências.

[14] Portaria nº 895, de 31 de março de 2017.Institui o cuidado progressivo ao paciente crítico ou grave com os critérios de elegibilidade para admissão e alta, de classificação e de habilitação de leitos de Terapia Intensiva adulto, pediátrico, UCO, queimados e Cuidados Intermediários adulto e pediátrico no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.

[15] Resolução CFM nº 2.271/2020. Define as unidades de terapia intensiva e unidades de cuidado intermediário conforme sua complexidade e nível de cuidado, determinando a responsabilidade técnica médica, as responsabilidades éticas, habilitações e atribuições da equipe médica necessária para seu adequado funcionamento.