UMA VISÃO DIFERENTE DO CHOQUE CIRCULATÓRIO E A IMPORTÂNCIA DO CHOQUE IRREVERSÍVEL.
Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Intensivista. Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.
PARTE II: DO CHOQUE REFRATÁRIO AO CHOQUE IRREVERSÍVEL
O Tratado de Fisiologia de Guyton nos ensina que o choque
circulatório segue um curso evolutivo que se progredir até sua fase crítica de
gravidade, independentemente de sua causa desencadeadora, gerará um círculo
vicioso em que o choque produz mais choque. Ou seja, o fluxo sanguíneo
inadequado faz com que os órgãos comecem a se deteriorar, incluindo coração e o
próprio sistema circulatório. Isso, por sua vez, ocasiona redução ainda maior
do débito cardíaco, seguindo-se um círculo vicioso, com aumento progressivo do
choque circulatório, perfusão tecidual menos adequada, e assim por diante, até
a morte.
Com base na fisiologia, o choque
é geralmente dividido em 3 estágios principais que foram concebidos dentro do
modelo de choque hipovolêmico hemorrágico:
1. Estágio não-progressivo (choque compensado), na qual os
mecanismos compensatórios da circulação normal causam eventualmente recuperação
completa sem ajuda de terapia externa.
Nesta fase, o choque não é suficientemente grave para causar sua própria
progressão e a pessoa acaba por se recuperar. Os mecanismos compensatórios do
tipo de feedback negativo, que tentam fazer o débito cardíaco e a
pressão arterial retornarem a níveis normais, incluem:
a. Reflexos barorreceptores, que provocam potente estimulação
simpática da circulação.
b. Resposta isquêmica do sistema nervoso central, que produz
estimulação simpática ainda mais potente no corpo, porém não é ativada de modo
significativo, até que a pressão arterial se reduza abaixo de 50 mm Hg.
c. O relaxamento reverso por estresse do sistema circulatório, que faz
com que os vasos sanguíneos se contraiam em função da diminuição do volume
sanguíneo, de modo que o volume sanguíneo disponível encha mais adequadamente a
circulação.
d. Aumento da secreção de renina pelos rins e formação de angiotensina II,
que resulta em constrição das arteríolas periféricas e também diminuição do
débito de água e de sal pelos rins, ambos ajudando a impedir a progressão do
choque.
e. Aumento da secreção de vasopressina (harmônio antidiurético) pela glândula hipófise posterior, que
resulta em constrição das arteríolas e veias periféricas e aumenta de modo
acentuado a retenção de líquido pelos rins.
f. Aumento da secreção de epinefrina e norepinefrina pela medula renal,
que contrai as arteríolas e veias periféricas e eleva a frequência cardíaca.
g. Mecanismos compensatórios que fazem o volume sanguíneo voltar ao normal,
incluindo absorção de grandes
quantidades de líquido pelo trato
intestinal, pelos capilares sanguíneos dos espaços intersticiais do corpo, a conservação de água e sal pelos rins
e o aumento da sede e do apetite por
sal, que fazem com que o indivíduo beba água e coma alimentos salgados se for capaz.
Os reflexos simpáticos e o
aumento da secreção de catecolaminas pela medula adrenal, fornecem rápida ajuda
para trazer de volta a recuperação, pois eles se tornam maximamente ativados
dentro de 30 segundos a alguns minutos após a hemorragia. Os mecanismos da
angiotensina e da vasopressina, assim bem como o relaxamento reverso por
estresse, que causa contração dos vasos sanguíneos e dos reservatórios venosos,
necessitam de 10 minutos a 1 hora para responder de forma completa, porém participam
de modo muito ativo do aumento da pressão arterial ou da pressão de enchimento
circulatório, e por meio deles aumentam o retorno de sangue para a
coração. Finalmente, o reajuste do
volume sanguíneo pela absorção de líquido dos espaços intersticiais e do trato
intestinal, bem como a ingestão oral e a absorção de quantidades adicionais de
agua e de sal, pode necessitar de 1 a 48 horas, porém a recuperação ocorre com
o tempo, desde que o choque não se torne grave o suficiente para entrar no
estágio progressivo.
2. Estágio progressivo (choque descompensado), no qual, os
mecanismos compensatórios normais foram vencidos e, necessita-se de terapia externa, para evitar que o choque se torne
progressivo e continue evoluindo até a morte.
Quando o choque apresenta
gravidade suficiente, as próprias estruturas do sistema cardiovascular começam
a se deteriorar, desenvolvendo-se vários mecanismos de feedback positivo que
podem gerar um círculo vicioso de diminuição progressiva do débito
cardíaco. São eles os seguintes:
Figura 1. Diferentes tipos de feedback positivo que
podem levar à progressão do choque
a. Depressão cardíaca. Quando a pressão arterial cai a um nível
suficientemente baixo, o fluxo sanguíneo coronariano diminui além do necessário
para a nutrição adequada do próprio miocárdio. Isso enfraquece o músculo
cardíaco, e por isso diminui ainda mais o débito cardíaco. Dessa forma,
desenvolve-se um ciclo de feedback
positivo pelo qual o choque fica cada vez mais e mais grave. Assim, uma das
características importantes do choque progressivo, quer seja de origem
hemorrágica, quer causado por qualquer outra etiologia, é a deterioração
progressiva do coração. Embora miocardiopatia associada ao choque se inicie
precocemente, nos estágios iniciais
desempenha um papel muito pequeno na condição da pessoa, em parte porque a
deterioração do coração não é grave durante a primeira hora do choque, mas
principalmente porque o coração tem imensa capacidade de reserva que permite
que ele bombeie normalmente 300 a 400%
mais sangue que o requerido pelo corpo para adequada nutrição dos tecidos
corporais. Entretanto, nos estágios finais do choque, a deterioração do coração
é provavelmente o fator mais importante para a progressão letal final do
choque.
b. Insuficiência vasomotora. Nos estágios iniciais do choque, vários
reflexos circulatórios provocam intensa atividade do sistema nervoso simpático.
Isso, como discutido antes, ajuda a retardar a depressão do débito cardíaco e
em especial a impedir a queda da pressão arterial. Todavia, chega-se a o ponto
em que a redução do fluxo sanguíneo para o centro vasomotor do cérebro deprime
de tal modo esse centro que ele fica progressivamente menos ativo e, por fim,
inativo de forma total. Por exemplo, a interrupção completa da circulação para
o cérebro, causa durante os primeiros 4 a 8 minutos, a mais intensa de todas as
descargas simpáticas, porém ao final de 10 a 15 minutos, o centro vasomotor
está tão deprimido que não pode ser demonstrada nenhuma evidência adicional de
descarga simpática. Por sorte, porém, o centro vasomotor em geral não falha nos
estágios iniciais do choque se a pressão arterial permanecer acima de 30mmHg.
c. Bloqueio dos pequenos vasos (“sangue estagnado”). Com o passar do
tempo ocorre bloqueio de muitos dos vasos sanguíneos muito pequenos do sistema
circulatório, e isto também pode causar choque progressivo. A causa inicial
desse bloqueio é o fluxo lento de sangue nos microvasos. Como o metabolismo
tecidual continua, apesar do baixo fluxo, grandes quantidades de ácido
carbônico e de ácido láctico, continuam a ser lançados nos vasos sanguíneos
locais e aumentam, de modo acentuado, a acidez local do sangue. Todo esse ácido
e mais outros produtos da deterioração dos tecidos isquêmicos produzem a aglutinação
do sangue local, resultando em minúsculos coágulos sanguíneos que levam à
formação de tampas (plugs), muito
pequenas nos vasos de pequeno calibre. Mesmo que não se formem tampas nos
vasos, existe tendência aumentada das células sanguíneas de se aderirem umas às
outras, tornando mais difícil que o sangue flua pela microvasculatura, o que dá
origem ao termo sangue estagnado.
d. Aumento da permeabilidade capilar. Após muitas horas de hipoxia
capilar e de falta de outros nutrientes, a permeabilidade dos capilares aumenta
gradualmente, e grandes quantidades de líquido começam a transudar para os
tecidos. Isso diminui ainda mais o volume sanguíneo, com a consequente redução
adicional do débito cardíaco, fazendo com que o choque fique ainda mais grave.
A hipóxia capilar não causa aumento da permeabilidade capilar senão até os
estágios avançados do choque prolongado.
e. Liberação de toxinas pelo tecido isquêmico. Durante toda a história
das pesquisas na área do choque, sugeriu-se que este fizesse com que os tecidos
liberassem substâncias tóxicas, como histamina, serotonina e enzimas teciduais,
que causam deterioração adicional do sistema circulatório. Estudos
experimentais demonstram a importância de pelo menos uma toxina, a endotoxina, em alguns tipos de choque.
f. Depressão cardíaca causada por endotoxinas. A endotoxina é liberada pelas células mortas de bactérias
gram-negativas no intestino. O fluxo sanguíneo diminuído para os intestinos
causa muitas vezes a formação e a absorção aumentadas dessa substância tóxica.
A toxina circulante, a seguir, causa aumento do metabolismo apesar da nutrição
inadequada das células; isso tem efeito específico sobre o músculo cardíaco,
produzindo depressão cardíaca. A endotoxina
pode desempenhar o papel principal de alguns tipos de choque, especialmente no
“choque séptico”.
g. Deterioração celular generalizada. Enquanto o choque se agrava,
ocorrem muitos sinais de deterioração celular generalizada. Órgão afetado de modo especial é o fígado. Isso decorre em grande parte da
falta de nutrientes suficientes para sustentar o metabolismo normalmente
elevado das células hepáticas, mas também em parte, devido à extrema exposição
das células hepáticas a qualquer toxina vascular ou outro fator metabólico
anormal que ocorra no choque.
Entre os efeitos celulares
lesivos conhecidos que ocorrem na maioria dos tecidos orgânicos, estão os
seguintes:
1. O transporte ativo de sódio e
potássio através da membrana celular fica muito diminuído (hipóxia provoca
disfunção da bomba de Na-K ATPasa pela queda significativa da ATP decorrente da
glicólise anaeróbia). Como resultado, sódio e cloro se acumulam nas células, e
o potássio é perdido pelas células. Como consequência, as células começam a
inchar (edema celular citotóxico).
2. A atividade mitocondrial nas
células hepáticas, bem como em muitos outros tecidos do corpo, fica geralmente
deprimida.
3. Os lisossomas das células em
áreas dispersas do tecido começam a se romper, com liberação intracelular de hidrolases, que causam deterioração
intracelular adicional.
4. O metabolismo intracelular de nutrientes, como o da glicose, é por
vezes muito deprimido nos estágios avançados do choque. As ações de alguns
hormônios são também deprimidas, incluindo depressão de quase 100% da ação da
insulina. Todos esses efeitos contribuem para a deterioração adicional de
muitos órgãos do corpo, incluindo especialmente (1) o fígado, com depressão de suas muitas funções metabólicas e
desintoxicantes; (2) os pulmões, com
desenvolvimento eventual de edema pulmonar e pouca capacidade de oxigenar o
sangue; e (3) o coração, por
conseguinte, diminuindo ainda mais sua contratilidade.
5. Necrose tecidual no choque grave – ocorrência de áreas focais de
necrose provocada por fluxos sanguíneos focais em diferentes órgãos. Nem todas as células do corpo são igualmente
lesadas pelo choque, pois alguns tecidos têm melhor oferta sanguínea que
outros. Por exemplo, as células adjacentes às extremidades arteriais dos
capilares, recebem mais nutrientes que as adjacentes às extremidades venosas
dos mesmos capilares. Por conseguinte, ocorre maior deficiência nutricional em
torno das terminações venosas dos capilares do que em outro lugar. Exemplo são
as lesões por necrose centro lobular do fígado. Lesões também ocorrem nos rins,
especialmente no epitélio dos túbulos renais, levando a insuficiência renal e
por vezes à morte por uremia alguns dias depois. A deterioração nos pulmões pode provocar
síndrome de angustia respiratória e morte após vários dias (pulmão de choque).
Todavia as lesões cardíacas avançadas têm papel importante na condução ao
estágio final irreversível do choque.
6. Acidose no choque. A hipóxia leva a glicólise anaeróbia e aumento
na produção de ácido láctico. Além disso o fluxo sanguíneo reduzido impede a
remoção normal do C02, gerando hipercapnia e acidose intracelular (acidose
tecidual) e sistêmica.
A progressão do estágio de choque
compensado para descompensado vai depender da predominância dos mecanismos de
feedback negativo e positivo acima descritos.
3. Estágio irreversível (choque irreversível), em que o choque
progrediu de tal maneira que todas as formas de terapia conhecida são
inadequadas para salvar a vida da pessoa, ainda que no momento ainda ela esteja
viva. Nesta fase evolutiva do choque, apesar de todas as medidas adotadas,
houve um grau avançado de dano tecidual, com enzimas destrutivas liberadas nos
líquidos corporais, acidose grave e persistente e tantos outros fatores
destrutivos que nem mesmo um débito cardíaco “normalizado” poderia reverter o
processo de morte. É o caso de por vezes, num choque hipovolêmico hemorrágico
avançado, transfusões de sangue provocarem uma aparente “normalização da
pressão arterial e até do débito cardíaco” de forma provisória por um curto
período de tempo. Entretanto, o dano a nível celular não mais reverte, e
continua evoluindo de forma irreversível, provocando pouco tempo depois nova
queda da pressão arterial e do débito cardíaco. Sucessivas transfusões vão
perdendo esse aparente “efeito de melhora transitória”. Nesse ponto do quadro
clínico, ocorreram múltiplas alterações danosas nas células musculares do
coração, que, não necessariamente, afetam a capacidade imediata do coração de
bombear o sangue, mas por longos períodos deprimem essa capacidade o suficiente
para levar à morte. Ao que parece, o
fator determinante seria uma depleção das reservas celulares de fosfato de alto
valor energético no choque irreversível. As reservas de fosfato de alto
valor energético nos tecidos corporais, especialmente no fígado e no coração,
diminuem muito nos graus mais graves do choque. Praticamente todo o fosfato de
creatina é degradado e quase todo o trifosfato de adenosina (ATP) é degradado a
difosfato de adenosina (ADP), monofosfato de adenosina (AMP) e, finalmente, a
adenosina. Em seguida, grande parte dessa adenosina se difunde para fora das
células e para o sangue circulante, sendo
convertida em ácido úrico, substância que não pode reentrar nas células
para reconstituir o sistema do fosfato de adenosina. Infelizmente, nova
adenosina só pode ser sintetizada numa proporção de apenas aproximadamente de
2% por hora, o que quer dizer que, uma vez esgotadas as reservas de fosfato de
alto valor energético das células, é difícil repô-las em tempo suficiente para
reverter o dano. Por essa razão, uma das
mais devastadoras consequências finais da deterioração no choque e que, talvez,
seja a mais significativa de todas para o desenvolvimento do estado final de
irreversibilidade seja a depleção celular das reservas de ATP[1].
No choque compensado a oferta de oxigênio
(D02) cai abaixo do nível crítico (D02 crítica) e os tecidos se transformam em
fontes de energia anaeróbicas. Nestas condições, a função celular será mantida
se o rendimento combinado de fontes de energia aeróbicas e anaeróbicas forneça
ATP suficiente para a síntese proteica e processos contráteis. Alguns tecidos
são mais resistentes à hipóxia do que outros. Os músculos esqueléticos e lisos
são altamente resistentes à hipóxia, e danos irreversíveis não ocorrem em
hepatócitos isolados até 2,5 horas de isquemia. Por outro lado, as células
cerebrais sofrem danos permanentes após apenas alguns minutos de hipóxia. O
intestino parece ser particularmente sensível a diminuições na perfusão. As
mucosas intestinal e gástrica mostram evidências de metabolismo anaeróbico precoces.
Choque descompensado que resulta em dano
tecidual irreversível ocorre quando os suprimentos aeróbicos e anaeróbios
combinados de ATP não são suficientes para manter a função celular. A falha no
funcionamento das bombas de transporte de íons das membranas celulares
dependentes de ATP, em particular aquelas associadas à regulação de cálcio e
sódio, resulta na perda da integridade da membrana e edema celular (edema
citotóxico). Entre outros mecanismos que levam ao choque irreversível durante a
hipóxia estão o esgotamento da energia celular (ATP), a acidose celular, a
geração de radicais livres de oxigênio e a perda de nucleotídeos da adenina da
célula[2].
Como já mencionado anteriormente,
não se encontra na literatura algum escore com critérios que possam definir de
forma objetiva a fase de choque irreversível. Geralmente, a definição desta
fase fica por conta da “opinião” do médico que asiste o paciente, baseada na
observação de um quadro de choque persistente que não responde a “altas doses
de drogas vasoativas/inotrópicas e com presença de disfunção de múltiplos
órgãos”.
CHOQUE REFRATÁRIO:
O termo choque refratário tem sido frequentemente usado durante o manejo do
choque (independentemente de sua etiologia) apesar de não existir uma definição
consensual universal. Recente publicação sobre o assunto na revista Chest
(2018), aponta que as definições propostas incluem, a incapacidade de alcançar meta
pressórica apesar da terapia com vasopressores, a necessidade de terapia
vasopressora de resgate ou necessidade de altas doses de vasopressor, mas que uma
definição razoável de choque refratário seria uma resposta inadequada à terapia
com alta dose de vasopressor, definida como ≥ 0,5 mcg/kg/min de
norepinefrina ou dose equivalente de outro vasopressor. Estudos observacionais
sugerem que, usando esta definição, 6% a 7% dos pacientes gravemente doentes
desenvolverão choque refratário. Mortalidade em pacientes com choque refratário
dependem muito da definição utilizada, com taxas de mortalidade hospitalar
geralmente superiores a 50% O mesmo artigo apresenta as equivalências entre os
vasopressores[3]:
Em 2013, Estevão Bassi e col. numa ampla revisão já definiam choque
refratário como aquele com necessidade de > 0,5 mcg/kg/min de
noradrenalina/adrenalina por > 1h ou >1 mcg/kg/min em qualquer período de
tempo. Para estes autores, vários mecanismos contribuem para o choque
vasodilatador, como estados inflamatórios, incluindo aumento na produção de
citocinas e de oxido nítrico (induzido pela oxido nítrico sintetase) um potente
vasodilatador endógeno. Vários outros estímulos estão presentes no estado de
choque e perpetuam a vasodilatação, como a hipóxia
celular e a acidose que provocam
ativação de canais de potássio sensíveis a ATP, levando a saída de K+ e
hiperpolarizando a membrana celular vascular, dificultando a entrada do cálcio.
A acidose altera a permeabilidade do retículo, diminuindo a condutância de
Ca++. Há uma menor liberação de Ca++ pelo retículo sarcoplasmático e redução na
capacidade de ligação Ca++-troponina, em virtude do aumento na concentração de
H+ causada pelo acúmulo de ácido lático. Outros mecanismos contribuem para a
fisiopatologia do choque refratário, como a insuficiência adrenal do paciente
crítico com baixa produção endógena de corticoides, níveis plasmáticos
inapropriadamente baixos vasopressina endógena e oxidação e inativação de
catecolaminas. No conjunto, esses mecanismos levam à perda do tônus vascular e hiporresponsividade
aos vasopressores, que seriam os principais responsáveis do choque refratário[4].
Recentemente em 2018, Prashanth Nandhabalan e col. publicaram um
artigo sobre choque refratário no Critical Care, adotando a definição de Bassi
e col., associando-a com mortalidade de 60% e ainda apontando que pacientes com
necessidade de vasopressores superiores a 1mcg/kg/min de norepinefrina ou
equivalente que continuam a piorar clinicamente, terão uma alta mortalidade de
80-90%[5].
Ashwin Neelavar Udupa e Rajesh Mohan Shetty, num estudo publicado em
dezembro de 2018, sobre suporte avançado cardiovascular no choque
refratário usaram também o mesmo cut-off de infusão de noradrenalina > 0,5mcg/kg/min
apesar de ressuscitação volêmica, para definir choque refratário, apontando
para uma mortalidade de 94%[6].
CHOQUE IRREVERSÍVEL
O conceito de choque irreversível, decorre do
processo evolutivo do choque na ausência de resposta às medidas terapêuticas
instauradas. Apesar de não haver critérios consensuais estabelecidos, uma
definição objetiva que o caracterize (como no caso do choque refratário), reveste-se
de extrema importância, toda vez que representa, a rigor, uma fase na qual não
há mais possibilidade de reversão do choque e o paciente evoluirá
inevitavelmente para o óbito. Assim nesta fase, se adequadamente identificada,
todas as medidas tornam-se inúteis, estando o paciente tecnicamente na sua fase
de fim de vida.
As evidências científicas têm
mostrado que alguns marcadores clínicos e/ou laboratoriais poderiam sinalizar
que estamos diante de um choque
irreversível. Tais marcadores se caracterizam pela sua associação com 100% de mortalidade quando presentes.
1. ESCORES PROGNÓSTICOS DE GRAVIDADE.
Os índices de gravidade são
definidos como “classificações numéricas relacionadas a determinadas
características apresentadas pelos pacientes e que proporcionam meios para
avaliar as probabilidades de mortalidade e morbidade resultantes de um quadro
patológico[7].Escores
prognósticos podem ser divididos em escores que calculados uma única vez, avaliam
a gravidade da doença com base em dados obtidos dentro de um período após a
admissão na UTI e preveem desfechos como mortalidade, como por exemplo, o Acute Physiology and Chronic Health
Evaluation (APACHE), o Simplified Acute Physiology Score (SAPS) e o Mortality Probability Model (MPM); escores que sendo calculados de
forma repetida, avaliam a presença e gravidade da disfunção orgânica de forma
evolutiva ao longo de vários dias, como por exemplo, o Organ System Failure (OSF), o Multiple Organ Dysfunction Score (MODS)
e o Sequential Organ Failure Assessment (SOFA); e escores que avaliam o uso
da carga de trabalho de enfermagem, como por exemplo Therapeutic Intervention Scoring System (TISS) e o Nine Equivalents of
Nursing Manpower Use Score (NEMS). Os escores de predição de desfechos
originais foram desenvolvidos há mais de 25 anos para fornecer uma indicação do
risco de morte de grupos de pacientes na UTI e muito embora eles não tenham
sido concebidos para um prognóstico individual, certamente fornecem uma
informação importante com relação a associação com o grau de mortalidade dos
pacientes graves[8] [9].
Apesar da existência de numerosos exemplos de uso de modelos prognósticos para
tomada de decisões no caso de pacientes individuais (por exemplo, utilização do
escore MELD para alocação de órgãos para transplante hepático), seu uso não é
isento de problemas. Os sistemas de escore prognóstico têm melhor desempenho
quando utilizados em coortes (grupos). Por exemplo, em uma coorte de 1.000
pacientes com mortalidade prevista de 90%, em média 100 pacientes sobrevivem -
apesar de uma mortalidade prevista de 90% para qualquer paciente individual.
Estes pacientes não prejudicam a validade do modelo, antes a confirmam. Além da
incerteza inerente ao que se refere à predição em pacientes individuais, até
mesmo os melhores modelos clinicamente úteis têm AUC de não mais do que 0,9, o
que implica imperfeição até mesmo para predição para uma coorte. Mais ainda, o
desempenho do modelo pode ser prejudicado pela não disponibilidade de todos os
dados necessários para o cálculo do escore (os dados faltantes são
contabilizados como normais) e pelos erros na coleta e inserção dos dados,
assim como pelas preferências do paciente quanto ao suporte à vida. As
barreiras à aceitação disseminada dos modelos prognósticos incluem o custo da
infraestrutura de tecnologia da informação, que é necessária para aquisição dos
dados para modelos complexos, resistência dos médicos em razão de sua percepção
de superioridade de suas próprias estimativas da sobrevivência do paciente, ou
sua desatenção quanto à relevância do modelo para seus pacientes, e o foco em
predição de mortalidade, em vez de um desfecho funcional, como anos com
qualidade de vida[10].
Um Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE II) maior
que 40 tem sido associado com 100% de mortalidade[11].
Escore acessível em: http://www.medicinaintensiva.com.br/ApacheScore.htm
O Simplified Acute Physiology Score (SAPS 3) pode, em teoria, variar
de um mínimo de 0 pontos para um máximo de 217 pontos. No estudo original
europeio, o valor mínimo observado foi de 5, e o valor máximo foi de 124
pontos, com uma média de 49,9 ±16,6 (média ± DS) e uma mediana de 48. A
relação entre o escore de admissão do SAPS 3 e a respectiva mortalidade
hospitalar é descrita na seguinte Figura:
Figura 2
Relação entre SAPS3 e Mortalidade Hospitalar
Pela tabela europeia oficial do
SAPS 3 (http://www.saps3.org/resources-downloads/user-agreement/downloads/)
pontuações de 80 se correlacionam com mortalidade estimada de 75%. Pela mesma
tabela, em teoria, para atingir
mortalidade estimada de 100% seria necessária pontuação mínima de 160.
Variações regionais ocorrem em razão da customização do SAPS 3 como ocorria
para o Brasil onde era usada a formula customizada para América do Sul (Razão
de Mortalidade de 1.3) [12] [13].
Em 2006, Soares e Salluh validaram o SAPS 3 em coorte brasileira de pacientes
com câncer e obtiveram excelentes resultados[14].
Em 2010 João Manoel Silva Junior e col. usando a formula customizada, validaram
o SAPS 3 no Brasil, para pacientes cirúrgicos encontrando que pacientes com
índice SAPS 3 maior que 57 tinham uma mortalidade de 73,5%[15]
dando uma impressão de superestimação da mortalidade quando comparada com o
estudo original europeio. Esta impressão
foi corroborada em 2017 por Martines, Soares, Salluh e col., através de um
grande estudo retrospectivo de 48,816 pacientes adultos admitidos em 72 UTIs
gerais brasileiras encontrando que o SAPS 3 customizado pela formula para
América do Sul realmente superestima a mortalidade estimada (calculada ou
prevista) recomendando seja usada o SAPS 3 original europeio (Razão de
Mortalidade de 1.0)[16]
.
Pelo Mortality Probability Model (MPM), quanto maior a idade e o
preenchimento dos critérios do MPM na admissão, 24, 48 ou 72 horas, a mortalidade prevista será de 100%. Escore
acessível aqui: https://intensivecarenetwork.com/Calculators/Files/Mpm2.html
O Organ System Failure (OSF), desenvolvido em 1985 e atualmente pouco
usado, previa uma mortalidade e
praticamente de 100% quando três falhas de órgãos persistem por 5 dias ou mais[17]
[18].
O Multiple Organ Dysfunction Score (MODS) foi desenvolvido por
Marshall et.al., em 1995. Incluía seis sistemas de órgãos-chave e uma pontuação
de zero a quatro foi dada a cada órgão de acordo com a função (zero sendo
função normal e quatro sendo a mais grave disfunção), com uma pontuação máxima
de 24. A taxa de mortalidade estimada
é de 25% para pacientes com uma pontuação de 9 -12; 50% para uma pontuação de
13-16; 75% para uma pontuação de 17-20 e 100%
para uma pontuação > 20[19].
Escore acessível aqui: https://reference.medscape.com/calculator/mods-score-multiple-organ-dysfunction.
A validação foi realizada em amostra de pacientes cirúrgicos e desde então
tem-se mostrado como bom método preditivo em pacientes com choque séptico,
tanto clínicos quanto cirúrgicos. Tem sido amplamente utilizado em estudos
clínicos. Entretanto, o cálculo da variável cardiovascular através da Frequência
Cardíaca Ajustada a Pressão (FCAP) leva à perda da simplicidade da utilização
do índice à beira do leito. Esta variável depende da ressuscitação volêmica e
do uso de vasopressores e inotrópicos, além disso, a PVC não é aferida em todos
os pacientes, sendo outro fator de limitação. A FCAP é a variável mais criticada
neste índice de morbidade. Entretanto, consegue discriminar de maneira adequada
os pacientes sobreviventes e os não-sobreviventes. Na tentativa de diminuir a
dificuldade de cálculo que o componente cardiovascular proporciona, o mesmo
grupo que desenvolveu o MODS, apresentou uma modificação no componente
cardiovascular, com o objetivo de simplificar o cálculo da variável e foi feita
nova validação do MODS modificado. No MODS modificado, se substitui a Frequência
Cardíaca Ajustada a Pressão (FCAP) por um parâmetro cardiovascular misto como segue:
0 = frequência cardíaca <120bpm; 1 = frequência cardíaca >120 e <140bpm;
2 = frequência cardíaca > 140bpm; 3 = necessidade de vasopressor:
(dopamina> 3mcg/kg/min), e 4 = lactato > 5 mmoL/L[20].
O Sequential Organ Failure Assessment (SOFA), foi desenvolvido em
1994 durante uma conferência de consenso. Seis sistemas orgânicos
(respiratório, cardiovascular, renal, hepático, nervoso central, coagulação)
foram selecionados com base em uma revisão da literatura, e a função de cada um
é pontuada de 0 (função normal) a 4 (mais anormal), dando uma pontuação
possível de 0 a 24. Ao contrário de a pontuação MODS em que o primeiro valor de
cada dia é utilizado, para o escore SOFA, o pior valor em cada dia deve ser
escolhido. Outra diferença fundamental é o componente cardiovascular; em vez da
variável composta, o SOFA utiliza uma variável relacionada ao tratamento (dose
de vasopressor). Isso não é ideal, já que protocolos de tratamento variam entre
instituições, entre pacientes e ao longo do tempo, mas é difícil evitar,
especialmente para o sistema cardiovascular.
Omar Abid e col., num estudo
retrospectivo publicado em 2000 observaram que pacientes com um escore de SOFA > 12, não responsivos à
reanimação com fluidos e ao tratamento com dopamina de até 20mcg/kg/min
(cut-off para o início de norepinefrina) que iniciaram norepinefrina após 24
horas de admissão na UTI tiveram uma
mortalidade de 100%[21].
Ahmed S. Okasha e col. publicaram
em 2004 um estudo avaliando a validade prognóstica e confiabilidade do escore
de SOFA em pacientes com politrauma. Encontraram que com um escore de SOFA ≥
12, a taxa de mortalidade foi de 100%. Este achado está em estreita
similaridade com estudos prévios que descreviam melhor sensibilidade e
especificidade para previsão de mortalidade com um escore de SOFA variando de
12 a 15[22].
Numa análise prospectiva de 1.449
pacientes, um escore total do SOFA maior
que 15 correlacionado com uma taxa de mortalidade de 90%. Mudanças na
pontuação SOFA ao longo do tempo também é útil na previsão do resultado. Em um estudo
prospectivo de 352 pacientes de UTI, um aumento no escore SOFA nas primeiras 48
horas na UTI, independente do escore inicial, predisse uma taxa de mortalidade de
pelo menos 50%, enquanto uma diminuição foi associada uma taxa de mortalidade
na UTI de apenas 27%. Em um estudo prospectivo observacional de 1.340 pacientes
com síndrome de disfunção de múltiplos órgãos, Cabrè e col., relataram 100% de mortalidade para pacientes com
idade de 60 anos, com um SOFA máximo maior que 13 em qualquer dos 5
primeiros dias de internação na UTI, com um SOFA mínimo maior que 10 em todos
os momentos, e uma tendência positiva ou
inalterada do SOFA ao longo dos primeiros 5 dias de internação na UTI[23]
[24].
Mais recentemente em 2017, Afshan
Shabir e Muzaffar Maqbool, publicaram um estudo para avaliar a precisão do SOFA
na predição resultado de pacientes em Unidade de Terapia Intensiva (UTI)
admitidos com diferentes diagnósticos. Encontraram que no grupo com pontuação SOFA de 15 a 18, houve uma taxa
de mortalidade de 100%[25].
Escore acessível aqui: https://clincalc.com/IcuMortality/SOFA.aspx
ou aqui: http://www.medicinaintensiva.com.br/sofa.html.
2. DOSES ALTAS E DOSES MÁXIMAS DE VASOPRESSOR.
“Dose alta de vasopressor”, é um termo que tem sido usado para
definir o conceito de choque refratário, associar mortalidade decorrente do
choque, assim como para avaliar efeitos adversos da droga. O vasopressor usado
como referência é a noradrenalina e o valor de corte mais aceito tem sido o de
0,5 µg/kg/min como visto na revisão do choque refratário, embora dose de 1 µg/
kg/min também tem sido relatada[26].
Entretanto, como já visto, os conceitos de choque refratário e de irreversível não
se confundem, já que este último deveria estar relacionado a uma mortalidade de
100%, o que não ocorre com o primeiro. A principio poder-se-ia pensar que o
ponto de corte para definir “irreversibilidade” do choque estaria no momento em
que se atinja a “dose máxima do vasopressor” já que tecnicamente não haveria
como continuar aumentando a dose da medicação.
“Dose máxima de vasopressor”, tem sido uma questão que tem variado a
depender dos estudos clínicos e das escolhas feitas pelos departamentos de
farmácia de diferentes hospitais. Veja-se por exemplo:
Claude Martins e col., em 2000, publicaram um estudo avaliando o
uso de norepinefrina no tratamento do choque séptico utilizando doses de até
5mcg/kg/min para os casos refratários a medidas de tratamento inicial. Embora o
estudo tenha limitações devido ao seu desenho aberto não randomizado e
observacional, o uso de norepinefrina como parte do manejo hemodinâmico se
mostrou favorável em pacientes com choque séptico, reduzindo a mortalidade, contradizendo
a noção que a norepinefrina potencializa a hipoperfusão de órgãos-alvo,
contribuindo para o aumento da mortalidade[27].
Beale R.J. e col., em 2004, numa revisão de uso de inotrópicos e
vasopressores no choque séptico, aponta que em muitos estudos a média de dose
máxima usada foi de 0.2-1.3mcg/kg/min, embora a dose inicial pode ser tão baixa
quanto 0,01mg/kg/min, e a mais alta dose de noradrenalina relatada tenha sido
de 5,0mg/kg/min, apontando que grandes doses do medicamento podem ser
necessárias em alguns pacientes com choque séptico, devido ao fenômeno de “down regulation” que ocorre sobre o
receptor adrenérgico na sepse[28].
Steven M. Hollenberg e col., em 2004, numa revisão de parâmetros
práticos para suporte hemodinâmico da sepse, recomenda dose máxima de
noradrenalina de 3mcg/kg/min[29].
Katsaragakis S. e col., em 2006, num estudo que avaliou a segurança,
eficácia e efeitos da administração de altas doses de norepinefrina (>
4mcg/kg/min) em choque séptico resistente à catecolaminas, encontrou que administração
de altas doses de norepinefrina resultou em uma taxa de sobrevida de 33,4%.,
concluindo que a administração de doses muito altas de norepinefrina é segura e
eficaz e pode melhorar a sobrevida desses pacientes com taxas de mortalidade
extremamente altas[30].
Daniel De Backer e col., em 2010, num estudo que comparou o uso de
dopamina e norepinefrina como agentes de primeira linha para o tratamento do
choque séptico, usaram como dose máxima convencional referencial para
norepinefrina 1.9mcg/kg/min.
Brown e col., em 2013, publica um estudo retrospectivo envolvendo
cinco hospitais norte-americanos entre 2005-2010 descrevendo pacientes que
necessitavam de altas doses de vasopressor (definido como> 1mcg/kg/min de
norepinefrina ou doses equivalentes de outros vasopressores). 443 pacientes
foram incluídos, dos quais 241 tiveram choque séptico. A mortalidade em 90 dias
foi alta em todo o grupo (83%), bem como o subgrupo com choque séptico (80%). A
necrose digital ou dos membros ocorreu em apenas 8% dos pacientes
sobreviventes. A dose de vasopressor correlacionou-se com o aumento da
mortalidade[31].
Donna Döpp-Zemel e col. em 2013, num estudo que avaliou tratamento
com altas doses de norepinefrina em pacientes críticos: determinantes de
mortalidade e futilidade, as doses máximas usadas em estudos clínicos para
tratamento do choque circulatório (independentemente do tipo e origem de
choque) aponta que as doses variam entre 0.2-5mcg /kg/min, sendo que dose
máxima tolerável não foi determinada, ainda que uma excessiva dosagem esteja
associada a um risco de vasoconstrição extrema, hipoperfusão tecidual e aumento
da mortalidade. Nesse sentido aponta, que muitos intensivistas não usam doses
superiores a 100mcg/min ou 1,2mcg/min. O estudo de Döpp-Zemel e col., foi
retrospectivo numa única UTI da Holanda entre 2007-2009 envolvendo 113 pacientes
tratados com doses de norepinefrina > 0,9mcg/kg/min. A mortalidade em 28
dias foi de 66%. Uma dose de
norepinefrina > 2,22mcg/kg/min foi associada com 100% de mortalidade,
mas o achado não foi estatisticamente significativo devido ao número muito baixo
de pacientes tratados com essa dose (n = 3).[32].
Sviri e col., em 2014, publicam um estudo retrospectivo de um único
centro israelense de pacientes que receberam vasopressores em uma UTI médica
entre 2008-2010. 166 pacientes que receberam norepinefrina ou epinefrina foram
incluídos, dos quais 51 receberam altas doses de vasopressores (definidos como >
40 mcg/min). A mortalidade intra-hospitalar entre todos os pacientes que
receberam qualquer dose de vasopressor foi extraordinariamente alta em 75%. A
dose de vasopressor foi bastante preditiva da morte. O uso de vasopressores em
altas doses foi associado a uma mortalidade hospitalar de 90%[33].
Martin e col., em 2015, publicaram um estudo retrospectivo em uma
única UTI francesa de pacientes com choque séptico admitidos em 2009-2013. A
mortalidade intra-hospitalar de todos os 324 pacientes com choque séptico foi
de 48%, o que é bastante alto. 84 pacientes (um quarto) receberam uma dose
máxima de norepinefrina > 1 mcg/kg/min, dos quais 90% morreram[34].
Auchet e col, em 2017, publicaram em estudo retrospectivo em uma
única UTI francesa de pacientes sépticos com necessidade de vasopressor>1mcg/kg/min
entre 2008-2013. 106 pacientes necessitaram dessa dose, perfazendo 15% de todos
os pacientes tratados por choque séptico. O tratamento mais comumente usado foi
a monoterapia com noradrenalina. Em média, vasopressor em altas doses foi
necessário por 84 horas. A mortalidade em 28 dias foi de 60%. Entre os
sobreviventes, a taxa máxima foi em média 2,3mcg/kg/min. A dose média de
norepinefrina foi bastante preditiva da morte (área sob a curva de 0,76). 6%
dos pacientes sofreram de necrose digital ou dos membros[35].
Hitoshi Yamamura e col., em 2018 publicaram um estudo para avaliar
os efeitos da dosagem de norepinefrina na mortalidade em pacientes com choque
séptico. Dividiram os pacientes em dois grupos de acordo com a dose de
norepinefrina administrada nos primeiros 7 dias: dose alta (≥ 416mcg/kg/semana)
e dose baixa (<416mcg/kg/semana). Encontraram que não houve diferença estatisticamente
significativa na mortalidade em 28 dias entre pacientes com choque séptico
tratado com dose alta de noradrenalina em comparação com aqueles tratados com
dose baixa de norepinefrina. Contudo, o número de dias sem ventilação no grupo
de dose baixa foi maior do que no grupo de dose alta[36].
Atualmente as referências mais usadas para adultos, apontam para uma
dose máxima convencional de noradrenalina de 3mcg/kg/min[37]
[38]
[39]
[40]
[41].
Embora os estudos acima mostrem
uma correlação entre altas doses e vasopressores e mortalidade, não está
completamente claro se isso poderia estar em relação com a maior gravidade da
doença, e não porque altas doses de vasopressores provoquem aumento de
mortalidade. No entanto, resta evidente que a necessidade de altas doses de vasopressores,
especialmente quando atinge as doses máximas adotadas, se correlaciona com alta
taxa de mortalidade. Embora a noção de “dose máxima de vasopressor” crie um
limite terapêutico acima do qual doses adicionais poderiam ser consideradas
fúteis, levando ao status de “irreversibilidade do choque”, o cut-off a ser
adotado para esse limite ainda não tem um valor universalmente aceito, podendo
chegar a um valor limite máximo de até 5mcg/kg/min. Valores limites máximos menores
poderiam ser adotados em razão de
evidencia de efeitos adversos como a necrose digital ou dos membros, taquiarritmias
graves etc.
Ainda, a adoção do critério de
doses altas ou máxima de vasopressor como critério de irreversibilidade ou
mesmo de futilidade ainda não é prática comum entre os médicos. Recentemente, em 30 de janeiro de 2019 foi
publicado um survey conduzido por Thomas W. L. Scheeren, J.L. Vincente, J.L.
Tebaul, e outros, abordando 17 perguntas sobre a prática de uso de
vasopressores no choque séptico. Diante da pergunta qual é o seu principal motivo para reduzir ou parar terapia com vasopressores?
apenas 3% dos entrevistados responderam que o motivo foi considerar o
tratamento vasopressor como fútil[42].
3. MIOCARDIODEPRESSÃO SEVERA.
A disfunção miocárdica é uma das
manifestações de maior relevância clínica na sepse e uma das disfunções
orgânicas mais precoces no choque séptico[43].
Por definição, consiste em reversível disfunção sistólica e/ou disfunção
diastólica do ventrículo esquerdo (VE) e/ou do ventrículo direito (VD)[44]
[45].
Como já mencionado anteriormente, segundo os ensinamentos de fisiologia de
Guyton, nos estágios finais do choque, a deterioração avançada tanto anatômica
quanto funcional do coração é provavelmente o fator mais importante para a
progressão letal final do choque. Algumas ferramentas de avaliação podem ajudar
a estimar a depressão miocárdica:
3.1 Ecocardiografia. A ecocardiografia é hoje uma valiosa
ferramenta usada a beira leito para avaliar disfunção miocárdica. Entretanto,
numa recente revisão do rol da ecocardiografia na avaliação da associação de
disfunção miocárdica e mortalidade na sepse publicada em 2018, Marcio da Silva Campista e col.,
encontraram que apesar da evidência de ocorrência de disfunção sistólica do VE
sua associação com mortalidade é controversa. Isto porque alguns estudos tem
mostrado que pacientes com menor Fração de Ejeção (FE) e dilatação aguda do
ventrículo esquerdo evidenciada por maior volume diastólico final (VDFVE),
tiveram maior chance de sobreviver e de recuperar sua função miocárdica no
curso do choque séptico que aqueles que mantiveram sua FE e VDFVE normais
durante todo o curso da doença até a
morte, demonstrando que disfunção aguda e reversível do ventrículo esquerdo não
foi associada com pior prognóstico. Por outro lado, disfunção diastólica do VE
e disfunção ventricular direita (VD) tem sido identificados como preditores
independentes de mortalidade em estudos mais recentes[46].
3.2 Saturação Venosa Central (SVc02) e Mista (SV02) de oxigênio.
A monitorização da saturação venosa mista de oxigênio (SVO2)
tem sido usada como forma de se avaliar o balanço entre oferta (D02) e consumo
de oxigênio (V02) a nível sistêmico e, também como um reflexo da função cardíaca.
Pela sua praticidade, a medida da Saturação
Venosa Central de oxigênio (SVcO2) tem sido proposta como alternativa para
ao uso da SV02. Estudos em terapia intensiva mostram que a SvcO2 é em média 4%
a 7% maior que a SvO2 e que há uma boa correlação entre elas[47]
[48]
[49].
Essa diferença no conteúdo venoso de oxigênio seria possivelmente explicada
pela mistura com o sangue drenado pela veia cava inferior, bem como aquele
advindo do seio coronariano e das veias tebesianas. Sabe-se que a taxa de
extração de oxigênio pelo miocárdio é bastante elevada e o sangue resultante
pode conter níveis de saturação da ordem de 30-40%. Alguns autores acreditam
que essa mistura com o sangue advindo do seio coronariano seja a provável
explicação para a diferença.
SVc02 <70% sinaliza uma incompatibilidade entre a oferta e
consumo de oxigênio na parte superior, e possivelmente até na parte inferior do
corpo humano. Se severa ou prolongada o suficiente, o fornecimento insuficiente
de oxigênio limitará a produção de energia aeróbica celular e causará disfunção
celular ou morte. Segundo este modelo, ScvO2 <70% tem sido associado com mau
prognóstico. Em 2001, o estudo do Rivers e col.
e sua terapia guiada por metas (Early
Goal Directed Therapy) mostrou que a reversão imediata de ScvO2 <70%
poderia reduzir a mortalidade intra-hospitalar de indivíduos com resposta
inflamatória sistêmica à infecção e hipotensão ou concentração de lactato sanguíneo
> 4 mmol /L. Mais recentemente, três
estudos não confirmaram os achados do Rivers (ARISE, PRoMISE e ProCESS), muito
embora exista um viés comparativo já que estes estudos, a diferença do estudo
do Rivers, incluíram muitos pacientes com SVc02 ≥ 70%. Numa análise retrospectiva
secundária dos dados do ALBIOS trial, a persistência de SVc02<70% de forma
persistente (6 horas ou mais) foi associada a uma maior mortalidade em 90 dias,
possivelmente porque reflete uma disfunção cardíaca provavelmente não
reconhecida e/ou não adequadamente tratada[50].
Entretanto, não apenas valores baixos
de SVc02 (<70%) tem sido associado a maior mortalidade, mas também valores
elevados, sendo que o valor de corte para definir “alta SV02” tem variado nos
estudos realizados.
Em 2010, Pope e col., publicaram um estuo avaliando os níveis de SVc02
foram estratificados em 3 grupos: hipóxia SVc02: <
70%); normóxia (SVc02: 71% a 89%); e hiperoxia (SVc02: 90% a 100%). Quando se
analisou o pior valor alcançado tanto taxa de mortalidade do grupo hipóxia e do
grupo hiperóxia, foram significativamente maiores que a do grupo normóxia, o
que permaneceu significativo em uma análise multivariada. Quando a medida
inicial de SVc02 foi analisada em um modelo multivariado, apenas a hiperóxia foi
significativamente maior[51].
Em 2011, Julien Textoris e col., num estudo restrospectivo
encontraram que níveis elevados de SVc02 (> 80%) durante as primeiras 72
horas de ressuscitação de pacientes com choque séptico estão associados ao
aumento da mortalidade[52].
No estudo de Sturm e col. publicado em 2017, pacientes cujos níveis
de SVc02 nunca ultrapassaram 70%, apresentaram maior taxa de mortalidade. No
terceiro dia, os pacientes com valores acima de 75% apresentaram também maiores
taxas de mortalidade. Uma taxa de mortalidade de 100% foi detectada se os
níveis de SVc02 excedessem 84%. Conclui que, atingir níveis de pelo menos 70%
nas primeiras 72 horas de doença é favorável em relação ao prognóstico, mas exceder
75% após o segundo dia está associado a maior mortalidade[53].
4. HIPERLACTATEMIA GRAVE E CLAREAMENTO DE LACTATO.
Em condições normais, o processo completo
de glicólise aeróbica (incluindo a fosforilação oxidativa mitocondrial
dependente da presença de 02), gera piruvato que entrando na mitocôndria segue o
Ciclo de Krebs que fornece energia para os processos metabólicos celulares na
forma de trifosfato de adenosina (ATP). Ao todo gera 38 moléculas de ATP, 2 na
fase citoplasmática anaeróbica e 36 na fase mitocondrial oxidativa. Em situações
de estresse fisiológico (exercício), o aumento da demanda de energia gera
aumento da glicólise levando a um aumento da produção de piruvato, parte do
qual se transforma em lactato, sem se tratar de qualquer processo patológico
(aumento de lactato apenas por aumento da glicólise aeróbica). No contexto do estresse
patológico, mais comumente decorrente da insuficiência circulatória associada a
hipoperfusão tissular, hiperlactatemia é resultado do aumento da glicólise anaeróbica.
Se a concentração do oxigênio dentro da célula e especificamente dentro da
mitocôndria for insuficiente para aceitar os H+ gerados durante a fase
citoplasmática da glicólise (fase anaeróbica comum da glicólise aeróbica e
anaeróbica) e do Ciclo de Krebs (NADH), estes H+ irão ser aceitos pelo piruvato
gerado naquela primeira fase, dando origem ao lactato (reação catalisada pela enzima
lactato desidrogenase), e obtendo apenas a formação das 2 moléculas de ATP da
fase citoplasmática da glicólise. Contudo, hiperlactatemia não reflete apenas falta
de oxigênio intracelular. Hiperlactatemia ocorre também quando a produção de
lactato excede a degradação do lactato. Várias condições patológicas podem
estar associadas. Por exemplo, em pacientes sépticos, aumento de catecolaminas
estimula a glicólise aeróbica. Além disso, drogas que prejudicam o processo de
fosforilação oxidativa na mitocôndria, como o propofol, metformina ou agentes
anti-retrovirais, podem aumentar a produção de lactato. Por outro lado,
diminuição da eliminação do lactato pode levar a hiperlactatemia. Assim, como o
fígado realiza até 70% de depuração de lactato, uma disfunção hepática importante
é outro mecanismo possível[54].
Assim, importante que ao avaliar hiperlactatemia sejam avaliados também outros
fatores não associados a hipoperfusão tissular que poderia representar “armadilhas”
na correta interpretação da hiperlactatemia[55].
Em indivíduos saudáveis, a
concentração de lactato no sangue é mantida dentro da faixa aproximada de
0,5-1,5 mmol/L[56]. O
exercício representa um processo fisiológico no qual este equilíbrio é
temporariamente interrompido devido ao rápido aumento na produção de lactato
pelas células musculares. Em exercício severo, o lactato sanguíneo pode subir
para níveis superiores a 20 mmol/L, mas devido à capacidade de eliminação
rápida do lactato, na saúde este aumento é apenas transitório[57].
Em pacientes críticos, considera-se valores normais ≤ 2mmol/L[58].
Diversas classificações da
hiperlactatemia podem ser encontradas na literatura para expressar sua
severidade. Assim, considera-se leve quando os níveis estão entre 2 – 4mmol/L;
moderada quando > 4mmol/L. O cut-off acima do qual define-se hiperlactatemia
grave ou severa tem variado na literatura encontrando valores de 5mm/L, 6mm/L e
10 mmol/L, sendo este último ponto de corte o mais utilizado pelo seu forte
impacto na elevada mortalidade[59]
[60]
[61].
Ainda, classifica-se também a hiperlactatemia de forma análoga a acidose
láctica em: tipo A (associada a hipoperfusão tecidual) e tipo B (não associada
a perfusão tecidual)[62].
A associação entre
hiperlactatemia decorrente de hipoperfusão tecidual (tipo A) e mortalidade foi
descrita há muito tempo. Broder e Weil em 1964 observaram que em pacientes com
choque, um nível de lactato > 4 mmol/L foi associado a uma mortalidade de
50%[63].
Peretz et al. publicaram em 1965, estudo que mostrou uma taxa de mortalidade de
100% quando os níveis de lactato excederam 13,3 mmol/L (120 mg/ dl)[64].
Nesse contexto de perfusão ou
oxigenação tecidual reduzida, hiperlactatemia
severa ou grave, definida como lactato arterial > 10mmol/L, tem sido
associada a alta taxa de mortalidade.
Em 2010, Nichol e col., em seu
estudo observacional prospectivo com 7.155 pacientes graves consecutivos
avaliando hiperlactatemia relativa (intervalo normal associado a mortalidade),
observaram que hiperlactatemia severa esteve associada com altas taxas de
mortalidade hospitalar, principalmente dentro da UTI[65].
Em 2015, Sebastian A. Haas e col.,
num estudo retrospectivo observacional em 11 UTIs, encontrou que
hiperlactatemia grave está associada com mortalidade extremamente alta na UTI
(96.6%) quando associada a falha no clareamento dentro de 12 h. Concluem que em
tais situações, o benefício da continuação da terapia na UTI deve ser
reavaliado[66]. Em 2017, Mireia Ferreruela e col., encontraram
uma associação de 75% entre hiperlactatemia grave e mortalidade[67].
Nas estratégias de ressuscitação,
Clareamento de Lactato (CL), entendido
como % de redução do valor inicial (lactato inicial - lactato
subsequente/lactato inicial X 100%) dentro de um tempo determinado, sem chegar à normalização, também tem
sido associado como marcador de mortalidade. Zhongheng Zhang e col., numa metanálise de 2014, demonstraram que o
clareamento de lactato é preditivo de menor mortalidade em pacientes críticos,
embora cut-off de CL tenham variado nos diferentes estudos. A maioria dos
estudos definiu CL como a redução nos níveis séricos de lactato dentro de 6
horas. Cinco estudos utilizaram 24 horas como o período de tempo para definir
CL. Contudo, a magnitude da redução variou entre os estudos, encontrando-se
metas de 10% a 50%[68].
Em 2016, J.L. Vincent e col., numa
metanálise de 96 estudos clínicos, mostraram que uma diminuição nos níveis de
lactato foi associada a melhores desfechos em quase todos os subgrupos de
doentes graves pacientes, reconhecendo assim a predição universal poder de
níveis de lactato, concluindo que medições cada 1-2 h daria dados clinicamente
relevantes sobre a diminuição dos níveis de lactato.[69]
Em 2018, Masyuk M. et.al., num estudo
retrospectivo encontraram que um baixo CL (definido com ≤ 19%) após 24 horas foi
robustamente associado a aumento da mortalidade a curto e longo prazo[70].
Por outro lado, Tempo de Clareamento de Lactato (TCL)
entendido como o tempo para normalização
dos níveis séricos de lactato arterial (100% de CL), também tem se
associado com mortalidade em pacientes críticos[71].
Em 1993, Abramson e col., demonstraram
que a incapacidade de normalizar o lactato sérico arterial no período de 24
horas após trauma correlaciona-se com aumento da mortalidade[72].
Em 1996, Bakker J. e col., relataram
que a incapacidade dos pacientes de retornar o lactato aos valores normais dentro
de 48 horas da internação na unidade de terapia intensiva (UTI) poderia ser
usado como um preditor confiável do desfecho em pacientes críticos[73].
Em 2001, John McNelis e col., num
estudo retrospectivo de pacientes internados em UTI cirúrgica para
ressuscitação, tendo como objetivo a normalização do lactato arterial,
observaram que pacientes que não atingiram um nível normal de lactato mantendo
hiperlactatemia prolongada apresentaram de mortalidade hospitalar de 100%.
Aqueles que normalizaram entre 48 e 96 horas tiveram uma taxa de mortalidade de
42,5%. Os pacientes que normalizaram em 24 a 48 horas tiveram uma taxa de
mortalidade de 13,3%, e aqueles que normalizaram em menos de 24 horas tiveram
uma taxa de mortalidade de 3,9%[74].
As diretrizes da Campanha de
Sobrevivência a Sepse 2016 (SSC, Surviving
Sepsis Campaign), com base na revisão de 5 ensaios controlados e 2
metanálises, sugerem como meta de reanimação, a normalização do lactato em pacientes
sépticos com hiperlactatmia, mas não estabelecem meta de TCL[75].
5. ACIDOSE EXTREMA
A saúde exige que o pH do sangue
seja mantido dentro de limites estreitos (7,35-7,45). A acidose (ou seja, pH
<7,35) é uma característica comum de muitas condições agudas/críticas que
cursam com choque e que justificam a admissão em terapia intensiva. Embora
existam muitos estudos sobre anormalidades ácido-base em pacientes críticos, os
dados focados especificamente na acidose metabólica severa (pH <7,20) são
escassos. O pH <6.8 é comumente relatado em textos médicos como incompatível
com a vida, mas há raros relatos de casos individuais de sobrevivência sem
nenhum efeito a longo prazo, apesar de um pH sanguíneo abaixo desse nível.
Em 2015, H S Kiran e col., publicaram um estudo prospectivo
observacional, realizado em pacientes críticos com acidose metabólica grave (pH
<7,20). Um total de 100 pacientes graves (APACHE II 18 ou mais) com acidose
metabólica grave (pH <7,20) foram estudados. Dos 100 pacientes com acidose
metabólica grave (pH <7,20), 70 pacientes morreram comparados a 30 pacientes
que receberam alta hospitalar em condição estável. Dos 86 pacientes que tiveram
acidose láctica, 69 (80,2%) pacientes morreram em comparação com 17 (19,8%) pacientes
que receberam alta em condição estável. Um elevado anion gap foi encontrado em
69 pacientes, dos quais 47 (68,1%) pacientes tiveram um resultado adverso. Um
déficit de base mais alto foi associado a mortalidade (79,4% em comparação com
20,6%). Este estudo mostra uma maior
mortalidade em pacientes gravemente doentes com acidose metabólica grave.
Acidose láctica e maior déficit de base está associado a maior mortalidade[76].
Allyn J, Vandroux D, Jabot J e col., em 2016 publicaram um estudo
retrospectivo em que investigaram as taxas de mortalidade entre pacientes de
terapia intensiva que apresentam acidose extrema, que os autores
arbitrariamente definiram como pH <7,00. Este estudo retrospectivo foi
conduzido em uma unidade de terapia intensiva clínica/cirúrgica de 23 leitos
adultos de um hospital francês, onde durante um período de estudo de 30 meses,
2156 pacientes foram internados. Destes 2156 pacientes, 77 (3,6%) apresentaram
pH <7,0 (mediana de pH 6,94, intervalo 6,86-6,97). Estes eram pacientes muito
graves; com o valor admissional do SAPSD mediano de 82 (variação 69-93) que se
traduz em uma mortalidade prevista na faixa de 75-90%. A causa da acidose extrema foi identificada
em praticamente todos os casos e na maioria (86%), foi a acidose láctica
(lactato sérico> 4,0 mmol / L). Dos 77 pacientes, 30 (39%) sofreram parada
cardíaca (PCR) antes da admissão em terapia intensiva. A mortalidade por esse
grupo foi particularmente alta (90%); apenas três pacientes sobreviveram (para
esses três pacientes, a parada cardíaca ocorreu na presença de equipe
médica).No geral, 52 dos 77 pacientes morreram (taxa de mortalidade de 67,5%),
mas na ausência de parada cardíaca, a taxa de mortalidade (57%) foi muito menor
do que o previsto pelo escore SAPS na admissão. O estudo demonstrou que a
acidose extrema é uma ocorrência relativamente rara com muitas causas
possíveis, embora seja quase sempre uma acidose metabólica (láctica). A parada
cardíaca é um evento comum associado. Os resultados do estudo sugerem que a
sobrevivência após acidose extrema depende em grande parte da causa da acidose
e de sua associação com PCR[77].
6. MOTTLING
Mottling, representa um sinal clínico de fácil avaliação, é
definido como a descoloração irregular da pele (azulada ou arroxeada) em forma
de rede ou malha, que geralmente começa em torno dos joelhos, mas não se limita
a eles. É devido à vasoconstrição heterogênea de pequenos vasos associada a
microperfusão tecidual, sendo então visto como um sinal de choque. Mais de 40
anos atrás, Vic-Dupont et al. descreveram padrões clínicos de pacientes com
choque séptico e observou manchas frequentes os joelhos (65%)[78].
A tradução do termo no SSC de 2012 (versão portuguesa) tem sido de
“mosqueamento”[79].
Sistemas de tradução também se referem ao termo como “mancha mosqueada”[80]
Mottling
Mottling tem sido um termo especificamente
associado a hipoperfusão tecidual associada à sepse e ao choque séptico.
Entretanto, a rigor, seria uma forma de “livedo reticularis” (LR) sinal que
abrange um universo maior de patologias. Para explicar o “padrão de livedo” em
termos fisiológicos, Renault (1883) e posteriormente Unna (1896) e Spalteholz
(1927), postularam que a vasculatura cutânea consiste em uma série de cones de
1 a 3 cm, com o ápice de cada cone profundamente na derme no local de uma
arteríola ascendente. Eles propuseram que, nas margens de cada cone, a
densidade do leito arterial é diminuída, mas o plexo venoso superficial é mais
proeminente. Mais recentemente, cuidadosa observação clínica, incluindo o uso
de microscopia capilar e gravações de temperatura da pele, apoiaram essa visão
da microanatomia vascular cutânea. Assumindo este modelo, qualquer processo
fisiológico ou patológico que impeça o fluxo sanguíneo para a pele poderia
produzir uma proporção aumentada de hemoglobina desoxigenada e, assim, resultar
em coloração lívida proeminente nas áreas predominantemente venosas nas margens
dos cones. Muitos processos podem resultar em diminuição do fluxo sanguíneo e
podem potencialmente produzir LR, dentre elas a sepse[81].
Sepse é uma condição que leva à
hipoperfusão tecidual e à lesão de múltiplos órgãos. A redução da perfusão
tecidual é devida principalmente a anormalidades microcirculatórias detectáveis
no início da sepse. A gravidade e a persistência dessas anormalidades
microvasculares estão intimamente correlacionadas com o prognóstico do
paciente. Durante o choque séptico, a microscopia identificou alterações na
microcirculação em animais e humanos, com perfusão heterogênea dentro de cada
órgão. Espectroscopia com luz infra-vermelha (NIRS) a nivel labial, por
exemplo, demonstrou ser preditiva de mortalidade em pacientes com choque
séptico, independentemente dos parâmetros hemodinâmicos sistêmicos. Mottling,
reflete a redução do fluxo sanguíneo da pele e baixa saturação de oxigênio
tecidual e tem sido sugerida como uma ferramenta para avaliação clínica da
perfusão tecidual em pacientes com infecção grave. Entretanto, o mecanismo
responsável pela redução regional específica do fluxo sanguíneo na área da pele
mosqueada (joelhos) permanece desconhecido assim como o fato de não se
apresentar em todos os pacientes graves ou que vão a óbito. A obstrução capilar
direta pela agregação plaquetária e ativação da cascata da coagulação tem sido
sugerida como mecanismo responsável pela hipoperfusão da pele e documentada em
pacientes com meningococcemia. No entanto, na ausência de coagulação
intravascular difusa, o conceito amplamente aceito é a vasoconstrição mediada
pela principal neuroativação simpática[82].
A associação entre mottling e
mortalidade no choque séptico, há muito tempo vem sendo estudada.
H. Ait-Oufella e col., em 2012, publicaram um estudo unicentrico, observacional,
prospectivo entre fevereiro e agosto de 2009, que incluiu 60 pacientes com
choque séptico, após ressuscitação inicial, estudando o valor preditivo da
extensão do mottling (6 horas após a admissão na UTI) e mortalidade. Para
tanto, criou um Escore (Mottlin Score), com 5 graus, tomando como base a
extensão circundante de área mosqueada ao redor do joelho:
1. Escore Grau 0: sem
mosqueamento;
2. Escore Grau 1: uma pequena área mosqueada
(tamanho de uma moeda) localizado no centro do joelho;
3. Escore Grau 2: uma área
mosqueada que não exceda a borda superior da rótula;
4. Escore Grau 3: uma área
mosqueada que não excede o meio da coxa;
5. Escore Grau 4: uma área
mosqueada que não vai além da dobra da virilha;
6. Escore Grau 5: uma área
mosqueada extremamente grave que vai além da dobra da virilha
Neste estudo, mottling esteve
presente em 42 dos 60 pacientes no momento da admissão na UTI (70%) e em 36
pacientes às 6horas pós admissão na UTI (60%). A taxa de mortalidade em 14 dias
dos pacientes que 6 horas após admissão na UTI tinham mottling grau 0 -1 foi de
13%; 2 -3 de 70% e 4 -5 de 92%. Ainda, pacientes com mottling 4 a 5 morreram
principalmente no 1º dia, enquanto os pacientes com escore de 2 a 3 faleceram
no dia 2 e no dia 3 após a admissão na UTI[83].
Coudroy e col., em 2015, publicam estudo que avaliou 791 pacientes
criticamente doentes, analisando apenas a presença ou ausência de mottling em
pacientes críticos, mas não usou o mottling score. Incidência de mottling foi
de 29% (230 de 791 pacientes) em geral, e 49% (32 de 65 pacientes) no subgrupo
de pacientes admitidos com choque séptico. Mottling esteve presente no dia da
admissão em 65% dos pacientes e persistiu mais de 6 h em 59% dos casos. Na UTI
a mortalidade foi de 8% em pacientes sem mottling, 30% em pacientes com
mottling e 40% em pacientes com mottling persistente[84].
Edmilson Bastos de Moura e col., em 2016, publicaram estudo em que
reproduziram o do H. Ait-Oufella em 97 pacientes com choque séptico usando o
mottling score e avaliando a associação com mortalidade em 28 dias, com a
diferença que o escore foi estimado no dia do início do choque séptico, logo
após a ressuscitação inicial. Mottling ocorreu em 39,2% dos pacientes (38/97).
A mortalidade de 28 dias foi de 45,0% (36/80) para mottling 0 -1, 76,9% (10/13)
para mottling grau 2 -3 e 100,0% (4/4) para mottling grau 4 – 5. O caso dos
pacientes com mottling 4 – 5 o óbito ocorreu dentro dos 5 primeiros dias[85].
H. Ait-Oufella e col., em 2017, considerando que a infusão de
vasopressor representaria um potencial
fator de confusão porque, no contexto de infecções graves, a norepinefrina pode
piorar a hipoperfusão da pele, aumentando a vasoconstrição dos pequenos vasos,
publica um estudo prospectivo em que analisar o valor preditivo do escore de mottling
para mortalidade em 28 dias em pacientes selecionados na UTI admitidos com
sepse sem receber terapia de infusão de vasopressor durante os primeiros 24 horas
de admissão. Este foi um estudo monocêntrico, prospectivo, observacional
durante um período de 8 meses em uma UTI de 18 leitos em um hospital terciário.
O estudo incluiu 152 pacientes internados na UTI mas 43 pacientes foram
excluídos porque receberam terapia de infusão de vasopressor durante as
primeiras 24 horas. Finalmente, 109 pacientes foram analisados. A taxa de mortalidade
no dia 28 foi de 11%. Na sexta hora pós admissão, 25 pacientes (24%) tinha mottling
ao redor da área do joelho. Mortalidade
no dia 28 de acordo com a mottling após 6 horas aumentou de 7% [0-1] para 25% [2-3]
e 66% [4-5][86].
Em 2018, três publicações abordam o assunto. Romain Jouffroy e col.,
publicam um estudo em que avaliam associação entre motling e tempo de
reenchimento capilar e mortalidade no choque séptico desde o cenário
pré-hospitalar. Após o ajuste para fatores de confusão utilizando escore de
propensão, o risco relativo de morte foi 6,58 para Escore de Mottling > 2 e
2,03 para TEC > 4 seg[87].
Miriam Sanderson e col., numa
análise exploratória de fatores associados com mortalidade em 30 dias de
pacientes com sepse, encontrou que presença de mottling é um fator de forte
associação (OR =4.50; AdjOR= 3.80; IC 95%= 1.06–13.55 p=0.04). Arnaud Ferraris e col., compararam escore
de mottling escore e a temperatura da pele no choque séptico usando termografia
infravermelha e correlacionado com a sobrevida. O estudo de tipo prospectivo, observacional
incluiu 46 pacientes. A temperatura da pele medida com a tecnologia de
termografia por infravermelhos em torno do joelho foi menor quando o mottling
estava presente. No entanto, nem mottling, nem temperatura da pele do joelho foram
associadas com prognóstico em relação à mortalidade em 28 dias.
Em que pese a ainda ser
necessário estudos mais consistentes que avaliem a associação entre mottling e
mortalidade, parece razoável a associação entre alta mortalidade e alto grau de
mottling.
7. HIPOGLICEMIA TARDIA
Sabe-se que em pacientes
portadores de doenças agudas graves, ocorre geralmente hiperglicemia de estresse. Hiperglicemia de estresse é a elevação
da glicose na presença de doenças agudas, sendo um fenômeno frequente em
pacientes internados. Estudos apontam que hiperglicemia de estresse ocorre em
38% dos pacientes admitidos em hospital, dos quais 1/3 não tinha história de
diabetes prévia à admissão. Os fatores que contribuem para hiperglicemia nestes
pacientes incluem a liberação de hormônios de estresse (epinefrina, glucagon,
GH e cortisol), o uso de medicações, como corticoides e catecolaminas, e a
liberação de citoquinas inflamatórias, como nos casos de sepse ou trauma
cirúrgico decorrente do processo de choque em que inicialmente evoluiu com hiperglicemia
não associada a controle glicêmico intensivo ou outras causas tratáveis. Todas
as condições acima citadas inibem a liberação e a ação da insulina, e,
portanto, aumentam a gliconeogênese. As soluções intravenosas de glicose também
colaboram, assim como os elevados níveis circulantes de ácidos graxos livres
que inibem a ativação do receptor de insulina. A hiperglicemia em UTI se
mostrou associada a desfechos adversos nos pacientes sem diagnóstico prévio de
diabetes, quando comparados àqueles sabidamente diabéticos[88].
Hipoglicemia precoce, como manifestação inicial de sepse tem sido também
documentada com bastante menor frequência. Miller e col., descreveram 9 casos
de hipoglicemia (glicemia média de 22 mg / dl) foi associada a sepse
avassaladora. Estado mental alterado,
acidose metabólica, leucopenia, coagulopatia e bacteremia foram características
comuns nesses casos. Em quatro pacientes, nenhuma causa de hipoglicemia a não
ser sepse estava esteve presente. Em cinco pacientes, outra possível causa
metabólica de hipoglicemia estava presente (alcoolismo em quatro e
insuficiência renal em um) embora nenhum tenha sido observado como
hipoglicêmico em hospitalizações anteriores. Streptococcus pneumoniae (três
casos) e Hemophilus influenzae, tipo b, (dois casos) foram os patógenos mais
comuns, e a mortalidade geral foi de 67%. O (s) mecanismo (s) para hipoglicemia
com sepse não está bem definido. Depleção de estoques de glicogênio,
gliconeogênese prejudicada e aumento a utilização de glicose periférica pode
ser um fator contribuinte. Incubação de bactérias em sangue fresco à
temperatura ambiente não aumenta a taxa normal de degradação da glicose,
sugerindo que a hipoglicemia ocorre in vivo. Em animais de experimentação, injeção de bactérias gram-negativas ou endotoxina regularmente resulta no desenvolvimento de hipoglicemia. A inibição
da gliconeogênese é considerada principalmente responsável, embora a endotoxina
também contribui diretamente para o esgotamento do glicogênio hepático. A relação entre infecção por gram-positivos
e hipoglicemia tem sido menos explicada. Em um modelo de infecção
pneumocócica, observou-se hipoglicemia em coelhos que tinham alto grau de
bacteremia, hipotermia e acidose láctica. Em contraste, glicemia foi normal em
animais que morreram sem essas caraterísticas. Vários outros fatores
metabólicos podem contribuir à hipoglicemia associada à sepse. Hipotensão e
diminuição da perfusão tecidual periférica com mudança para metabolismo
anaeróbio, requer 18 vezes mais glicose para produzir a mesma quantidade de
energia (ATP) que o metabolismo aeróbico. Aumento da utilização periférica de
glicose aparece ser o principal mecanismo de hipoglicemia em neonatos com
bacteremia. A acidose metabólica tem sido demonstrada que prejudica a
gliconeogênese. Hipoglicemia foi observada em três pacientes com acidose
láctica comprovada, dois dos quais também tinham sepse. Algumas ter sugerido
que o consumo de glicose por bactérias pode ser responsável para a hipoglicemia
na sepse. Isso parece ser improvável, com base em estudos in vitro em que a
adição de bactérias em amostras de sangue não provocou redução significativa do
nível de glicose.[89]
[90]
Ao que parece, portanto, casos de hipoglicemia associada a sepse de relaciona
mais com infecção por bactérias gram negativas e endotoxemia.
Entretanto, hipoglicemia tardia, como sinal de fase final do choque, caracterizando
o estagio de choque descompensado ou de choque irreversível tem sido pouco
documentada na literatura. Afastadas causas não infecciosas (insulinomas,
insuficiência adrenal, etc) a as iatrogênicas (como por exemplo hipoglicemia de
corrente de controle glicêmico intensivo) hipoglicemia tardia se constitui num
sinal que se associa a fase final do choque. Estudos experimentais em animais
têm estudado a sequência de eventos, induzidos pela administração de
endotoxinas por uma via que simule um foco de infecção que permita baixa
absorção de toxina. As endotoxinas comprometem o metabolismo dos carboidratos,
lipídeos e proteínas. As alterações mais conhecidas estão relacionadas ao
metabolismo dos carboidratos. Ao serem injetadas doses de endotoxinas capazes
de determinar choque serão observadas rápida
hiperglicemia e mais tarde hipoglicemia. O resultado é uma acentuada
diminuição nas reservas de hidrato de carbono. Este mecanismo é explicado da
seguinte maneira: as endotoxinas atuam como falsos mensageiros para ativarem as
enzimas responsáveis pela glicogenólise hepática detectando-se, então, a
hiperglicemia inicial. A hipoglicemia secundária é devida ao consumo das
reservas de hidratos de carbono, aumento no metabolismo da glicose e diminuição
na sua síntese. Tanto a glicogenogênese como a gliconeogênese não se processam
porque as endotoxinas inibem a conversão de glicose em glicogênio hepático e a
indução através dos glicocorticóides endógenos necessários para a síntese das
enzimas gliconeogênicas[91].
Derek S. Wheeler e Rajit K. Basu, na sua interessante revisão sobre
a fisiopatologia do choque em pacientes pediátricos aponta a hipoglicemia como
um sinal que, no processo de evolução do choque, caracteriza o estágio
descompensado e irreversível[92].
PROPOSTA DE
CLASSIFICAÇÃO MODIFICADA
Com base nos conhecimentos de
fisiologia expostos, entendo que o choque refratário seria uma forma de choque
progressivo mais ainda potencialmente reversível. Nesse entendimento propõe-se
uma classificação evolutiva incluindo o choque refratário dentro da categoria
do choque progressivo.
1. Choque Não
Progressivo
2. Choque Progressivo
2.1 Não Refratário
(com doses leves a moderadas de noradrenalina)
2.2 Refratário (com
doses altas de noradrenalina)
3. Choque
Irreversível.
CONCLUSÃO
Em que pese aos avanços nos
conhecimentos fisiopatológicos do choque e os inúmeros estudos sobre o assunto,
ainda não encontramos nos consensos e diretrizes publicadas uma definição clara
com base em critérios objetivos consensuais do que seria o choque refratário e
o choque irreversível.
Entretanto, não há como negar a existência
de fatores associados com elevada mortalidade, que juntos poderiam servir de referência
para definir com certa objetividade o estágio de irreversibilidade, como
apontado, por exemplo, por Donna Döpp-Zemel e AB Johan Groeneveld no seu estudo
de 2013: “uma alta dose de noradrenalina
pareceu fútil (100% de mortalidade) se associada a um escore APACHE II maior
que 40, um nível de bicarbonato inferior a 9,0 mEq/L, ou uma epinefrina dose de
≥ 0,25mcg/kg/min no momento da
admissão[93].
Sabe-se que não poucas vezes a resposta
à pergunta de “quando parar de tratar” fica sujeita ao subjetivismo da
definição de quando o estágio do paciente se tornou irreversível, gerando
muitas vezes divergências de opinião entre médicos, pelo medo de estar deixando
de se fazer algum tratamento que ainda poderia ser feito. Costuma-se falar que
a decisão de futilidade é “técnica”, mas não se estabelecem os critérios técnicos
para embasar essa decisão.
A definição clara e mais objetiva
de irreversibilidade, a traves de parâmetros relacionados com mortalidade de
100% ou próxima de 100% daria, a meu ver, a base técnica para definir o estado
de fim de vida, fornecendo ao médico o devido sustento para determinar o limiar
entre utilidade e futilidade terapêutica sem necessariamente o paciente estar
em cuidados paliativos previamente definidos. Consubstanciaria assim um
sustento técnico para a indicação de cuidados paliativos estritos por decisão apenas
do médico.
Daria, por derradeiro, também
elementos de segurança para uma abordagem da própria paliatividade, nas
situações em que previamente ela não foi estabelecida mesmo que proporcionalmente.
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