sábado, 30 de janeiro de 2021

        EXAMES DE ROTINA VERSUS POR DEMANDA NA UTI  

                            PARTE I: RADIOGRAFIAS


Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos. Coordenador da Residência em Medicina Intensiva – COREME e membro do Grupo Técnico de Enfrentamento à COVID -19 da Santa Casa de São Jose dos Campos.



Exames de rotina diária para pacientes internados dentro da UTI é uma prática bastante comum dentro da maioria das unidade do Brasil, principalmente radiografias e exames laboratoriais.

Há muito tempo que o assunto vem sendo estudado e debatido sob a denominação de “controvérsia entre exames de rotina diária versus exames por demanda (apenas por indicação específica)”.

Neste cenário importante tecer alguns esclarecimentos a respeito dessas solicitações:

1. EXAMES DE ROTINA DIÁRIA. O conceito se aplica aos pedidos feitos diariamente sem haver qualquer indicação para tanto. Trata-se de pedidos diariamente repetitivos sem avaliar antes a sua real necessidade, caso a caso. Nesse contexto, o pedido é feito apenas “para ver como está determinado parâmetro laboratorial ou radiológico do paciente todos os dias”, sem a existência de qualquer distúrbio ou alteração mesmo que suspeita. Exemplo: hemograma, sódio, potássio, cálcio, magnésio diariamente. Radiografia de tórax para todos os intubados, “apenas pelo fato de estarem intubados” também é uma prática frequente.

2. EXAMES POR DEMANDA. Neste caso os pedidos de exames laboratoriais e/ou radiológicos são feitos sempre com base em alguma indicação clínica (diagnóstico e monitorização de alguma patologia) ou para verificar os resultado de alguma medida ou procedimento realizado na UTI. Neste cenário, tem havido certa confusão entre certas “rotinas” adotadas no pedido de exames com o conceito de “exames de rotina diária”. Uma prática costumeira ou obrigatória de pedido de exame após alguma intervenção não deixa de ser uma “rotina”, mas sempre obedecerá a uma indicação precisa e não a um mero pedido repetitivo.  Assim, por exemplo, admitir a possibilidade de solicitar uma bateria de exames laboratoriais para todo paciente admitido na UTI denomina-se de “rotina laboratorial admissional”. Entretanto, essa “rotina admissional” não se confunde com a denominada “rotina diária laboratorial”, toda vez que no primeiro caso existe uma indicação precisa, qual seja, avaliar o estado em que o paciente é admitido na UTI, tentando diagnosticar ou avaliar suas disfunções orgânicas ou mesmo para avaliar os escores prognósticos como SOFA (paciente com sepse) ou SAPS 3 (avaliar mortalidade prevista). Da mesma forma, uma gasometria arterial feita 1 hora após a intubação ou ajuste de modo/parâmetros ventilatórios, não deixa de ser uma “rotina”, mas com indicação precisa guiada por diretrizes ou guidelines. Já no caso da rotina laboratorial diária os pedidos são feitos de forma diária e meramente repetitiva sem avaliar antes a sua necessidade real caso a caso. Da mesma forma com os exames radiológicos. Solicitar uma radiografia de tórax após a passagem de um tubo endotraqueal, de um cateter venoso profundo ou de um dreno de tórax; ou uma radiografia de abdome após a passagem de uma sonda gástrica ou enteral, são denominados de “radiografias de rotina pós passagem de dispositivo”. Entretanto, todas elas, mesmo se constituindo uma “rotina” não se confundem com a mera prática de “rotina de radiografia de tórax” feito a todos paciente apenas e unicamente pelo fato de estar intubados.

EXAMES RADIOLÓGICOS

No tocantes a exames de radiografia na UTI, feitos à beira leito com aparelho portátil, a rotina diária tem se concentrado no pedido de radiografia diária de tórax, uma prática bastante antiga[1]. Atualmente essa prática tem sido desencorajada recomendando-se seu abandono, não apenas em razão das evidências existentes e recomendações internacionais, mas também em razão da redução de custos desnecessários e menor exposição a radiação por parte de pacientes e profissionais da saúde.

A esse respeito, há muitos anos vários estudos vem debatendo sua necessidade e a referência internacional adotada como guia tem sido o Colégio Americano de Radiologia (ACR - American College of Radiology) que periodicamente revisa sua diretrizes ou orientações sobre os critérios apropriados de solicitação de exames de imagem sob a denominação de “Appropriateness-Criteria”[2]. No brasil, o Colégio Brasileiro de Radiologia tem também adotado os critérios da ACR, embora não tenha acompanhado as atualizações dessa entidade americana[3].

Até 2011 o painel de especialistas do Colégio Americano de Radiologia (ACR) recomendava como “conduta mais apropriada” a realização de radiografia de tórax no leito de forma diária para pacientes com problemas cardiopulmonares agudos e para pacientes que estavam sob ventilação mecânica. Em pacientes estáveis internados para monitoramento cardíaco ou em pacientes estáveis internados apenas por doença extratorácica, uma radiografia inicial na internação era recomendada, com radiografias de controle obtidas somente para indicações cardiopulmonares específicas[4] [5] [6]. Em 2005, o Colégio Brasileiro de Radiologia (CBR) já havia aderido a essa recomendação e até a presente data não se atualizou conforme publicações no seu portal oficial[7]. Vários estudos, no entanto, incluindo ensaios clínicos, vinham já questionado essa prática, advogando pelo pedido de exames por demanda.

Em 2009, Hejblum e col., publicam um grande estudo prospectivo multicêntrico em que avaliam a eficiência e eficácia da rotina diária versus por indicação clínica (sob demanda) de radiografias de tórax para pacientes ventilados mecanicamente na UTI em um projeto randomizado de cluster de dois períodos. No primeiro período, 11 UTIs foram alocadas aleatoriamente para usar a estratégia de radiografias de tórax diárias e 10 UTIs para usar uma estratégia sob demanda, baseada em indicações clínicas específicas. 424 pacientes tiveram 4.607 radiografias diárias de tórax e 425 pacientes tiveram 3.148 radiografias de tórax sob demanda, o que significou estatisticamente uma redução significativa de 32% no uso de radiografias de tórax sem uma redução na qualidade do atendimento ou segurança dos pacientes[8].

Em 2010, Yuji Oba e Tareq Zaza, publicaram uma metanálise de 8 estudos (02 ensaios randomizados) com um total de 7078 pacientes adultos internados em UTI, examinando se o abandono da rotina diária de radiografia de tórax afetaria adversamente os resultados, como mortalidade e tempo de permanência. Concluíram que a radiografia de tórax de rotina diária sistemática, mas não seletiva por demanda, poderia provavelmente ser abandonada sem aumentar desfechos em pacientes adultos em UTIs[9]. Ele não incluíram, entretanto, o estudo de Hejblum e col.

Em 2011, em resposta a evidências emergentes, o Colégio Americano de Radiologia (ACR) mudou sua orientação passando a recomendar que radiografias de tórax diárias de rotina não sejam indicadas para pacientes com problemas cardiopulmonares agudos. Ainda para pacientes estáveis admitidos para monitoramento cardíaco, ou pacientes internados estáveis apenas por doença extratorácica, radiografia inicial de admissão na UTI não seria recomendada e finalmente, radiografias de acompanhamento deveriam ser obtidas apenas com indicações clínicas"[10].

Em 2012, Ganapathy A. e col., publicam uma outra metanálise de 9 estudos (03 ensaios randomizados incluindo o estudo de Hejblum e col.) comparando uma rotina diária de radiografia de tórax vs sob demanda (ou seja, para indicação clínica específica). O estudo demonstrou que a realização de radiografias apenas quando clinicamente indicado não afetou adversamente a mortalidade hospitalar, tempo de internação na UTI, ou duração de ventilação mecânica[11].

Em 2013, o Colégio Americano de Radiologia (ACR), com base nos estudos até então publicados reafirma suas recomendações para solicitações de radiografias de tórax em pacientes internados na UTI[12]:

·         Ao monitorar um paciente estável ou em ventilação mecânica na UTI, uma radiografia portátil de tórax é apropriada apenas seguindo indicações clínicas.

·         É apropriado obter uma radiografia de tórax após a colocação de um tubo endotraqueal, linha venosa central, Cateter de Swan-Ganz, tubos endotraqueais, drenos de tórax e sonda nasogástricas ou enterais.

Em 2014, o Grupo Colaborativo formado pela American Thoracic Society/American Association of Critical-Care Nurses/American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine Policy Statement, publicam a Declaração da política de medicamentos para cuidados intensivos: The Choosing Wisely® Top 5, cuja primeira Recomendação assim orienta[13]

1. Não solicite testes de diagnóstico em intervalos regulares (como todos os dias), mas sim em resposta a questões clínicas específicas.

Muitos estudos de diagnóstico (incluindo radiografias de tórax, gasometria arterial, análises e contagens de sangue e ECGs) são solicitados regularmente intervalos (por exemplo, diariamente). Comparado com a prática de solicitar testes apenas para ajudar a responder a questões clínicas, ou quando isso afetará gestão, a solicitação rotineira de exames aumenta os custos de saúde, não beneficia os pacientes e pode de fato prejudicá-los. Potenciais danos incluem anemia devido a flebotomia desnecessária, que pode exigir uma transfusão arriscada e cara, e a investigação agressiva de resultados incidentais e não patológicos encontrados em estudos de rotina.

De lá para cá novos estudos tem sido publicados reafirmando a necessidade do abandono da prática de realização de rotinas diárias de radiografia de tórax[14] [15] [16] [17].

A última versão de 2020 dos Critérios Apropriados do Colégio Americano de Radiologia (ACR), traz uma atualização das suas recomendações mantendo as orientações já consolidadas em 2011. Estabelece diretrizes para solicitar exames de imagem inicial para pacientes da UTI, baseado em 5 cenários ou situações, excluindo, portanto, a possibilidade que tais exames sejam solicitados sem uma indicação precisa[18]:


DEFINIÇÃO DE EXAME INICIAL DE IMAGEM

Exame inicial de imagem (procedimento de ultrassonografia, radiografia, tomografia etc.) é definido como a imagem no início de um atendimento dentro da condição médica definida pelo cenário ou situação. Mais de um procedimento poderão ser considerados “geralmente adequados” quando:

·         Existam procedimentos que sejam alternativas equivalentes (apenas um procedimento será solicitado para fornecer as informações destinadas gerenciar com eficácia o atendimento ao paciente) OU;

·         Existam procedimentos complementares (ou seja, mais de um procedimento é solicitado como um conjunto ou simultaneamente em que cada procedimento fornece informações exclusivas e diferentes para gerenciar com eficácia o cuidado do paciente).

As possibilidades de recomendação são fornecidas de acordo coma seguinte classificação[19]:

·         Usualmente apropriada: Os benefícios superam os riscos. O procedimento de imagem ou tratamento é indicado nos cenários clínicos.

·         Categoria Intermediária: Descreve cenários em que a relação risco/benefício é ambígua, pouco clara ou questionável.

Pode ser apropriado: O procedimento de imagem ou tratamento pode ser indicado nos cenários clínicos especificados, como alternativa a procedimentos de imagem ou tratamentos que tem uma relação risco-benefício mais favorável.

Pode ser apropriado (discordância): As avaliações individuais estão muito dispersas da mediana do painel de especialistas.

·         Usualmente não apropriado: Os riscos superam os benefícios. O procedimento de imagem ou tratamento é improvável de ser indicado no cenário clínico especificado.

 

 

CENÁRIO 1: Admissão ou transferência para unidade de terapia intensiva. Exame de imagem inicial.

1.       Radiografia de tórax portátil: usualmente apropriada. A estratégia de solicitar radiografias de tórax de rotina diária para pacientes em estado crítico e ventilados mecanicamente está mudando lentamente de radiografias de tórax diárias para radiografias sob demanda apenas.

2.       Ultrassonografia de Tórax (POCUS): pode ser apropriada (discordâncias).

CENÁRIO 2: Paciente estável da unidade de terapia intensiva. Nenhuma mudança no estado clínico. Exame de imagem inicial.

1.       Radiografia de tórax portátil: Pode ser apropriado (discordância).

2.       Ultrassonografia de Tórax (POCUS): usualmente não apropriada.

CENÁRIO 3: Paciente da unidade de terapia intensiva com piora clínica. Exame de imagem inicial.

1.       Radiografia de tórax portátil: usualmente apropriada.

2.       Ultrassonografia de Tórax (POCUS): pode ser apropriada (discordâncias).

CENÁRIO 4: Paciente da unidade de terapia intensiva após a colocação do dispositivo de suporte. Exame de imagem inicial.

1.       Radiografia de tórax portátil: usualmente apropriada.

2.       Ultrassonografia de Tórax (POCUS): pode ser apropriada (discordâncias).

CENÁRIO 5: Paciente da unidade de terapia intensiva. Após a remoção do tubo torácico ou do tubo mediastinal. Exame de imagem inicial.

1.       Radiografia de tórax portátil: Pode ser apropriado (discordância).

2.       Ultrassonografia de Tórax (POCUS): usualmente não apropriada.

 

CONCLUSÃO

A literatura atualizada assim como as recomendações internacionais de referencia vem consolidando o entendimento que a prática de “rotina diária de exames radiográficos na UTI” sem qualquer indicação clinica diagnóstica, de monitorização ou para avaliar procedimentos invasivos no tórax, deve ser abandonada, dando lugar à solicitação de exames de imagem, principalmente radiografias de tórax por demanda, dentro de cenários nos quais se estabeleça uma indicação clara, evitando assim, uma desnecessária exposição a radiação por parte de pacientes e profissionais da saúde e o dispêndio de gastos e recursos humanos que poderiam ser utilizados para melhorar a qualidade do atendimento dentro da UTI.

Menos ainda, no atual contexto de pandemia entro das unidades de terapia intensiva destinadas exclusivamente a pacientes portadores de Covid-19, em que não bastasse a necessidade de paramentação rigorosa dos técnicos em radiologia, obriga a muitas vezes quebrar as barreiras de isolamento (quando o exame for realizado em quartos com pressão negativa) e expõe desnecessariamente todos os profissionais de saúde à contaminação e/ou infecção pelo SARS-CoV-2.


[1] Trotman-Dickenson B: Radiology in the intensive care unit (Part I). J Intensive Care Med 2003, 18:198-210.

[2] https://www.acr.org/Clinical-Resources/ACR-Appropriateness-Criteria

[3] https://cbr.org.br/publicacoes-digitais/

[4] Expert Panel on Thoracic Imaging of the American College of Radiology: Routine Chest Radiograph Appropriatenes Criteria. 2008.

[5] American College of Radiology: Routine daily portable X-ray.[http://www.acr.org/].

[6] American College of Radiology . ACR Appropriateness Criteria. Routine Chest Radiograph. http://www.acr.org/SecondaryMainMenu Categories/quality_safety/app_criteria/pdf/ ExpertPanelonThoracicImaging/Routine ChestRadiographDoc7.aspx .

[7] https://cbr.org.br/publicacoes-digitais/

[8] Hejblum G, Chalumeau-Lemoine L, Ioos V, et al. Comparison of routine and on-demand prescription of chest radiographs in mechanically ventilated adults: a multicentre, cluster-randomised, two-period crossover study. Lancet 2009;374:1687-93.

[9] Oba Y, Zaza T. Abandoning daily routine chest radiography in the intensive care unit: meta-analysis. Radiology 2010;255:386-95.

[10] American College of Radiology ACR Appropriateness Criteria. Review 2011. https://formsus.datasus.gov.br/novoimgarq/19051/3230788_218117.pdf

[11] Ganapathy A, Adhikari NK, Spiegelman J, Scales DC. Routine chest x-rays in intensive care units: a systematic review and meta-analysis. Crit Care. 2012;16(2):R68. doi:10.1186/cc11321

[12] ACR Appropriateness Criteria Routine Chest Radiographs in Intensive Care Unit Patients. J Am Coll Radiol. 2013 Mar;10(3):170-4. doi: 10.1016/j.jacr.2012.11.013.

[13] Halpern SD, Becker D, Curtis JR, et al; Choosing Wisely Taskforce; American Thoracic Society; American Association of Critical-Care Nurses; Society of Critical Care Medicine. An oficial American Thoracic Society/American Association of Critical-Care Nurses/American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine policy statement: the Choosing Wisely Top 5 List in Critical Care Medicine. Am J Respir Crit Care Med. 2014;190 (7):818-826. doi:10.1164/rccm.201407-1317ST

[14] Abdullah Al Shahrani and Khaled Al-Surimi. Daily routine versus on-demand chest radiograph policy and practice in adult ICU patients- clinicians’ perspective. BMC Medical Imaging (2018) 18:4

[15] Trumbo SP, IamsWT, Limper HM, et al. Deimplementation of routine chest x-rays in adult intensive care units. J HospMed. 2019;14(2):83-89. doi:10.12788/jhm.3129

[16] Jinel Scott, et.al., Restricting Daily Chest Radiography in the Intensive Care Unit: Implementing Evidence-Based Medicine to Decrease Utilization. J Am Coll Radiol. 2020 Jul 9 doi: 10.1016/j.jacr.2020.05.035 [Epub ahead of print]

[17] Maley JH, Stevens JP. Low-Value Diagnostic Imaging in the Intensive Care Unit: A Teachable Moment. JAMA Intern Med. 2020 Oct 1;180(10):1368-1369. doi: 10.1001/jamainternmed.2020.2681. PMID: 32730564.

[19] https://www.acr.org/-/media/ACR/Files/Appropriateness-Criteria/RatingRoundInfo.pdf




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