Alejandro Enrique Barba Rodas.
Não poucas vezes o médico plantonista
da UTI se depara com pedido para “autorizar a cremação e um cadáver”, sendo
para tanto lhe solicitado assinar na parte lateral da Declaração de Óbito
(D.O.) como um “segundo médico”. Algumas vezes, o médico sensibilizado com a
dor da familia prontamente se prontifica a assinar, outras, o pedido vem com exigência
da família e/ou do próprio hospital.
Entretanto essa prática, relativamente
comum, torna-se de risco não só para o médico que assina mas para a instituição
hospitalar na qual foi “autorizada essa cremação”. O risco do qual se fala
refere-se a eventuais implicâncias éticas e legais que o ato envolve.
Senão vejamos:
A Lei dos Registros Públicos[1]
no § 2º do art. 77 estabelece:
§ 2º
A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver manifestado a
vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de
óbito houver sido firmado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e,
no caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária.
Do teor do parágrafo supracitado,
desprende-se que a cremação exige para sua realização os seguintes requisitos:
1. EXISTÊNCIA DE INTERESSE.
a) INTERESSE DA PESSOA, que em vida
deve haver manifestado esse desejo ou vontade de ser cremado. A Lei não exige determinada
formalidade para essa manifestação como por exemplo, ser escrita e/ou
registrada em cartório (entretanto certamente seria de enorme valor que assim
seja feito). Ainda, no âmbito estadual e de muitos municípios paulistas também não
há também norma que exija essa formalidade, a diferença de outros municípios
como o do Rio de Janeiro (Decreto Municipal nº 24.986/2004)[2].
Bastará, portanto, que terceiros (por exemplo, familiares), declarem que essa
manifestação de vontade de fato ocorreu. Mas essa declaração de terceiros
deverá sim ser registrada como garantia de que o falecido manifestou o desejo
de ser cremado. (instituições e funerárias podem criar formulários próprios com
assinaturas inclusive de testemunhas) ou,
b) INTERESSE PÚBLICO, no caso, por
exemplo, de epidemia de graves consequências com perigo iminente de propagação.
Neste caso, a autoridade sanitária será competente para requerer a cremação dos
cadáveres.
2. DECLARAÇÃO DE ÓBITO ASSINADA POR 1 OU 2 MÉDICOS.
O
preenchimento correto da Declaração de Óbito (DO) deve obedecer ao disposto nas
seguintes normas em vigor:
a) Portaria
SVS/MS 116 de 11.02.2009[3]
b) Resolução
CFM nº. 1.779/2005[4]
c) artigo 23
da RESOLUÇÃO CFM Nº 2.110/2014 (SAMU)[5].
d) Manual de
Instruções para o Preenchimento da Declaração de Óbito[6]
As normas
supracitadas definem a responsabilidade médica do preenchimento da DO para os
casos de morte de causa natural (determinada ou indeterminada) e para os casos
de morte violenta (externa) e/ou suspeita. Já é sabido que nos casos de morte
de causa externa ou violenta, assim como nos casos de morte suspeita de
violência caberá apenas ao médico legista essa responsabilidade. Entretanto,
referidas normas não abordam a questão da cremação.
Esclareça-se
que a Resolução CFM nº 1779/20065 determina que “o preenchimento dos dados constantes na Declaração de Óbito é da responsabilidade
do médico que atestou a morte”. Assim, existe clara obrigação do médico que
constatou o óbito, nos casos de morte natural, de fornecer a DO. Essa
obrigação, portanto, é pessoal e vinculada ao ato da constatação da morte.
A assinatura de um segundo médico para
autorizar a cremação é, no entanto, opcional, podendo qualquer médico
devidamente habilitado fazê-lo. A responsabilidade do segundo médico para
autorizar a cremação não foi contemplada na Resolução supracitada. Entretanto,
conforme o § 2º do art. 77 da Lei dos Registros Públicos essa responsabilidade limitar-se-ia
a “firmar o atestado de óbito”. O
modelo oficial de Declaração de Óbito, no Bloco VI, campos 41 a 47 destina-se a
colher informações sobre o médico atestante. O modelo não contempla qualquer
bloco específico para colher dados de um segundo médico caso seja solicitada a
cremação. Desta forma, é praxe que o segundo médico escreva na parte lateral da
DO expressão como “autorizo a cremação do cadáver” opondo sua assinatura e
carimbo.
O § 2º do art.
77 da Lei dos Registros Públicos determina que especificamente para Cremação a
DO deverá estar assinada:
a. NOS CASOS DE MORTE NATURAL, por 2
(dois) médicos ou por 1 (um) médico legista.
b. NOS CASOS DE MORTE DE CAUSA VIOLENTA,
além de bastar apenas a assinatura do médico legista na DO, será necessária
autorização judicial, que no Estado de São Paulo segue as normas contidas no
Provimento 13/80 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo[7].
De acordo com a legislação
federal, portanto, a manifestação da
vontade deve ser expressa, mas não precisa, a rigor, estar registrada em
cartório, nem formalizada em um documento particular. A legislação federal em
vigor, tampouco exige decurso de prazo de 24 horas para realizar a cremação,
muito embora em alguns municípios se exija esse prazo considerando-o um período
para contestação judicial ou verificação de erros médicos.
Contudo, os serviços funerários
podem ser regulamentados pelos Estados e Municípios, de tal forma que a
exigência de uma forma específica pode vir a ser estabelecida de maneiras
distintas a depender da região, assim como prazos mínimos a serem respeitados
antes de se proceder à cremação. No Estado do Espírito Santo, por exemplo, o
tema é regulamentado pelo art. 1.010, §3º, do Código de Normas da Corregedoria
Geral de Justiça deste Estado, o qual dispõe que “a vontade de ser cremado será manifestada por meio de documento
público ou particular com firma reconhecida por autenticidade levado ao
Registro de Títulos e Documentos”. Apesar da determinação legal pela
existência de formalidade especifica, os familiares do falecido também poderão
obter, mediante ordem judicial, a autorização para cremação daquele que não se
atentou para cumprir tais imposições em vida. Nesses casos, será necessário um
pedido de autorização judicial para a cremação de restos mortais, ainda que
desamparada de documento público ou particular que revele o desejo expresso do
falecido. O Tribunal de Justiça do Espírito
Santo, ao analisar um pedido dessa natureza, entendeu que a ausência de
documento público com expressão de vontade “não
pode ser um obstáculo à pretensão, tendo em vista que o juiz não deve se ater
tão somente ao plano de direito infraconstitucional, devendo analisar cada caso
concreto“, tendo embasado tal decisão em outros elementos capazes de
demonstrar que, em vida, a pessoa extinta evidenciou a intenção de ter seus
restos mortais incinerados[8]. O Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo também já teve oportunidade de se manifestar em sede da AC n°
643.175.4/1-00: ...O d. juízo a quo
indeferiu o pedido de expedição de alvará para exumação e cremação de restos
mortais de pessoa falecida há mais de três anos com base no art. 77, §2°, da
Lei de Registros Públicos [Lei 6.015/73]: "A cremação de cadáver somente
será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no
interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por 2
(dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e, no caso de morte violenta,
depois de autorizada pela autoridade judiciária". Contudo, analisando as
peculiaridades do caso sub judice, verifica-se que não há razão para encarar o
pleito deduzido na inicial com rigor exacerbado, bastando o consentimento da
família para a realização do procedimento.
No município de São Jose dos
Campos, inexiste legislação própria que regulamente a cremação. Assim, caberia
apenas a aplicação da Lei 6.015/73 e a jurisprudência em vigor. Nesse escopo,
parece certo que bastaria a manifestação da família testemunhando que a
cremação teria sido o desejo do familiar falecido.
Surgem, no entanto, as seguintes
questões:
1. A quem caberia exigir essa
declaração expressa por parte da família? Ao médico e/ou ao responsável pelo
forno crematório?
2. Qual membro da família ficaria
incumbido de assinar essa declaração? E se houver discrepância entre membros da
família?
Walter Ceneiva afirma que em se
tratando de norma de direito material, deve ser observada pelo responsável do
forno crematório, a quem incumbe verificar a manifestação do falecido ou o
interesse da saúde pública[9].
Tratar-se-ia de, nessa situação, uma transferência da responsabilidade para o
Estado que autoriza o funcionamento dos crematórios.
O assunto, como visto, resulta
complexo e envolve responsabilidade civil e criminal, toda vez que na ausência
de lei municipal que regulamente o processo de cremação, o médico poder-se-ia
ver envolvido em eventuais processos nos quais, por obvio, seja impossível de
se realizar a exumação de um cadáver. Não descabida, resultaria, a hipótese de
que, com a cremação seja desaparecido quaisquer vestígios ou provas de eventual
crime, tornando-a nesses casos uma verdadeira forma de “queima de arquivo”.
Observe-se que a complexidade do
assunto levou a tramitar no Senado Federal, o PL 474/2011[10]
da autoria do Senador Sérgio Souza[11],
acrescentando o artigo 77-A:
Art. 77-A. A cremação de cadáver somente
será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou quando
houver interesse da saúde pública.
§ 1º No caso de morte violenta, a cremação
só será realizada mediante autorização judicial.
§ 2º No caso de cremação em decorrência de
mera manifestação verbal de vontade, a certidão de óbito identificará o
declarante que tenha assegurado que o falecido manifestou o desejo de ser
cremado.
§ 3º Havendo necessidade de cremação por
motivo de saúde pública, a autoridade sanitária será competente para determinar
a cremação, ressalvado o disposto no § 1º.
§ 5º Em qualquer caso, não poderá ser
realizada a cremação antes do decurso de vinte e quatro horas do falecimento.
§ 6º É vedada a dissipação das cinzas em
locais públicos utilizados para o lazer da comunidade ou onde seja comum a
aglomeração de pessoas.
§ 7º A autoridade sanitária estabelecerá o
modelo de declaração de responsabilidade pelo traslado de cinzas decorrentes da
cremação de cadáver e também o respectivo termo de embarque e traslado.
Pode-se concluir, portanto, que:
1. Cabe
ao médico que constatou (atestou) a morte o fornecimento da DO devidamente
preenchida (dever/obrigação).
2. A
assinatura de um segundo médico na DO para autorização de cremação, trata-se de
uma opção e não de uma obrigação.
3. Havendo
declaração antecipada de vontade de ser cremado, o médico e/ou a instituição
deverá guardar cópia da mesma.
4. Inexistindo
declaração antecipada de vontade, far-se-ia necessário que o segundo médico que
irá assinar solicite antes uma cópia da declaração feita perante o crematório
ou seja feita em termo próprio.
5. Quanto
à qualificação do declarante, deverá ser familiar adulto devidamente
identificado.
6. Havendo
manifestação contrária por parte de algum outro familiar deverá ser orientada a
requerer autorização judicial.
7. Em se
tratando de morte violenta ou suspeita caberá ao médico legista o fornecimento
da DO e a cremação deverá ser feita com autorização judicial.
[1] Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.
[2] http://int-pub-coletivo-adriana-dias-1-2011.blogspot.com.br/2011/05/1.html
[3] Regulamenta a coleta de dados, fluxo e periodicidade
de envio das informações sobre óbitos e nascidos vivos para os Sistemas de
Informações em Saúde sob gestão da Secretaria de Vigilância em Saúde
[4] Regulamenta a responsabilidade médica no fornecimento
da Declaração de Óbito
[5] Dispõe sobre a normatização do funcionamento dos
Serviços Pré-Hospitalares Móveis de Urgência e Emergência, em todo o território
nacional.
[6] Manual de Instruções para o Preenchimento da
Declaração de Óbito 2011. Ministério da Saúde
Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de Análise de Situação de
Saúde
[7] https://arisp.files.wordpress.com/2010/11/cgj-provimento-13-1980.pdf
[8]
Alvará Judicial nº 0001395-05.2013.8.08.0024. https://sistemas.tjes.jus.br/ediario/index.php/component/ediario/11439?view=content
[9] Lei dos Registros Públicos Comentada', Saraiva: São
Paulo, 17ª edição, 2006, nº 196, página 195
[10] http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/101550
[11] Senador Sérgio Souza, Primeiro Suplente da Senadora
Gleisi Hoffmann (exerceu mandato entre 14/11/2011 e 03/02/2014)
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