domingo, 9 de junho de 2024

               USO AZUL DE METILENO NO CHOQUE SÉPTICO

           DEPOIS DE 25 ANOS, AINDA SEM CONSENSO?

 

PARTE II. O USO DO AZUL DE METILENO NA SÍNDROME VASOPLÉGICA


Dr. ALEJANDRO ENRIQUE BARBA RODAS. Médico Especialista em Medicina Intensiva. Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos. 



1. VASOPLEGIA E SÍNDROME VASOPLÉGICA (SV)[1] [2]

Há muito tempo se sabe que o choque séptico é uma forma de choque circulatório de tipo distributivo que se manifesta como síndrome vasoplégica (SV) com sinais e sintomas caraterísticos.

A vasoplegia que ocasiona vasodilatação é causada pela perda da resposta normal do músculo liso vascular a agentes vasoconstritores, associada a um efeito vasodilatador direto causado por mediadores inflamatórios (histamina, bradicinina, serotonina, oxido nítrico, etc.) causando uma redistribuição do fluxo sanguíneo e acúmulo no sistema venoso de capacitância (choque distributivo) e perda de volume para o terceiro espaço (hipovolemia por aumento da permeabilidade vascular).

Aqui pode ser encontrada uma revisão sobre essa definição: https://blogdeterapiaintensiva.blogspot.com/2019/01/uma-visao-diferente-do-choque.html

Já se sabe também que a vasoplegia leva a uma resistência vascular sistêmica (RVS) anormalmente baixa que se manifesta como hipotensão profunda e necessidade de terapias para evitá-la ou tratá-la, na presença de débito cardíaco normal ou aumentado. Fisiologicamente, uma RVS baixa é definida como uma baixa relação entre a diferença da pressão arterial média (PAM) e pressão de átrio direito (PAD), e o débito cardíaco [RVS = (PAM − PAD) /DC]. Clinicamente, a vasoplegia é frequentemente reconhecida na ausência de dados hemodinâmicos abrangentes. As causas da vasoplegia são diversas e várias definições foram descritas para causas específicas; da mesma forma, terminologias relacionadas são usadas de forma variável. A ausência de definições consensuais de vasoplegia com base na clínica impede o progresso na compreensão da fisiopatologia da vasoplegia. A vasoplegia pode ser consequência da ação de mediadores inflamatórios que provocam uma síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SIRS) intensa deflagrada por causas não infecciosas (pancreatite, politrauma, grandes queimaduras, desidratação grave, anafilaxia etc.) que provocam o denominado “choque sirético”[3] [4]; ou por causas infecciosas como no caso da sepse (viral, bacteriana, fúngica, etc.). Ainda, a vasoplegia pode ser ocasionada por efeitos de medicamentos (anestésicos endovenosos, bloqueio neuroaxial, sedativos), ou por mecanismos neurogênicos centrais ou periféricos (simpatectomia).

A cenário mais comum de vasoplegia e síndrome vasoplégica em cuidados intensivos é a sepse. Neste cenário, a causa é já bem conhecida e se dá como consequência da resposta inflamatória sistêmica ativada especificamente pela infecção bacteriana, viral e outras espécies de microrganismos. Neste cenário, a oxido nítrico sintetase induzível (i-NOS) produzida por macrófagos e outras células ativadas por endotoxinas bacterianas ou citocinas provoca a oxidação de um dos dois nitrogênios guanidino da L-arginina, que é convertida em oxido nítrico (NO) e L-citrulina como subproduto. O NO ativa a enzima guanilato ciclase (GC), levando a aumento do GMPc, que por sua vez leva a diminuição do cálcio citoplasmático (retorna ao reticulo sarcoplasmático) provocando desacoplamento da actina e miosina e, consequentemente relaxamento da fibra muscular lisa vascular e vasoplegia (para maiores detalhes veja a Parte I deste tema (https://blogdeterapiaintensiva.blogspot.com/2024/03/uso-azul-de-metileno-no-choque-septico.html).

O segundo cenário mais comum de vasoplegia e síndrome vasoplégica ocorrem em pacientes após cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea (CEC). Embora a causa da síndrome não seja clara e permaneça confusa, ela é atribuída principalmente à resposta inflamatória sistêmica ativada especificamente pela CEC, bem como a ativadores inespecíficos, como trauma cirúrgico, perda ou transfusão sanguínea e hipotermia. A magnitude desta reação inflamatória varia, mas a persistência de qualquer grau de inflamação pode ser considerada potencialmente prejudicial ao paciente cardíaco. A inflamação sistêmica observada durante e após cirurgia cardíaca, e mais intensa nas cirurgias de revascularização do miocárdio (CRM), e está relacionada à secreção de muitos mediadores inflamatórios e à ativação de certos mecanismos naturais de defesa. A ativação do complemento e a secreção de citocinas pró-inflamatórias têm sido amplamente investigadas, mas a ampla variedade de técnicas para CEC torna as comparações difíceis e as conclusões muitas vezes confusas. A resposta inflamatória é iniciada por muitos processos que atuam tanto na resposta celular quanto humoral. Algumas citocinas, como a interleucina-1 (IL-1β), a interleucina-6 (IL-6) ou o fator de necrose tumoral α (TNF-α), que podem ser estimuladas por um amplo espectro de estímulos, são capazes de atuar como efetores em diferentes órgãos alvo. Assim, podem refletir o estado da resposta inflamatória na situação em que estão envolvidos múltiplos processos de iniciação. As citocinas parecem mediar muitos eventos celulares. Os leucócitos são o tipo de célula central na resposta inflamatória; seu recrutamento, ativação e efeitos citotóxicos contribuem amplamente para o processo de dano. Trauma cirúrgico e uso de CEC com exposição de sangue a superfícies estranhas na bomba e tubulação ativam múltiplas vias enzimáticas e estimulam a produção de mediadores inflamatórios sistêmicos e fatores neuro-humorais. A base fisiopatológica desta síndrome também depende das características do paciente e do procedimento cirúrgico. O resultado líquido é uma síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SIRS) e disfunção vascular transitória resultando em vasodilatação e resistência a vasopressores. As proteínas plasmáticas são imediatamente absorvidas pelas biomembranas quando o sangue passa pelo equipamento da CEC. Essa camada de proteína é densamente empacotada e imóvel, e algumas proteínas sofrem alterações de conformação e expressam “receptores” para células e outras proteínas. Isso resulta na ativação por contato da via de coagulação extrínseca, a via de coagulação intrínseca, complemento e fibrinólise. Ativação da via de contato produz bradicinina e calicreína. Ativação dos sistemas de coagulação extrínseco e intrínseco produz trombina e resulta na deposição de fibrina. Ativação da via do complemento resulta na formação de C5a e do complexo de complemento terminal. Essas cascatas interagem com uns aos outros e têm múltiplos efeitos celulares. Leucócitos, plaquetas, macrófagos e células endoteliais também são ativados durante a CEC. Como já visto, a oxido nítrico sintetase induzível (i-NOS) é produzida por macrófagos e outras células ativadas por citocinas. A NOS por sua vez catalisa a produção de oxido nítrico (NO) que ativando a Guanilato Ciclase (GC) aumenta o GMP cíclico que leva a vasoplegia. Os neutrófilos são ativados por agonistas múltiplos, especialmente calicreína e C5a. Neutrófilos ativados liberam enzimas proteolíticas e espécies reativas de oxigênio (ROS) e aderem às superfícies da membrana e às superfícies endoteliais. As plaquetas são ativadas pela trombina e outros agonistas e sofrem mudanças de forma, expressam receptores de superfície e secretam conteúdo granular. Essas plaquetas aderem a outras plaquetas, neutrófilos e membranas basais expostas. Os macrófagos ativados secretam citocinas que, por sua vez, ativam neutrófilos e linfócitos. Vários fatores, incluindo trombina, C5a e citocinas, ativam células endoteliais que vão produzir substâncias vasoativas, incluindo óxido nítrico (NO) e prostaciclina e expressam receptores de superfície. Essas respostas agudas diminuem à medida que a CEC continua. Entretanto, uma segunda resposta ou resposta tardia também ocorre durante a CEC. A reinfusão de sangue da cardiotomia da ferida torácica contribui para a patogênese da vasoplegia cardíaca. O sangue hemolisou eritrócitos e se formam macroagregados que consistem em proteínas desnaturadas, glóbulos de gordura e agregados de plaquetas e leucócitos. Esses fragmentos e partículas celulares potencialmente obstruem pequenos capilares e estimulam processos de resposta inflamatória. Além disso, após o clampeamento da aorta ser liberado, a reperfusão do coração e do pulmão causa uma síndrome de isquemia-reperfusão com adesão de neutrófilos ativados a células endoteliais e a liberação de espécies reativas de oxigênio, que pode causar danos diretos às proteínas, lipídios e ácidos nucléicos. Isso aumenta a permeabilidade capilar e causa edema e redução do volume intravascular. Finalmente, durante a CEC, endotoxina liberada por bactérias no trato gastrointestinal é translocada para a circulação e estimula a inflamação. A resposta inflamatória sistêmica associada a cirurgia cardíaca com CEC causa formação de coágulos de fibrina e microêmbolos e produz desregulação vascular. Os mediadores inflamatórios também causam alterações cardíacas, nervosas centrais disfunções sistêmicas, pulmonares, plaquetárias e renais. Isquemia miocárdica intraoperatória, reperfusão e níveis elevados de troponina I associados à inflamação miocárdica após cirurgia cardíaca. Os resultados relacionados ao coração são provavelmente explicados em parte pela contratilidade prejudicada, levando à instabilidade hemodinâmica pós-operatória. Interleucina 6 (IL-6) e 8 (IL-8) produzidas durante a SIRS têm efeitos inotrópicos negativos, o que pode levar a resultados cardíacos piores. No entanto, o principal problema inicial em pacientes com vasoplegia cardíaca envolve hipotensão. Níveis plasmáticos reduzidos de arginina vasopressina (AVP) e a produção excessiva de NO causam vasodilatação após cirurgia. A baixa concentração plasmática de arginina-vasopressina (AVP) em esses pacientes foi atribuída à secreção reduzida, possivelmente secundária à secreção prejudicada de mediada pelo barorreflexo. Alternativamente, a secreção excessiva de vasopressina nos estágios iniciais do estado de choque pode ter esgotado os estoques na hipófise (insuficiência relativa de vasopressina). O aumento dos níveis de NO e a deficiência de vasopressina levam à ativação do canal de K+ sensível ao trifosfato de adenosina (ATP) - canal (KATP) - na membrana plasmática da superfície vascular. A abertura deste canal hiperpolariza o musculo liso vascular e reduz a entrada de Ca2+ através dos canais de Ca2+ dependentes de voltagem, o que induz vasodilatação. NO e outros vasodilatadores, como o peptídeo natriurético atrial, causam desfosforilação da cadeia leve da miosina, aumentando a produção de GMP cíclico. Isso evita a interação entre actina e miosina e, em última análise, evita a contração muscular, levando à vasodilatação e hipotensão. Todos esses mecanismos contribuem para o desenvolvimento de vasoplegia pós-operatória resistente a catecolaminas, onde como visto o oxido nítrico tem papel importante dentro dos mecanismos fisiopatológicos[5]. As respostas fisiopatológicas responsáveis ​​pela reação inflamatória sistêmica podem continuar por muito tempo após a descontinuação da CEC. Quanto às reações inflamatórias locais ao nível do miocárdio, que se devem principalmente aos mecanismos de isquemia e reperfusão, a CEC pode contribuir para a extensão das lesões[6]. Mas, vasoplegia também pode ocorrer na cirurgia sem CEC, e nestes casos é possível que a geração de mediadores pró-inflamatórios devido ao estresse cirúrgico, ao uso de dispositivos descartáveis ​​reesterilizados, à neutralização da heparina com protamina, à transfusão de hemoderivados, ou à ocorrência de endotoxemia secundária a repetidos episódios de hipotensão ao longo do tempo e mobilização e deslocamento do coração posam precipitar a resposta inflamatória sistêmica e a síndrome vasoplégica. Fatores adicionais que contribuem para o início da síndrome vasoplégica incluem insuficiência cardíaca congestiva crônica pré-operatória com fração de ejeção reduzida (< 35%), uso pré-operatório de inibidores da enzima conversora de angiotensina e agentes β-bloqueadores, e o uso pré e pós-operatório de amiodarona e inibidores de fosfodiesterase (milrinona)[7].

O terceiro cenário de vasoplegia e síndrome vasoplégica ocorre em pacientes pós cirurgia não cardíaca de grande porte. Os fatores de risco relatados incluem cirurgia prolongada e necessidade significativa de transfusão de sangue. Quando a admissão pós-operatória em um ambiente de cuidados intensivos é rotineira, o uso de vasopressores no período pós-operatório para sustentar a pressão arterial após a otimização da volemia é comum. Embora vasopressores possam ser necessários para neutralizar os efeitos vasodilatadores sistêmicos do bloqueio neuroaxial, como a analgesia epidural, onde as necessidades são significativas em um paciente adequadamente ressuscitado, isso deve ser considerado vasoplegia.

 

2. TÔNUS VASCULAR E RESISTÊNCIA VASCULAR SISTÊMICA (RVS)[8] [9] [10]

Uma ampla revisão sobre tônus vascular foi feita neste Blog: https://blogdeterapiaintensiva.blogspot.com/2022/06/atualizacao-no-choque-vasoplegico.html

A Resistência Vascular Sistêmica (RVS) é determinada por alterações no diâmetro das arteríolas, regulado pela atividade contrátil das células musculares lisas vasculares (CMLV) que se encontram na túnica ou camada média do vaso arteriolar. As arteríolas possuem uma proporção da espessura da parede muscular lisa maior em relação ao lúmen e isso permite uma regulação fina da pressão nesses vasos. Nas arteríolas, o fluxo passa a ser constante ao invés de pulsátil. Como o diâmetro é inversamente proporcional a quarta potência da resistência, uma redução pequena no diâmetro tem grande repercussão na RVS e na pressão arterial.

O estado contrátil das CMLV é referido como “tônus” vascular e é regulado pela concentração intracelular de cálcio (Ca2+). A contração das CMLV é impulsionada por um aumento na concentração de Ca2+ citosólico através da liberação de Ca2+ armazenado do retículo sarcoplasmático, bem como do influxo extracelular de Ca2+ através de canais sensíveis à voltagem. O relaxamento das CMLV é impulsionado por uma queda no Ca2+ citosólico, devido à recaptação de Ca2+ pelo retículo sarcoplasmático e expulsão de potássio (K+) ou de Ca2+ (via canais de K + e bombas de Ca2+ -ATPase) para o espaço extracelular, resultando em hiperpolarização celular e vasodilatação. O tônus ​​​​vascular é, portanto, dependente do equilíbrio entre o influxo de Ca2+ para o citosol e sua remoção, que por sua vez é regulada por mecanismos intrínsecos e extrínsecos.

 

2.1. REGULAÇÃO DO TÔNUS VASCULAR

2.1.1. REGULAÇÃO INTRÍNSECA

Se dá através de uma série de mediadores endoteliais (óxido nítrico, prostaciclina, endotelina), substâncias autacóides (oxido nítrico, eicosanoides, histamina, bradicinina, serotonina e angiotensina II) e metabólitos vasoativos e eletrólitos (acidose/alcalose; hipercapnia/hipóxia; peróxido de hidrogênio; distúrbios do cálcio, potássio, magnésio; aníons como acetato e citrato).

Vejamos os principais mecanismos que tem relação com oxido nítrico (NO).

2.1.1.1. OXIDO NÍTRICO (NO).

Como visto na parte I desta revisão, o NO se difunde livremente do endotélio para as CMLV vizinhas na túnica média e para a corrente sanguínea, causando vasodilatação, inibição da proliferação de CMLV, ativação plaquetária e adesão de leucócitos. A vasoplegia é consequência da ativação da Guanilato Ciclase (GC) que aumenta o GMP cíclico que leva bloqueio da entrada/saída do cálcio do intracelular, desacoplamento da actina-miosina e relaxamento da fibra muscular vascular lisa (vasoplegia)[11].

2.1.1.2. AUTACOIDES.

Os Autacoides (autos = “próprio”; akos = “agente medicinal” ou “remédio”) ou hormônios locais são substâncias produzidas no próprio organismo e que exercem sua ação principal no próprio local onde são liberadas.

Como exemplos temos, a histamina, serotonina, angiotensina, oxido nítrico e os eicosanoides (prostanoides, leucotrienos e lipoxinas).

a) Os eicosanoides, são moléculas derivadas de ácidos graxos com 20 carbonos das famílias ômega-3 e ômega 6. A maioria dos eicosanoides mais relevantes deriva do ácido araquidônico através da via metabólica da cascata do ácido araquidônico. A cascata do ácido araquidônico ocorre por ação de diferentes enzimas como a prostaglandina G/H sintetase ou também chamada ciclooxigenase (COX), a lipooxigenase (LOX), o citocromo P-450, peroxidases, etc.

A cicloxigenase (COX) dá origem às prostaglandinas primárias que tem pouca atividade, como a PG2 e PGH2, mas que servem de substrato para formação das prostaglandinas secundárias com maior atividade, como PGD2, PGE2, PGF2α, PGI2 (prostaciclina) e também do tromboxano A2. A prostaglandina H2 (PGEH2) é o precursor imediato da prostaciclina e prostaglandinas e tromboxano A2 formam o grupo denominado prostanoides. A lipoxigenase (LOX) dá origem aos ácidos HPETEs, HETE e aos leucotrienos. O citocromo P-450 produz HETEs e hepóxidos (EETs).

Portanto, os prostanoides, são uma família de eicosanides produzidos pela ação da enzima ciclooxigenase (COX) sobre o ácido araquidônico. O ácido araquidônico é um ácido graxo essencial obtido a partir da dieta, ou indiretamente, pela conversão do ácido linoleico, liberado da membrana plasmática por ação da enzima fosfolipase A2, ativando uma cascata metabólica que inicia pela ação da COX. Existem em duas formas distintas de COX, COX-1 e COX-2, que são codificadas por dois diferentes genes. Tanto a COX-1 como a COX-2 formam um endoperóxido de prostaglandina instável, a PGH2, a partir do ácido araquidônico. A PGH2 é transformada por várias enzimas e também por mecanismos não enzimáticos em tromboxano (TX) e nas séries de prostaglandinas (PG) D, E, F e I. A COX é, portanto, responsável pelos dois primeiros passos na síntese de prostanoides, e as etapas posteriores são dependentes de enzimas tecido-específicas. A prostaglandina I2 (PGI2) ou também chamada de prostaciclina, um dos prostanoides mais importantes no controle da homeostasia do sistema cardiovascular, é um potente vasodilatador e, além disso, inibe a agregação plaquetária, a adesão de leucócitos e a proliferação de células do músculo liso vascular (CMLV). Portanto, a PGI2 apresenta efeito protetor no processo aterogênico. Os efeitos da PGI2 (através de receptores IP) contrastam com os efeitos do TXA2 (através de receptores TP), outro prostanoide de vida curta produzido pelas plaquetas, que causa agregação plaquetária, vasoconstrição e proliferação vascular. Assim, o balanço entre o TXA2 produzido pelas plaquetas e a PGI2 produzida pelas células endoteliais é fundamental para a saúde cardiovascular. A plaqueta não apresenta COX-2, apenas COX-1. A COX-1 é uma enzima considerada constitutiva expressa na maioria dos tecidos, inclusive nas plaquetas do sangue. Ela desempenha funções de “manutenção” no organismo, estando envolvida em especial na homeostase dos tecidos, e é responsável, por exemplo, pela produção de prostaglandinas com funções em citoproteção gástrica, agregação plaquetária, autorregulação do fluxo sanguíneo renal e no início do parto. Assim, a aspirina (AAS) inibe permanentemente a metabolização do ácido araquidônico pela COX-1 plaquetária. Dessa forma, doses regulares de aspirina causam inibição cumulativa e quase completa da COX-1 plaquetária, afetando pouco a COX endotelial. Dito de outra forma, a aspirina reduz a formação de TXA2 pela plaqueta com mínimo efeito na produção de PGI2 pelas células endoteliais. Esse deslocamento da produção em favor da PGI2 gera um ambiente antitrombótico, já bem-documentado. A utilização diária de baixas doses de aspirina em pacientes de risco reduz a ocorrência de eventos trombóticos. Em contrapartida, a inibição da COX-1 é responsável pelo bloqueio de citoproteção gástrica das prostaglandinas e, consequentemente das lesões da mucosa gástrica. Em relação à COX-2, existe a hipótese tradicional de que não está presente nos tecidos de forma constitutiva, mas de forma induzida, ou seja, expressa somente durante o desenvolvimento de uma resposta inflamatória. Entretanto, evidencias tem mostrado que a COX-2 não é expressa somente durante a inflamação, mas poderia estar presente em vários tecidos durante condições fisiológicas, inclusive em células vasculares. Assim, a COX-2 seria a isoforma da COX predominante no endotélio vascular, e diretamente relacionada com a produção de prostaciclina na circulação normal. Mas se por um lado não há evidências consistentes da expressão constitutiva da COX-2 em vasos saudáveis, em lesões ateroscleróticas parece não haver dúvida de que haja uma indução na expressão de COX-2. Interessante notar que a excreção urinária de metabólitos da PGI2 aumenta em pacientes com síndrome coronária aguda ou logo após uma intervenção vascular, o que pode ser interpretado como um mecanismo de defesa vascular para prevenir eventos trombóticos. As plaquetas não expressam COX-2, então, os inibidores de COX-2 não inibem a produção de TXA2 pelas plaquetas. A conclusão a partir dessas observações é que a inibição da produção de PGI2 a partir da COX-2 pode gerar um desequilíbrio na relação entre TXA2 e PGI2, aumentando assim a probabilidade de um evento trombótico. De fato, a produção de prostaciclina aumenta muito durante o processo inflamatório e contribui para a geração de vasodilatação. Uma ampla gama de mediadores inflamatórios como a interleucina 1 (IL-1), o fator de necrose tumoral α (TNF-α), a hipóxia e o lipopolisacarídeo (LPS), provocam a indução da isoforma COX-2 e aumento da síntese de PGI2 pela prostaciclina sintase (PGIS), que leva à vasoplegia. O TXA2 regula o tônus ​​​​vascular através da ligação aos receptores tromboxano-prostanóide (TP) no músculo liso vascular e, de acordo com outros agentes, promove o influxo de cálcio e a vasoconstrição, atuando como regulador da vasoplegia.

b) A histamina, é liberada pelos mastócitos (tecidos) e basófilos (sangue) por mecanismos imunológicos (IgE), químicos (morfina) ou mecânicos (trauma), em quase todos os tecidos do corpo se o tecido ficar danificado ou inflamado ou se for exposto a uma reação alérgica. A maior parte da histamina deriva dos mastócitos em tecidos danificados e de basófilos sanguíneos. A histamina tem um poderoso efeito vasodilatador nas arteríolas e, como a bradicinina, tem a capacidade de aumentar muito a porosidade capilar, permitindo o vazamento de fluido e proteínas plasmáticas aos tecidos em muitas condições patologias, induzindo edema. Os receptores de histamina são receptores transmembrana. A histamina pode ser liberada como transmissor em preparações neuronais ou como mediador de uma resposta inflamatória pelos mastócitos. Atualmente, quatro receptores de histamina foram identificados. A histamina é um potente mediador em muitos processos fisiológicos, causando vasodilatação ou vasoconstrição, estímulo da frequência cardíaca e a contratilidade e a contração dos músculos lisos do intestino e das vias aéreas, dependendo do tipo de receptor estimulado. O receptor H1 da histamina, é expresso em vários tecidos, incluindo o cérebro, músculo liso da vasculatura e vias aéreas. O receptor H2 da histamina, é ubiquamente expresso em vários tecidos, incluindo o estômago, coração e cérebro. O receptor H3 da histamina, é expresso principalmente nos neurônios, como auto e heterorreceptor pré-sináptico. O receptor H4 da histamina, é um receptor quimiotático, expresso principalmente em eosinófilos, mas também em mastócitos, células dendríticas e células T. Também são expressos no epitélio do trato gastrointestinal. Os receptores H1 acoplam-se a Gq que regula a mobilização de Ca2+ para o citosol (estimulando a NOS e a produção de NO), os receptores H2 acoplam-se a Gs para estimular o AMP cíclico e os receptores H3 e H4 ambos acoplam a Gi/o para inibir o acúmulo de AMP cíclico. Os receptores de histamina estão amplamente distribuídos no corpo, com um ou mais receptores expressos em níveis significativos em neuronal, músculo liso (vascular, gástrico e brônquico), sangue, coração, sistema imunológico e sistema endócrino. Os receptores H1 e H2 que são os que mediam a vasodilatação. Os receptores H2 estão localizados principalmente nas células musculares lisas dos vasos sanguíneos e os efeitos vasodilatadores são mediados pelo AMPc. Os receptores H1 residem principalmente nas células endoteliais, e sua estimulação leva à formação de NO. Receptores H1 da camada endotelial que reveste os vasos internamente quando ativados, promovem a dilatação dos vasos por liberação de óxido nítrico (NO). Quando os basófilos presentes na circulação sistêmica liberam histamina, os primeiros receptores histamínicos dos vasos a sofrerem ação da histamina são os receptores H1 do endotélio, por ser a primeira camada em contato com o sangue. Com isso, há toda aquela sequência de transdução do sinal da via da fosfolipase C (PLC), culminando na formação do complexo cálcio-calmodulina. No endotélio, entretanto, este complexo não é responsável por chegar à camada muscular e realizar o encurtamento do sarcômero por meio do mecanismo que já conhecemos. O complexo cálcio-calmodulina, quando formado via ativação dos receptores H1 do endotélio, ativa a enzima óxido nítrico sintetase (NOS) citoplasmática, formando o NO, o principal fator de relaxamento derivado do endotélio. Portanto, quando a histamina ativa receptores H1 na camada endotelial, a produção de NO é ativada. Então, este NO produzido na camada endotelial flui em direção à camada muscular, ativa sua via de transdução de sinal por meio da via da Guanidil Ciclase (GC), promovendo a produção de GMPc, responsável por inibir os canais de cálcio e a quinase da cabeça leve de miosina (MLCK), promovendo eventos citoplasmáticos que resultam no relaxamento muscular e, consequentemente, em vasodilatação. Este é o principal fator que leva à hipovolemia característica dos choques anafiláticos. Caso a histamina consiga, porventura, atravessar a camada endotelial, ela pode ativar receptores H2 da camada muscular lisa vascular e, após promover uma mudança conformacional da proteína Gs e deslocar a sua subunidade alfa, inicia a via de transdução da Adenil Ciclase (AC), culminado no aumento citoplasmático dos níveis de AMPc. Isso faz com que uma proteína quinase A (PKA, que ativa os canais de cálcio) seja ativada e promova eventos celulares que resultam no relaxamento dos vasos. O sinergismo que ocorre com a ativação dos receptores H1 dos vasos e H2 da musculatura vascular é um importante fator para os fenômenos de hipovolemia e queda da pressão arterial que caracterizam o choque anafilático intermediado por liberação de histamina.

c) A bradicinina, faz parte do grupo de substâncias chamadas cininas que causam uma poderosa vasodilatação quando se formam no sangue e tecidos de alguns órgãos. As cininas são pequenos polipeptídios que se formam a partir da ação de enzimas proteolíticas sobre α2-globulinas no plasma ou fluidos teciduais. Uma enzima proteolítica particular importância para este fim é a calicreína, que está presente no sangue e fluidos teciduais na forma inativa. Esta calicreína inativa é ativada por maceração do sangue, inflamação dos tecidos ou outros efeitos químicos ou físicos semelhantes. À medida que a calicreína é ativada, ela atua imediatamente sobre a α2-globulina para liberar um cinina chamada calidina, que é então convertida por enzimas teciduais em bradicinina. Uma vez formada, a bradicinina, esta persiste por apenas alguns minutos porque é inativada pela enzima carboxipeptidase ou pela enzima conversora, a mesma enzima que também desempenha um papel essencial na ativação da angiotensina I. A enzima ativada calicreína é destruída por um inibidor de calicreína que também está presente nos fluidos corporais. A bradicinina, é um peptídeo de 9 aminoácidos gerado em condições fisiopatológicas como inflamação, trauma, queimaduras, choque e alergia, e causa vasodilatação arteriolar poderosa e aumento da permeabilidade capilar. Por exemplo, a injeção de 1 micrograma de bradicinina na artéria braquial de uma pessoa aumenta o fluxo sanguíneo através do braço em até seis vezes, e quantidades ainda menores injetadas localmente nos tecidos pode causar um edema local marcado como resultado de um aumento do tamanho dos poros capilares. A família de receptores de bradicinina é um grupo de receptores acoplados à proteína G cujo principal ligante é a proteína bradicinina. Existem dois receptores de bradicinina: o receptor B1 e o receptor B2. O B2, principal receptor mediador das ações das cininas, é expresso em abundância pelas células endoteliais vasculares e está presente na maioria dos tecidos, incluindo rins, coração, músculo esquelético, SNC, ducto deferente, traqueia, intestinos, útero e bexiga. Em geral, a distribuição e a ação dos B1 são semelhantes às dos B2. O B1, por outro lado, é expresso em níveis baixos em condições normais, mas é regulado positivamente em resposta a estímulos inflamatórios (por exemplo, lipopolissacarídeo, endotoxinas e citocinas como IL-1β e TNF-α) e no cenário de diabetes e lesão de isquemia-reperfusão. B2 liga tanto a bradicinina quanto a calidina, enquanto a bradicinina quase não tem efeito no B1. Ambos se acoplam à proteina Gq para ativar a fosfolipase C (PLC), o que resulta em hidrólise de fosfoinositídeo, produção de diacil glicerol (DAG) e mobilização de Ca2+ para o citosol (estímulo que ativa a NOS e a síntese de NO). Eles também podem atuar através de Gi para inibir a adenilciclase. Além disso, o receptor estimula as vias da proteína quinase ativada por mitógeno. Os efeitos fisiológicos da ativação do receptor de bradicinina são mediados pela geração de NO derivado da sintase de NO endotelial e prostaglandinas. A ativação de B2 leva a um aumento nas concentrações de cálcio intracelular nas células endoteliais vasculares, que estimula a síntese de NO. No entanto, a vasodilatação induzida pela bradicinina não é abolida pela coadministração de NO sintase e inibidores de COX, o que indica que efetores adicionais provavelmente também estão envolvidos, possivelmente um fator hiperpolarizante derivado do endotélio (EDHF). Além disso, através da ligação a B1 e B2, bradicinina também aumenta a expressão de NO sintase induzível (iNOS), pelo menos em roedores. É muito difícil induzir o gene iNOS em tecidos humanos, especialmente no endotélio vascular. Todos esses mecanismos levam a vasodilatação arteriolar.

d) A serotonina, quimicamente conhecida como 5-hidroxitriptamina (5-HT), é uma monoamina biogênica com peso molecular de 176 daltons e com ampla distribuição na natureza, onde é encontrada tanto no reino animal (vertebrados e invertebrados) quanto no reino vegetal (plantas, frutas, nozes, etc.). Em mamíferos, a 5-HT pode ser encontrada no sistema nervoso central (SNC), onde desempenha um papel importante como neurotransmissor, e em algumas estruturas periféricas, como células enterocromafins da mucosa gastrointestinal, plaquetas, certos nervos dos vasos sanguíneos, a parede dos vasos sanguíneos, os pulmões e o coração. A 5-HT exerce uma variedade complexa de efeitos no corpo; contudo, o seu papel fisiológico preciso, além de ser um neurotransmissor no SNC e, talvez, no sistema nervoso entérico é, na melhor das hipóteses, discutível, embora já tenham sido feitos progressos na compreensão do papel que desempenha em determinados processos fisiopatológicos. Como a 5-HT não atravessa a barreira hematoencefálica, existe uma distinção clara entre as suas funções centrais e periféricas. Por exemplo, na periferia, a 5-HT está envolvida na contração e no relaxamento das células musculares lisas. , na agregação plaquetária e na modulação pré-sináptica (estimulação e/ou inibição) da transmissão em neurônios autonômicos. Além disso, no SNC a 5-HT funciona como um neurotransmissor e parece desempenhar um papel importante na regulação da memória, do apetite, ansiedade, sono, depressão, temperatura corporal, comportamento sexual, sistema cardiovascular, etc. É importante destacar que o 5-HT é também um autacóide que produz efeitos complexos no sistema cardiovascular e em todo o corpo. Além disso, sua capacidade de interferir na neurotransmissão no sistema nervoso autônomo possui extensa documentação. Na verdade, na literatura científica, existem inúmeras evidências experimentais que se referem às suas ações inibitórias sobre a transmissão simpática em uma ampla variedade de vasos sanguíneos isolados de diferentes espécies, bem como na vasculatura sistêmica do rato. A referida simpatoinibição vascular, que está ligado à estimulação de receptores pré-sinápticos do tipo 5-HT1 localizados nas fibras simpáticas vasculares, pode resultar em (i) vasodilatação em preparações vasculares in vitro ou (ii) inibição de respostas vasopressoras simpáticas e/ou efeitos vasodepressores em modelos experimentais vivos. A 5-HT produz respostas cardiovasculares complexas, que incluem bradicardia ou taquicardia, hipotensão ou hipertensão e vasodilatação ou vasoconstrição. Esses efeitos podem. ser explicada pela capacidade desta monoamina interagir com receptores específicos no SNC, gânglios autonômicos, terminais nervosos pós-ganglionares, músculo liso vascular, endotélio vascular e tecido cardíaco. Assim, a eventual resposta à 5-HT depende de uma ampla gama de fatores, incluindo espécie, dose de 5-HT utilizada, leito vascular em estudo, condições experimentais, tônus ​​vascular pré-existente e, muito importante, natureza farmacológica do(s) receptor(es) envolvido(s). Numerosas evidências experimentais demonstram que as respostas cardiovasculares à 5-HT são mediadas principalmente pelos receptores 5-HT1, 5-HT2, 5-HT3, 5-HT4, 5-HT5A/5B e 5HT7, bem como por uma tiramina, ou por mecanismos desconhecidos. Curiosamente, o receptor 5-HT6 não parece estar envolvido nas respostas cardiovasculares ao 5-HT.

e) A angiotensina II, é um mediador do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e uma poderosa substância vasoconstritora. Apenas um milionésimo de grama pode aumentar pressão arterial de uma pessoa em 50 mm Hg ou mais. A angiotensina II (ATII) atua nos receptores da angiotensina I (ATI) encontrados no endotélio das arteríolas em toda a circulação provocando vasoconstrição. Essa sinalização ocorre por meio de uma proteína Gq, que ativa a fosfolipase C, cascata da fosfatidil-inositol-bifosfato (PiP2) e, posteriormente, aumento do cálcio citosólico e consequente vasoconstrição.

2.1.1.3. A ENDOTELINA 1 (ET1)

É a isoforma predominante da família das endotelinas, e é um pequeno peptídeo que atua como vasoconstritor. A ET1 ativa os receptores da endotelina A (ETA) nas CMLV, que novamente impulsionam a elevação do Ca 2+ intracelular e a contração. Subtipos de receptores de endotelina B (ETB), encontrados no endotélio e no músculo liso vascular, atuam como um mecanismo autorregulador para controlar o tônus ​​basal através da vasodilatação e contração do músculo liso. Em condições de estresse inflamatório, entretanto, a ET1 tem efeitos potencialmente deletérios através da ativação de diversas vias de sinalização, aumentando a síntese de IL-1, TNF-α e IL-6. O bloqueio seletivo e não seletivo dos subtipos de receptores da ET demonstrou ser promissor em uma série de modelos animais.

2.1.1.4. RADICAIS LIVRES DE OXIGÊNIO (ROS).

O desacoplamento das enzimas NOS endoteliais pode causar um aumento nas espécies reativas de oxigênio (ROS) e disfunção mitocondrial. O ânion superóxido pode reduzir o NO e formar peroxinitrito (ONOO-), que atua como um poderoso agente oxidante que provoca disfunção celular e vasoplegia. Sob condições fisiológicas, o ânion radical superóxido é metabolizado pela superóxido dismutase (SOD). Os mecanismos não enzimáticos do metabolismo do superóxido são mediados pelo ácido ascórbico e pelo ácido úrico. Em estados de choque, o excesso de produção de NO resulta em excesso de produção de ONOO -, que pode ser atenuado por antioxidantes, e as espécies reativas de oxigênio (ROS) também podem causar a desativação de catecolaminas, um fenômeno que pode ser revertido pela administração de um imitador sintético da superóxido dismutase.

2.1.1.5. SULFETO DE HIDROGÊNIO

O sulfeto de hidrogênio (H2S) é sintetizado a partir do aminoácido L-cisteína através da cistationina-β-sintase ou cistationina-γ-liase dependente de vitamina B6. O H2S difunde-se prontamente no músculo liso vascular e em baixas concentrações pode ter efeitos citoprotetores, embora na sepse as concentrações sejam significativamente elevadas. Em concentrações mais elevadas, o H2S contribui para o desenvolvimento do choque vasodilatador através de uma série de ações dependentes de oxigênio, incluindo inibição do citocromo C oxidase com comprometimento da função mitocondrial, ativação dos canais de ATP de potássio e inibição da atividade endotelial da enzima conversora de angiotensina. Além disso, o H2S interage com o NO, o que pode atenuar as ações do NO. O H2S também foi sugerido como um potencial agente terapêutico que leva ao desenvolvimento de um estado semelhante à hibernação citoprotetora. Os animais tratados com H2S são protegidos tanto da hipóxia letal quanto da hemorragia. Esta descoberta levou ao estudo pré-clínico do tratamento com H2S na modulação dos efeitos deletérios da lesão de isquemia-reperfusão em modelos experimentais, incluindo lesão miocárdica suína.

2.1.1.6. MECANISMOS NÃO ENDOTELIAIS.

a) Hiperpolarização do canal de potássio

O efluxo de potássio através dos canais de potássio sensíveis ao ATP é um mecanismo importante para a regulação do potencial de membrana das CMLV. A superativação dos canais de potássio resulta na hiperpolarização da célula, resultando na inativação dos canais de cálcio dependentes de voltagem. A vasodilatação subsequente é um importante fator de disfunção vascular. Além dos mediadores derivados do endotélio, vários fatores circulantes podem levar à disfunção vascular mediada pelos canais de potássio, incluindo hipóxia, redução do pH e aumento do lactato circulante. A disfunção vascular induzida pelo estresse inflamatório, como a endotoxina, levou à hipótese de que a inibição dos canais de potássio pode oferecer uma nova estratégia terapêutica. Modelos animais mostraram melhorias hemodinâmicas após inibição com o bloqueador específico dos canais de potássio sensível ao ATP, glibenclamida. No entanto, ensaios clínicos randomizados de fase 2 em seres humanos não demonstraram nenhum benefício e as preocupações com os efeitos não vasculares limitam sua utilidade potencial.

2.1.2. A REGULAÇÃO EXTRÍNSECA 

Pode ocorrer por vários mecanismos.

a) RESISTÊNCIA ÀS CATECOLAMINAS.

O desenvolvimento de vasoplegia também pode ser impulsionado por alterações na eficácia das catecolaminas circulantes na geração de contração das CMLV. Modelos animais sugerem que em estágios posteriores da sepse, a expressão do adrenoceptor alfa-1 cai, resultando em resistência periférica à norepinefrina. Em estudos humanos, a expressão de receptores periféricos parece estar relacionada à gravidade da doença, com expressão aumentada na doença leve e expressão reduzida observada na sepse grave, sugerindo que em pacientes com vasoplegia pode ocorrer um padrão semelhante ao observado em modelos de roedores.

b) RESPOSTA AOS CORTICOSTERÓIDES

Os glicocorticóides conduzem diversas respostas teciduais na inflamação, incluindo a função das células imunológicas circulantes e a liberação de citocinas. Esses processos são impulsionados pela regulação de uma série de vias intermediárias, incluindo a síntese de NO mediada por i-NOS e a atividade de COX2. Na vasculatura, os receptores de esteroides estão presentes no músculo liso endotelial e vascular e, sob condições fisiológicas, potencializam a resposta às catecolaminas circulantes e à angiotensina II. Além disso, as rápidas ações celulares dos esteroides podem promover concentrações aumentadas de segundos mensageiros, como inositol-3-fosfato e cAMP. Evidências limitadas sugerem que a insuficiência de corticosteroides relacionada a doenças críticas pode se desenvolver em estados de choque. As causas dessa insuficiência incluem insuficiência relativa do eixo HPA, insuficiência adrenal ou necrose e, em alguns casos, resistência periférica aos corticosteróides. Esses fatores podem se combinar para exacerbar a disfunção vascular no choque e fornecer um mecanismo para o benefício proposto da administração de esteroides exógenos para reduzir a gravidade ou duração da dependência de vasopressores no choque séptico.

c) VASOPRESSINA ENDÓGENA

A vasopressina atua através de receptores V1 específicos na superfície das CMLV para promover o aumento do cálcio intracelular através de receptores acoplados à proteína G e fosfolipase C, que por sua vez impulsiona a contração. No choque séptico, as concentrações plasmáticas de vasopressina aumentam nos estágios iniciais do choque; no entanto, após 24 horas, os níveis caem para níveis subnormais, o que pode ser um mecanismo para perda do tônus ​​​​vascular. Isso pode estar associado a uma redução no número de receptores periféricos, um fenômeno observado em modelos animais. Além disso, os receptores V2 nas células endoteliais podem provocar vasodilatação através do aumento da síntese de NO.

 

3. AZUL DE METILENO NO CHOQUE VASOPLEGICO NÃO SEPTICO

Já vimos os mecanismos fisiopatológicos pelos quais de produz o choque circulatório de tipo vasoplégico (vasodilatador, distributivo), assim como o papel do oxido nítrico (NO) nessa fisiopatologia.

Na parte I desta revisão vimos como o azul de metileno (AM) age na metahemoglobinemia.

No choque vasoplégico (vasodilatador) o AM pode atuar diminuindo indiretamente a vasoplegia através de 4 mecanismos. Em primeiro lugar, se liga à porção heme do ferro da Guanilato Ciclase solúvel (sGC) bloqueando sua ação no músculo liso vascular, diminuindo assim os níveis do cGMP e consequentemente o efeito vasodilatador desse segundo mensageiro[12] [13] [14]. Em segundo lugar, também tem a capacidade de eliminar o NO[15]. Em terceiro lugar age como um inibidor seletivo da i-NOS, visto que em condições aeróbicas, o AM reduzido pode ser facilmente reoxidado por oxigênio molecular gerando ânion superóxido. Assim, a inativação da i-NOS mediada por superóxido pode fornecer uma explicação para os efeitos de azul de metileno não relacionado à inibição da Guanilato Ciclase solúvel. Em quarto lugar, dado que a i-NOS, além de flavinas reduzidas e tetrahidrohiopterina, também contém ferro fortemente ligado o azul de metileno poderia atuar como aceptor artificial de elétrons e inibir a i-NOS[16] (Fig. 1).

 

Fig1. Mecanismos de ação do Azul de Metileno. 

Fonte: McCartney et.al., Intraoperative vasoplegia: methylene blue to the rescue!.2018.

Considerando que o AM age finalmente reduzindo a produção de oxido nítrico (NO), poder-se-ia pensar que o azul de metileno (AM) poderia ter efeito benéfico em todos os cenários de choque vasoplégico nos quais o NO possa ser o fator gerador predominante.

Deixando de lado seu uso no choque séptico que será abordado na parte III desta revisão, a utilização em outros cenários de choque vasoplégico não séptico, salvo no choque vasoplégico associado a circulação extracorpórea (CEC), não tem ganhou espaço na prática clínica, devido à falta de evidências consistentes.

a) NA SINDROME VASOPLÉGICA ASSOCIADA A CIRURGIA CARDIACA.

O manejo inicial de pacientes com vasoplegia requer vasopressores, que restauram a função hemodinâmica na maioria, mas não todos os pacientes. Os vasopressores mais utilizados são norepinefrina, vasopressina e fenilefrina. No entanto, doses elevadas destes medicamentos causam efeitos secundários graves, como isquemia periférica ou mesentérica. Egi et. al., revisaram a literatura disponível até 2006 sobre o tratamento de doenças cardíacas vasoplegicas e concluíram que noradrenalina, dopamina em altas doses, fenilefrina, angiotensina II, azul de metileno e vasopressina podem aumentar a pressão arterial média após a CEC. Eles encontraram evidência insuficiente para sugerir que nenhum vasopressor específico foi fisiologicamente ou clinicamente superior aos outros medicamentos disponíveis. Eles sugeriram quando a pressão alvo não podia ser alcançada com a infusão de altas doses de 1 medicamento, um segundo medicamento com uma ação de mecanismo diferente devia ser usado. O perfil de efeitos adversos desses vários medicamentos parece semelhante nos estudos disponíveis. Consequentemente, o tratamento inicial geralmente envolve expansão volêmica e administração de norepinefrina. Vasopressina em dose baixa (< 0,04 U/min) fornece uma abordagem adicional porque a vasoplegia está associada a uma redução na vasopressina endógeno circulante. Vasopressina restaura o tônus ​​​​vascular na síndrome vasoplegica por 4 mecanismos conhecidos, incluindo ativação de receptores vasculares V1 nas células musculares lisas vasculares, modulação de canais de K+ sensíveis a ATP (KATP), modulação do NO e potencialização de adrenérgicos e outros agentes vasoconstritores que levam à vasoconstrição. O azul de metileno fornece uma alternativa para o tratamento da vasoplegia refratária às catecolaminas. A administração geralmente envolve uma dose única em bolus de 1,5 a 2mg/kg, mas alguns autores recomendam infusão contínua 0.5mg/kg/h após o bolus[17] [18] [19].

b) NA SINDROME VASOPLÉGICA ASSOCIADA A CIRURGIA NÃO CARDIACA.

Diversas cirurgias não cardíacas, podem desencadear uma síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SRIS) o suficientemente intensa que provoquem hipotensão OU até o denominado “choque sirético”, cujo fator fisiopatológico principal também é o oxido nítrico (NO). Em alguns desses cenários tem sido reportado o uso de AM como resgate, ou seja, quando não houve resposta ao uso de drogas vasopressoras. Na cirurgia de transplante de fígado, a administração de AM antes da reperfusão do enxerto visando limitar a hipotensão após a liberação da pinça vascular durante o transplante ortotópico de fígado foi avaliado em um ensaio clínico randomizado de 36 pacientes e levou ao aumento da PAM, dosagens reduzidas de epinefrina, aumento da frequência cardíaca e redução do lactato sérico 1h após a administração, comparado com o grupo controle. Contudo, em uma coorte retrospectiva de correspondência de propensão, Fukazawa e outros descobriram que a administração preventiva de AM não evitou a hipotensão pós-perfusão e não diminuiu o uso de vasopressores. No entanto, vários relatos de casos e séries de casos afirmaram melhores perfis hemodinâmicos após AM como agente de resgate para hipotensão refratária após reperfusão hepática durante o transplante hepático[20] [21] [22].

c) OUTROS CENÁRIOS

Publicações baseadas em reportes de casos de uso de AM em estados de choque considerados vasoplégicos têm sido reportados.

1) Anafilaxia e Choque vasoplegico anafilático.

A anafilaxia é uma reação alérgica grave que é rápida no início e pode causar a morte como resultado de doenças cardiovasculares e comprometimento pulmonar, mas a presença de pressão arterial reduzida ou choque não é necessariamente necessária para o diagnóstico. Ocorre secundário à liberação de histamina e outros mediadores em resposta a um gatilho antigênico. Évora et al. propuseram que a histamina ativa proteínas G, o que leva a uma cascata de eventos que resulta na ativação de NOS endotelial e produção de NO da L-Arginina, resultando em vasodilatação. Outros mediadores de anafilaxia (fator de necrose tumoral, leucotrienos, fatores ativadores de plaquetas) também estão associados à vasoplegia neste cenário. A experiência com o uso do AM em casos de choque anafilático é limitada a relatos de casos e não está claro se as reações foram anafilaxia ou choque anafilático, imunomediada ou não imunomediada. Além disso, em alguns relatos, o AM foi administrado com ou sem epinefrina ou administrado após epinefrina. O maior de tais relatórios contêm 10 casos, que exibiram um aumento na PAM, RVS e resolução da anafilaxia[23] [24].

2) Hipotensão intradiálise.

É uma intercorrência relativamente frequente nos pacientes que estão em terapia renal substitutiva. Vários fatores têm sido envolvidos na patogênese, dentre eles hipovolemia, velocidade da ultrafiltração, etc. Dialisato contendo acetato ou membranas bioincompatíveis, que ativam o complemento, tem sido associada à produção de citocinas inflamatórias que ativam a NOS e provocam aumento do NO. Como a produção de NO ocorre após várias horas de exposição a citocinas e permanece ativado por períodos prolongados, a produção de NO induzida por citocinas geradas durante a hemodiálise pode desempenhar um papel na patogênese da hipotensão crônica e aguda associada à hemodiálise de manutenção. Heparina administrada durante hemodiálise é amplamente utilizada para anticoagulação. Em modelos animais e em humanos tem sido evidenciado efeito hipotesor. O mecanismo exato do efeito de redução da pressão não está claro, mas em culturas de células endoteliais humanas foi relatado que a heparina aumenta a produção de NO. Aumento de níveis plasmáticos de NO por efeito da heparina tem sido demonstrado[25] [26] [27] [28]. Gary Peer e col., em 2001 publicaram um estudo no qual AM foi administrado por via intravenosa a 18 pacientes em hemodialise ​​com episódios hipotensivos durante quase todas as diálises, em 18 pacientes em hemodialise sem hipotensão durante a diálise e em 5 controles saudáveis. O AM foi administrado em bolus de 1 mg/kg de peso corporal seguido por uma infusão constante de 0,1 mg/kg de peso corporal com duração de 210 minutos até o final da sessão de diálise e apenas em bolus num dia sem diálise. As pressões arteriais (PA) sistólica e diastólica foram medidas em intervalos de 10 minutos durante sessões de hemodialise com ou sem AM e no dia sem diálise com AM. Em pacientes propensos à hipotensão, o AM preveniu completamente a hipotensão durante a diálise e aumentou a PA sistólica e diastólica nos dias sem diálise. Em pacientes normotensos, o AM aumentou a PA durante a primeira hora de diálise e por 90 minutos no dia sem diálise. A PA nos controles saudáveis ​​permaneceu inalterada. Concluíram que a AM é uma terapia eficiente na prevenção da hipotensão intradiálise[29]. Atualmente, no Brasil está em andamento um ensaio clinico para avaliar se o AM pode melhorar a hemodinâmica e a pressão arterial em pacientes com choque que necessitam de terapia de substituição renal[30].

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PARTE II

Apesar de hoje se ter conhecimento amplo da fisiopatologia do choque circulatório vasoplégico e do rol do oxido nítrico na gênese da vasoplegia, assim como dos mecanismos de ação do azul de metileno, poucos estudos de alto nível de evidência tem sido desenvolvidos para verificar sua eficácia na prevenção ou manejo da síndrome vasoplegica e do choque não séptico. As poucas evidências publicadas não são suficientes para gerar recomendações de uso. Talvez, por ser uma medicação de baixo custo a indústria farmacêutica não tenha interesse em financiar estudos de maior relevância.

De qualquer maneira, espera-se que no futuro possam ser publicados estudos que comprovem a utilidade do AM nos diferentes cenários de choque vasoplégico[31].

Por ora, resta talvez continuar a usar o AM como medicação de uso off-label.



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