domingo, 22 de julho de 2018

 “PRESSÃO ARTERIAL MÉDIA (PAM) OU PRESSÃO DE PERFUSÃO TECIDUAL (PPT) PARA MONITORIZAR A PERFUSÃO NO CHOQUE?

Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Intensivista. Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.


A ressuscitação no choque séptico visa restaurar a pressão de perfusão tecidual (PPT) evitando-se uma vasoconstrição excessiva (decorrente da ação das catecolaminas endógenas e exógenas), que impeça o fluxo e, paradoxalmente, agrave a própria perfusão tecidual ou leve a outros eventos adversos. Um dos mecanismos de compensação do choque resulta da "redistribuição de fluxo sanguíneo" desviando o fluxo sanguíneo da pele, rins, circulação esplâncnica e esplênica em direção do coração (circulação coronariana) e cérebro (circulação cerebral). Ainda, a adesão a uma terapia guiada por metas levará ao uso de catecolaminas exógenas (dopamina, noradrenalina, adrenalina etc) que aumentarão a vasoconstrição e com isso o risco de reações adversas ou ações não desejadas decorrentes das próprias drogas vasopressoras[1].


Do ponto de vista fisiológico, pressão arterial sistólica (PS) e a pressão diastólica (PD) são estimadas batimento a batimento cardíaco correspondendo a primeira ao pico da onda de pulso arterial e a segunda ao vale da mesma. A Pressão Arterial Média (PAM) é a média das pressões arteriais registradas durante um certo intervalo de tempo. Ela não é igual à média entre as pressões sistólica e diastólica porque, nas frequências cardíacas normais, maior fração do ciclo cardíaco é usada na diástole do que na sístole; assim, a pressão arterial permanece mais próxima à diastólica que à sistólica durante a maior parte do ciclo cardíaco. Portanto, a pressão diastólica determina cerca de 60% da pressão arterial média, e a pressão sistólica 40%. Porém, nas frequências cardíacas muito altas, a diástole abrange fração menor do ciclo cardíaco, e a pressão arterial média se aproxima mais da média das pressões sistólica e diastólica[2].

A pressão arterial média (PAM) tem sido o principal determinante da perfusão dos órgãos (com valores em pacientes sadios que oscilam aproximadamente entre 82 a 102mmHg) toda vez que a pressão venosa central (PVC), em indivíduos também sadios é próxima de zero (0 a 6mmHg com média de 2 - 3mmHg), equiparando a PAM à Pressão de Perfusão Tecidual (PPT = PAM – PVC). Desta forma, a manutenção de um nível adequado de PAM propicia, em geral, uma adequada perfusão orgânica[3].

Discute-se, no entanto, qual o nível de PAM que se deve manter em pessoas doentes, especialmente aqueles com quadros de choque. Nos pacientes com choque séptico, tanto o Surviving Sepsis Campaign (SSC) quanto as diretrizes da European Society of Intensive Care Medicine (ESICM) sugerem manter uma PAM ≥ 65 mmHg e individualizar essa meta com base na presença de comorbidades e nos valores basais ou pré-morbidos.

Alvos de PAM em pacientes críticos tem variado entre 60 a 90mmHg em diferentes estudos[4]. Entretanto, a meta atual de PAM de 65 mmHg é baseada principalmente nos resultados de dois estudos retrospectivos que investigaram leituras sequenciais do PAM durante as primeiras 24 a 48 h de manejo de pacientes com choque séptico. Ambos os estudos mostraram uma correlação entre os limiares de PAM e sobrevida e disfunção orgânica. Melhores resultados foram vistos com uma PAM entre 60 e 65 mmHg. Não houve benefício de sobrevida com limites de PAM mais altos[5] [6].

Recentemente, dois ensaios prospectivos randomizados controlados, SEPSISPAM e OVATION, compararam alta versus baixa meta de PAM e chances de sobrevida em pacientes com choque séptico. No SEPSISPAM, os pacientes foram inscritos dentro de 6 horas de iniciação do tratamento com drogas vasoativas. Em OVATION, pacientes foram recrutados até 24 h após o diagnóstico de choque séptico. Os valores-alvo eram 80-85 vs. 65-70 e 75 a 80 vs. 60-65 mmHg para a alta vs. baixa PAM no SEPSISPAM e OVATION, respectivamente. Não houve diferença significativa na sobrevida entre os grupos de tratamento no dia 28. No entanto, ambos os ensaios tiveram uma taxa de mortalidade nos grupos controle menor que o esperado, e os pacientes do grupo alvo PAM mais baixo atingiram PAMs mais elevados do que planejado de acordo com o protocolo do estudo[7] [8]. Maheshwari et al. relataram recentemente os resultados de um estudo retrospectivo de 8782 pacientes admitidos em 110 hospitais dos EUA que estudaram a associação entre PAM e lesão renal e miocárdicas agudas, assim como a mortalidade hospitalar em pacientes com choque séptico. Para tanto escolheram alvos de 55, 65, 75 e 85 mmHg. Os principais resultados foram que exposição abaixo de 65 mmHg estava diretamente relacionado à maior o risco de mortalidade, lesão renal e miocárdica aguda. Entretanto alguns vieses têm sido apontados nesse estudo[9].

Recentes estudos têm sugerido que a pressão de perfusão tecidual (PPT) pode servir como um melhor marcador de pressão de perfusão, sendo calculada com base na diferença da PAM – PVC.

Embora a PVC como marcador estático, não tenha valor para avaliar fluidoresponsividade, sua aferição é importante para estimar a Pressão de Perfusão Tecidual (PPT) pela diferença entre a PAM e a PVC, especialmente em casos de hipotensão severa que cursam com elevada PVC. Além disso, uma PVC alta pode ser um bom indicador de disfunção ventricular direita e marcador de gravidade da doença cardiovascular[10] [11]. Importante lembrar que as mesmas diretrizes que sugerem alvo de PAM para o manejo do choque séptico sugerem de alvo de PVC de 8 a 12mmHg o que certamente reduziria o valor da PPT em situações nas quais nos conformarmos com PAM de 65mmHg (menor valor aceito como alvo) e PVC de 12mmHg (maior valor aceito como alvo). Nesse caso teremos uma PPT de 53mmHg. Ainda, valores maiores de PVC (15, 20, 25mmHg) acarretarão ainda uma maior queda da PPT com uma PAM aparentemente “satisfatória”.

A PVC corresponde à pressão do átrio direito (PAD) e seu valor normal em pessoas ventilando espontaneamente é cerca de 0 mmHg semelhante à pressão atmosférica ao redor do corpo (valor de “0” convenciona-se chamar quando corresponde ao valor da pressão atmosférica). Entretanto, em situações consideradas fisiológicas ou normais, a pressão do átrio durante o ciclo cardíaco não é constante ou fixa, podendo oscilar nas diferentes fases da diástole e da sístole do ciclo cardíaco e com as mudanças de posição do corpo. Ainda também em condições normais os valores de pressão são influenciados pelas pressões do ciclo respiratório (interação coração-pulmão). Assim, os valores do átrio direito (e, por conseguinte da PVC) oscilam entre -3 a -5 (pressão pleural) até +6 mmHg[12].
Alvo de PVC, não significa valor normal de PVC, mas alvo de terapia para doentes, isto é, a meta estabelecida em algoritmos de ressuscitação volêmica incluindo o usado por Rivers et al. em seu estudo sobre terapia precoce guiada por metas e os grandes ensaios subsequentes que surgiram para avaliar esta estratégia (ProCESS, ARISE, ProMISe). No estudo de Boyd et al., em pacientes com choque séptico, uma PVC menor que 8 mmHg nas primeiras 12 h foi associada com melhor sobrevida, mas não nos dias 1-4. Valores alvo de PVC de 8-12 mmHg tornaram-se quase "padrão" após o estudo de Rivers et al., que determinou que a priori, estes valores representam um alvo razoável, já que a maioria dos pacientes responde a fluidos quando a PVC é menor de 8 mmHg e apenas uma minoria quando esta é maior que 12 mmHg. No entanto, o uso desses valores de PVC para guia de administração de fluidos está longe de ser perfeito e deve ser aplicado apenas quando preditores mais precisos de fluidoresponsividade não estiverem ao alcance. No entanto, tornam-se perigosos valores mais elevados de PVC através da reposição de fluidos já que muitos pacientes ficariam expostos aos efeitos prejudiciais dos fluidos, mesmo que ainda sejam fluidoresponsivos. Assim, em pacientes estabilizados, nenhuma tentativa deve ser feita para aumentar a PVC para valores-alvo específicos. Em um recente estudo, o risco de morte aumentou no grupo liberal em comparação com o grupo conservador quando a PVC basal estava entre 0 e 10 mmHg, sugerindo um efeito prejudicial da administração de fluidos para atingir um alvo específico quando a reposição não se fazia mais necessária[13].

Uma PVC elevada leva a consequente aumento da pressão retrógrada, provocando impacto negativo na função renal, principalmente devido a congestão renal e aumento da pressão intra-renal, resultando em queda na taxa de filtração glomerular (TFG). Valores maiores de PVC tornam-se, portanto, deletérias[14] [15] [16] [17].

Recentes estudos, tem apontado o uso da PPT como melhor marcador de perfusão, considerando os efeitos de um eventual aumento da PVC na função renal.

Panwar et.al., em 2013 estudaram 51 pacientes sem trauma, com idade ≥ 40 anos, com disfunção de ≥2 órgãos e necessidade de vasopressor ≥4 horas. Avaliou o Déficit médio de PPT [(PPT basal - PPT atingido) / PPT basal] e o e % de tempo que o paciente permaneceu com déficit de PPT >20% durante as primeiras 72 horas de uso de vasopressor para cada paciente com a ocorrência de Lesão Renal Aguda nova ou progressiva. O déficit médio de PPT foi de 18%, e os pacientes estiveram durante o 48% do tempo com déficit de PPT > 20%. Lesão Renal Aguda (LRA) ocorreu mais frequentemente em pacientes com mais alto (> mediana) déficit de PPT comparado a pacientes com déficit de PPT mais baixo (56% vs. 28%). A Incidência de LRA subsequente também foi maior entre os pacientes que permaneceram mais tempo com déficit de PPT > 20%. O estudo, entretanto, sofre as limitações do desenho longitudinal observacional monocentrico. A forma do cálculo dos valores basais de PAM e PVC também podem representar um fator de viés.

Wong et.al. em 2015 estudaram se alterações nos valores da pressão de perfusão média (PPT) pré-mórbidos de repouso podem contribuir para a progressão da lesão renal aguda séptica (LRA). Assim estudaram pacientes com choque séptico, objetivando investigar a associação de alterações de valores pré-mórbidos com gravidade e progressão da LRA. Foram obtidos valores de PPT, PAM e PVC em repouso (basais, pré-morbidos), e depois registraram-se dados da admissão na UTI durante 2 horas nas primeiras 24 horas para calcular déficits hemodinâmicos. Foram registradas as medições de creatinina de 4 horas até 96 horas. Foi feita uma análise da associação de variáveis ​​hemodinâmicas com a progressão da LRA por regressão logística multivariada. O déficit médio do PAM foi semelhante nos pacientes sem LRA grave. O déficit mediano de PPT foi 29% em pacientes com LRA grave e 24% naqueles sem; uma diferença determinada por maiores níveis de PVC. A PVC foi independentemente associada a piora da LRA. Concluem que a incidência de LRA grave é maior em pacientes com maior déficit de PPT e com PVC mais elevada. Essas descobertas sugerem um possível papel da congestão venosa na LRA séptica[18].

Ostermann et.al., em 2017 estudaram se a pressão de perfusão tissular média (PPT) tinha associação com o risco de progressão de LRA- AKIN I para LRA-AKIN III em pacientes críticos. Realizou um estudo retrospectivo de pacientes adultos internados na UTI que desenvolveram LRA e nos quais a monitorização hemodinâmica se iniciou-se dentro das 12h do diagnóstico de LRA-AKIN I. Dividiu-se os pacientes com PTT acima e abaixo do valor da mediana. Análises de regressão logística multivariada foram realizadas para identificar fatores de risco independente de progressão para AKIN III, visando analisar o impacto da PAM e a PVC separadamente, e o impacto da PPT na progressão da LRA. A mediana da PPT foi de 59 mmHg. Pacientes AKIN I com uma PPT ≤ 59 mmHg tiveram um risco significativamente maior de progredir para estágio III da LRA. Esta associação foi mais forte em pacientes com cardiopatia isquêmica, insuficiência cardíaca congestiva sem hipertensão pré-existente e em pacientes com PAM <65 mmHg por > 1 h. Como componentes individuais, PVC elevada foi independentemente associada à progressão para o estágio III da LRA, mas a PAM sozinha não foi um fator de risco independente para progressão da LRA. Conclui que PPT <60 mmHg foi independentemente associada à progressão da LRA e que a PVC foi um componente chave nessa progressão. Entretanto, o estudo tem todas as limitações de um desenho retrospectivo com uma população de pacientes heterogêneos. Ainda, o desenho do estudo não foi intervencionista e a associação entre PPT e a progressão de LRA não prova uma relação causal[19].

De forma concordante, Lui G. Forni e Michael Joannidis em 2017, após análise das evidencias existentes comentam alguns resultados interessantes sugerem que a PAM pode não ser adequada na LRA. Em pacientes com progressão da LRA, maiores déficits observados na pressão média de perfusão, perfusão arterial diastólica e pressão de perfusão diastólica foram observadas[20].

Entretanto, se valores de PPT como alvo de ressuscitação são melhores que os de PAM ainda precisa ser melhor definido. Aumentar a PPT, elevando a PAM, ou reduzindo a PVC poderia diminuir o risco de progressão para LRA é uma conclusão que ainda precisa ser avaliada em estudos futuros. Até que mais dados estejam disponíveis, a recomendação atual de uma PAM alvo de 65 mmHg para manejo do choque em pacientes críticos deve ser visto com cautela.



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[20] Lui G. Forni e Michael Joannidis. Blood pressure deficits in acute kidney injury: not all about the mean arterial pressure?. Forni and Joannidis Critical Care (2017) 21:102. DOI 10.1186/s13054-017-1683-4

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