sexta-feira, 27 de julho de 2018

INFECÇÃO DO TRATO URINÁRIO ASSOCIADA A CATETER VESICAL (ITU-AC) EM PACIENTES GRAVES/CRÍTICOS DA UTI. 

Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Intensivista. Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.

I. INTRODUÇÃO

Infecções do trato urinário (ITUs) são o quarto tipo mais comum de infecção relacionada à assistência à saúde (IRAS), com estimativa de 93.300 ITUs em hospitais de doenças agudas em 2011, representando mais de 12% das infecções relatadas nesses nosocômios. Praticamente todas as infecções do trato urinário associadas à assistência à saúde são causadas pela instrumentação do trato urinário. Aproximadamente 12% - 16% dos pacientes internados em hospitais de adultos serão submetidas a cateterização vesical de demora (sondagem vesical) em algum momento durante sua internação e, a cada dia que o cateter urinário permanecer, o paciente terá um aumento de 3% a 7% no risco de adquirir uma infecção do trato urinário associada a cateter vesical (ITU-AC). A ITU-AC pode levar a complicações como prostatite, epididimite e orquite em homens e cistite, pielonefrite, bacteremia por gram-negativos, endocardite, osteomielite vertebral, artrite séptica, endoftalmite e meningite nos pacientes em geral. As complicações associadas a ITU-AC causam desconforto ao paciente, permanência hospitalar prolongada e aumento de custo e mortalidade. Estima-se que, a cada ano, mais de 13.000 mortes estejam associadas a infecções do trato urinário[1].

O diagnóstico clínico precoce, associado aos exames complementares (qualitativo e quantitativo de urina e urocultura), fornece evidências para uma adequada terapêutica, apesar que casos de bacteriúria assintomática e candidúria podem induzir a tratamentos desnecessários. Além disso, a terapêutica deverá ser fundamentada nas taxas de prevalência das infecções urinárias locais e nos protocolos elaborados em conjunto com a equipe assistencial, Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH), Comissão de Farmácia e Terapêutica (CFT) e Laboratório de Microbiologia; e ajustada aos resultados de culturas. A associação de hemoculturas em casos selecionados trará informações adicionais, especialmente, em pacientes hospitalizados com sepse de foco urinário (20%). Deverá ser sempre considerada como hipótese diagnóstica em pacientes com febre sem foco aparente. A problemática continua quando muitos pacientes permanecerão com o dispositivo além do necessário, apesar das complicações infecciosas (locais e sistêmicas) e não infecciosas (desconforto para o paciente, restrição da mobilidade, traumas uretrais por tração), inclusive custos hospitalares e prejuízos ao sistema de saúde público e privado. Entende-se que o tempo de permanência da cateterização vesical é o fator crucial para colonização e infecção (bacteriana e fúngica). A infecção poderá ser intraluminal ou extraluminal (biofilme), sendo esta última a mais comum. O fenômeno essencial para determinar a virulência bacteriana é a adesão ao epitélio urinário, colonização intestinal, perineal e cateter. O crescimento bacteriano inicia-se após a instalação do cateter, numa proporção de 5-10% ao dia, e estará presente em 100% dos pacientes em aproximadamente 4 semanas. O potencial risco para ITU associado ao cateter intermitente é inferior, sendo de 3,1% e quando na ausência de cateter vesical de 1,4%. Os pacientes acometidos pela afecção são de ambos os sexos, dependentes de doenças clínicas/cirúrgicas e relacionadas à unidade de internação[2].

Conforme outra referência, a ITU-AC é a principal causa de infecções hospitalares, com uma incidência em torno de 1,4–1,7/1000 cateteres/dia em pacientes em enfermarias médicas e cirúrgicas, mas é frequentemente sub-diagnosticada em pacientes criticamente enfermos, apesar do uso de dispositivos em torno de 45% a 79% nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) versus 17% a 23% nas enfermarias. Aproximadamente 66% dos pacientes têm cateterização em toda UTI por tempo prolongado (>30 dias). A ITU-AC é a segunda causa mais comum de infecção da corrente sanguínea nosocomial, com cerca de 15% - 25% mortalidade. Bacteriúria em pacientes cateterizados por período curto de tempo (2 a 10 dias) ocorre em torno de 25%, dentre os quais apenas 25% desenvolverá sintomas da ITU e cerca de 3% a 4% destes desenvolvem bacteremia. O risco de bacteriúria e candidúria aumenta em 3% –7% / dia pode chegar até 100% no dia 30. A ITU-AC também leva ao uso excessivo de recursos de serviços de saúde[3].

Diante do cenário acima descrito, chama a atenção que inexistam critérios específicos para realizar o diagnóstico de ITU-AC em pacientes graves/críticos internados nas Unidade de Terapia Intensiva, considerando se tratar de uma população especial de pacientes com dificuldade para manifestar sinais e sintomas, possuir baixa imunidade, múltiplas comorbidades, disfunções multiorgânicas, e múltiplos dispositivos e procedimentos invasivos.

II. CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS GERAIS PARA ITU-AC

Os critérios diagnósticos mais utilizados no Brasil, para o diagnóstico da ITU-AC vem:

1. Das Diretrizes da Sociedade Americana de Doenças Infecciosas (IDSA) para diagnóstico, prevenção e tratamento de ITU -AC, publicadas em 2010[4].

2. Das definições de Vigilância do Centro Americano de Controle de Prevenção de Doenças (CDC) da Rede Nacional de Segurança da Saúde (NHSN) atualizadas em janeiro de 2018[5].

3. Dos critérios constam do Manual de Critérios Diagnósticos de Infecção Relacionada à Assistência à Saúde da Agência Nacional de Vigilância Sanitária-Anvisa 2017[6].

A seguir apresentamos os critérios de cada uma dessas organizações:

1. Critérios do IDSA[7] (2010):

1.1. ITU-AC em pacientes com cateterismo uretral, suprapúbico ou cateterização vesical intermitente: é definido pela presença de sintomas ou sinais compatíveis com ITU sem outra fonte identificada de infecção juntamente com crescimento de ≥10³ UFC/mL de ≥ 1 espécie bacteriana em urocultura de amostra simples de urina de paciente sondado ou de jato médio de um paciente cujo cateter uretral, suprapúbico ou uropen  foi removido até 48 horas antes (A-III).
i. Os dados são insuficientes para recomendar um cut-off quantitativo específico de contagem de colônias para a definição de UTI-AC em homens sintomáticos quando as amostras são coletadas pelo uropen.

1.2. Bacteriúria Assintomática Associada a Cateter Vesical (BAS-AC): não deve ser rastreada, exceto em estudos de pesquisa avaliando intervenções destinadas a reduzir a incidência de BAS-AC ou ITU-AC (A-III) e em algumas situações especiais, como mulheres grávidas (A-III).
i. BAS-AC em pacientes com cateterismo uretral, suprapúbico ou cateterização vesical intermitente: é definida pela presença de ≥ 10⁵ UFC/mL de 1 espécie bacteriana em urocultura de amostra simples em paciente sem sintomas compatíveis com ITU (A-III).
ii. BAS-AC em um homem com uropen: é definida pela presença de ≥ 10⁵ UFC/mL de ≥ 1 espécie bacteriana em urocultura de amostra simples obtida por uropen recém colocado, em paciente sem sintomas compatíveis com ITU (A-III).

1.3. Sinais e sintomas compatíveis com ITU-AC incluem: início novo ou piora da febre, rigidez, alteração do estado mental, mal-estar ou letargia sem outra causa identificada; dor no flanco; sensibilidade do ângulo costovertebral; hematúria aguda; desconforto pélvico; e naqueles cujos cateteres foram removidos, disúria, micção urgente ou frequente, ou dor suprapúbica ou sensibilidade (A-III).
i. Em pacientes com lesão medular, aumento da espasticidade, disreflexia autonômica, ou sensação de desconforto também são compatíveis com ITU-AC (A-III).

1.4. No paciente cateterizado, piúria[8] não é diagnóstico de BAS-AC ou de ITU-AC (AII).
i. A presença, ausência ou grau de piúria não deveria ser usada para diferenciar BAS-AC de ITU-AC (A-II).
ii. Piúria que acompanha o BAS-AC não deve ser interpretada como indicação para tratamento antimicrobiano (A-II).
iii. A ausência de piúria em um paciente sintomático sugere um diagnóstico diferente de ITU-AC (A-III).

1.5. No paciente cateterizado, a presença ou ausência de odor ou urina turva isoladas não deve ser usada para diferenciar BAS-AC da ITU-AC ou como uma indicação para urocultura ou terapia antimicrobiana (A-III).

2. Critérios de Vigilância do CDC/NHSN[9] (janeiro 2018)

2.1 ITU Relacionada à Assistência à Saúde Associada a Cateter vesical. (ITU-AC): Qualquer infecção sintomática de trato urinário em paciente em uso de cateter vesical de demora instalado por um período maior que dois dias calendários (sendo que o D1 é o dia da instalação do cateter) e que na data da infecção o paciente estava com o cateter instalado ou este havia sido removido no dia anterior.

O paciente deve atender TODOS os critérios abaixo:

a). O paciente tinha um cateter vesical permanente que estava em vigor por > 2 dias na data do evento E:
* Estava presente em parte do dia do calendário na data do evento OU
* Foi removido no dia anterior à data do evento

b). O paciente tem pelo menos UM dos seguintes sinais ou sintomas:
* Febre (> 38,0°C): para utilizar febre num paciente com idade > 65 anos, o cateter vesical de demora deve estar em funcionamento > 2 dias corridos na data do evento.
* Sensibilidade suprapúbica
* Dor ou sensibilidade no ângulo costovertebral
* Urgência urinária
* Frequência urinária
* Disúria

c). O paciente tem uma cultura de urina com não mais do que duas espécies de organismos identificados, um dos quais pelo menos é uma bactéria de ≥ 10⁵ UFC / mL. Todos os elementos dos critérios de ITU devem ocorrer durante o Período de Janela de Infecção (PJI)[10].

Comentários:

- “flora mista” representa pelo menos duas espécies de organismos. Portanto, um organismo adicional recuperado da mesma cultura representaria > 2 espécies de microorganismos. Tal espécime adicional também não pode ser usado para atender aos critérios da UTI.

- Os seguintes organismos excluídos não podem ser usados ​​para atender à definição de ITU:
              *Espécie de Cândida ou levedura não especificada
              *Mofo[11]
              *Fungos dimórficos ou parasitas

Entretanto, uma amostra de urina aceitável pode incluir esses organismos, desde que uma bactéria ≥ 10⁵ UFC / mL também esteja presente. Além disso, esses organismos não bacterianos identificados a partir do sangue não podem ser considerados secundários a uma ITU, uma vez que são excluídos como organismos na definição de ITU.

- A sensibilidade suprapúbica, quer seja provocada pela palpação (sinal de sensibilidade) ou fornecida como uma queixa subjetiva de dor suprapúbica (sintoma dor), quando documentada no prontuário médico é aceitável como parte do critério ITU.

- Dor abdominal baixa ou desconforto pélvico ou na bexiga são exemplos de sintomas que podem ser usados ​​como critério de sensibilidade suprapúbica. A “dor abdominal” generalizada no prontuário médico não deve ser interpretada como sensibilidade suprapúbica, pois há muitas causas de dor abdominal e esse sintoma é muito genérico.

- Dor lombar esquerda ou direita ou dor no flanco são exemplos de sintomas que podem ser usados ​​como dor ou sensibilidade no ângulo costovertebral. A "dor lombar" generalizada não deve ser interpretada como dor ou sensibilidade no ângulo costovertebral.

- Febre e hipotermia são sintomas inespecíficos de infecção e não podem ser excluídos da determinação de ITU em razão de ser atribuída a outra causa reconhecida.

3. Critérios da ANVISA[12] (Brasil): ITU-RAS[13] ASSOCIADA A CATETER VESICAL DE DEMORA (ITU- AC) Paciente com ITU-RAS e que apresenta os seguintes critérios:

3.1. Apresenta pelo menos UM dos seguintes sinais e sintomas (sinais/sintomas e resultados de cultura positiva ocorrem no período de janela de infecção), sem outras causas reconhecidas:
                   *Febre (Temperatura: >38ºC);
                   *Dor suprapúbica ou lombar.

3.2. E, possui cultura de urina positiva com até duas espécies microbianas (acima de duas espécies microbianas, há grande possibilidade de ter ocorrido contaminação da amostra. com ≥ 10⁵ UFC/mL. No caso de Cândida spp, considerar qualquer crescimento.

Considerações importantes:

1. Infecções urinárias em pacientes que usam cateter duplo J são consideradas não associadas a cateter vesical.
2. Infecções relacionadas a procedimentos urológicos cirúrgicos são consideradas infecções de sítio cirúrgico.
3. Foi retirado o critério de “infecção assintomática” por ser atualmente considerado bacteriúria assintomática. O achado de bactérias no trato urinário não significa obrigatoriamente infecção e deve ser descartada essa notificação se não houver clínica de infecção, a menos que se trate de idoso.
4. Idosos podem ter sintomas atípicos como alterações cognitivas, letargia, anorexia e outros sintomas generalizados podem estar associadas a ITU.
5. Há grande probabilidade de ser contaminação da amostra quando são identificadas acima de duas espécies microbianas na urocultura.
6. A bacteriúria assintomática não necessita tratamento, porém pacientes grávidas, transplantados de rim, crianças com refluxo vesicoureteral, pacientes com cálculos infectados e pacientes submetidos a cirurgias urológicas, deverão ser avaliados para possível tratamento.
7. A urina é rica em nitratos e a maioria das enterobactérias transformam nitratos em nitritos, porém nem todas as bactérias realizam esta metabolização. Desta forma, o exame de urina com nitrito negativo não descarta ITU, tendo este exame baixa sensibilidade.
8. Diferentemente do que ocorre com bactérias, a quantificação do número de colônias não é útil no diagnóstico de ITU por Candida spp., sendo que somente há indicação de tratamento para candidúria assintomática em pacientes de risco para desenvolvimento de candidemia, tais como: neonatos, neutropênicos e pacientes submetidos a procedimentos urológicos.
9. Cultura de ponta de cateter urinário não é um teste laboratorial aceitável para o diagnóstico de ITU.
10. As culturas de urina devem ser obtidas com a utilização de técnica apropriada: coleta limpa por meio de micção espontânea ou cateterização. A urina coletada em paciente já cateterizado deve ser aspirada assepticamente do local próprio no circuito coletor e a cultura processada de forma quantitativa.
11. Não há indicação de troca do cateter para obter urina para cultura.

III. CONSIDERAÇÕES EM PACIENTES GRAVES/CRÍTICOS DE UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA:
Observa-se que independente da referência usada para fazer o diagnóstico de ITU-AC todas em comum têm a mesma exigência: CRITÉRIO CLÍNICO (sinais + sintomas) + CRITÉRIO LABORATORIAL. Entretanto, para o paciente grave/crítico de UTI, cumprir com tais exigências se torna difícil pelos seguintes motivos:

1. QUANTO AOS CRITÉRIOS CLÍNICOS: sintomas como disúria, polaciuria ou urgência miccional podem ser mascarados pela própria sonda vesical ou podem não ser manifestados em pacientes que mesmo sem sonda vesical tenham dificuldade para se comunicar com o avaliador (sequelado de AVC, paciente com retardo mental, etc). Essa mesma dificuldade de comunicação tornará difícil expressar a sensação de dor e sua localização. Ainda, muitos pacientes encontram-se intubados, e em uso de sedação e analgesia em infusão contínua no momento da suspeita de ITU-AC. Assim, os sinais e sintomas clínicos tais como sensibilidade suprapúbica, sensibilidade lombar ou do ângulo costovertebral, urgência urinária, frequência e disúria podem estar mascarados pelos efeitos analgésicos e sedativos das medicações usadas e induzir o clínico a definir de forma equivocada, como ausente o critério clínico da definição de ITU-AC. Mesmo febre, um sintoma clássico associado a infecção, pode estar ausente nos pacientes críticos. Erros de aferição, uso de medicação antitérmica de horário e o nível de temperatura baixa dentro da UTI podem mascarar ocorrência de febre. Algumas infecções cursam com hipotermia e não com febre[14]. Ainda, aproximadamente 20% a 30% dos idosos com infecções bacterianas ou virais graves apresentarão uma resposta febril reduzida ou totalmente ausente. Os mecanismos deste fenômeno não foram claramente elucidados, sugerindo-se alterações decorrentes do envelhecimento. Respostas termorregulatórias diminuídas, tais como respostas sudomotoras e vasomotoras, bem como anormalidades quantitativas e qualitativas tanto na produção quanto na resposta a pirogênios endógenos, como IL-1, IL-6 e TNF, podem ser possíveis explicações para as diferenças entre pacientes idosos e jovens em resposta febril à infecção[15].

2. QUANTO AOS CRITÉRIOS LABORATORIAIS: recentemente, microrganismos anteriormente considerados contaminantes, como o staphylococcus saprophyticus, enterococcus, e streptococcus do grupo B, foram reconhecidos como uropatógenos[16]. Nesse sentido, em pacientes críticos flora polimicrobiana com mais do que 2 micro-organismos presentes na cultura poderiam merecer atenção. Com relação ao cut-off de contagem de colônias adotado para diagnóstico de ITU-AC, existe diferença entre a recomendação do CDC (≥ 10⁵ UFC/mL) e o IDSA (≥10³ UFC/mL). Apesar que as recomendações do CDC são para vigilância e as do IDSA para guiar tratamento, no Brasil, as recomendações da ANVISA se alinham com o critério de ≥ 10⁵ UFC/mL. Entretanto, o UpToDate se alinha com as diretrizes do IDSA[17]. Piuria tem um valor preditivo positivo superior a 95% no diagnóstico de ITU em pacientes não cateterizados, de modo que, na ausência de piuria, as culturas de urina não precisam ser obtidas. Pelo contrário, puiria não é recomendada como critério único para obter culturas de urina em pacientes cateterizados. Num estudo, piuria com > 5 leucócitos/campo de alta potência teve uma especificidade de 90% para diagnosticar ITU-AC com > 10⁵ UFC/mL. No entanto, este estudo não distinguiu entre bacteriúria assintomática e ITU e nem se limitou a pacientes de UTI[18]. Num outro estudo de 2017 piuria e esterase leucocitária apresentaram alta sensibilidade (73% e 87,5%, respectivamente) e o teste de nitrito teve alta especificidade (100%)[19]. Nos pacientes de UTI sob analgesia e sedação, talvez piuria, esterasa leucocitária e o teste de nitrito devam ser considerados no algoritmo diagnóstico. Com relação às ITU fúngicas, estas são tipicamente assintomáticas. Até piuria é incomum em pacientes com ITU por cândida. Candiduria costuma ocorrer mais tardiamente, no final da internação hospitalar. Em um estudo de UTIs francesas, a média do início da candiduria após a admissão na UTI foi aos 17 dias[20].  Como pacientes gravemente doentes são mais suscetíveis à candidemia após candiduria, é bem possível que pielonefrite por cândida possa estar coexistindo em muitos desses com ITU por cândida. As diretrizes do CDC, entretanto excluíram candiduria da definição de vigilância de ITU-AC. Para fins de diagnóstico e tratamento clínico a candiduria não deve ser excluída, toda vez que os rins são o local mais comum de candidíase disseminada[21] [22]. A candidemia concomitante ocorrem em até 8% nesses pacientes[23]. 

Torna-se, portanto bastante difícil cumprir com os critérios que as diretrizes atuais têm fixado para diagnosticar ITU-AC em pacientes graves/críticos. Inexistem na atualidade critérios específicos voltados para esses pacientes. Desta forma, e considerando que tais pacientes constituem uma população com risco de vida, importante se faz estabelecer critérios diferenciados que suportem a suspeita de ITU-AC e balizem o início de terapia antibiótica empírica direcionada ao sistema urinário como foco infeccioso. Nestes casos, deverá se valorizar critérios clínicos traduzam mal-estar ou desconforto no paciente, fatores de risco para ITU e exames laboratoriais compatíveis com infecção. Ainda, deverá se definir qual cut-off será adotado nos resultados das culturas de urina para confirmar ou afastar a suspeita de ITU-AC e promover o escalonamento/descalonamento/suspensão do tratamento.

Recente publicação propôs um algoritmo e diretrizes para diagnóstico de ITU-AC[24]:


-Paciente alvo: paciente de UTI com cateter vesical + febre.
-Investigar outras causas de febre (não exclui o diagnóstico de ITU-AC)
-Fatores de Risco (“gatilhos”)
*fatores predisponentes: DM, anormalidades do trato urinário, cateterização vesical >14 dias
*critérios clínicos: novo/piora do choque, mudança do SOFA >2 pontos
*critérios laboratoriais: aumento na contagem total de leucócitos (CTL), nos níveis de procalcitonina (PCT) séricos.
*urina I: piuria, esterase leucocitária positiva, hematúria.
*antibióticos em andamento com pouca penetração no trato urinário; uso de antibióticos de amplo espectro (para candiduria)
*baixa adesão na prática de prevenção e controle de infecções, alta incidência de ITU-AC
-Diretrizes:
* Urocultura (+) para bactéria com ≥2 fatores de risco: considerar tratamento
* Urocultura (+) para bactéria com <2 fatores de risco: trocar cateter vesical e repetir caso alta suspeita
* Urocultura (+) para cândida: colonização múltipla ou evidências de infecção urinaria alta pela USG: considerar tratamento
* Urocultura (+) para cândida: sem evidências de infecção sistêmica/urinaria alta pela USG: considerar troca de cateter vesical e nova urocultura.

IV) PROPOSTA DE PROTOCOLO
Com base no anteriormente exposto e, levando em consideração a disponibilidade dos recursos que a maioria das UTIs brasileiras contam, propõe-se o seguinte PROTOCOLO diagnóstico e terapêutico adaptado das diretrizes atualmente em vigor.

1. Paciente alvo: paciente de UTI, com dificuldade de comunicação para expressar sinais e sintomas de ITU-AC em razão de sequela neurológica, intubação ou uso de medicação depressoras do SNC; em uso de cateter vesical, cateter suprapúbico ou uropen por >48 horas; ou que tenha sido removido até 48 horas antes.

2. Fatores de risco:
-Sexo feminino
-≥65 anos
-DM
-ITU previa ou de repetição
-Litíase renoureteral
-Gravidez
-Imunosupressão
-Anormalidades do trato urinário
-Cateterização vesical >14 dias
-Antibióticos em andamento com pouca penetração no trato urinário
-Uso de antibióticos de amplo espectro (para candiduria)
-Baixa adesão na prática de prevenção e controle de infecções: colonização bacteriana da bolsa coletora, erros no cuidado do cateter (por exemplo, erros na técnica estéril, não manutenção de um sistema de drenagem fechado, etc.)
-Alta incidência de ITU-AC na UTI

3. Critérios clínicos:
-Estados de agitação (avaliados por escalas de RASS, SAS etc)
-Em pacientes com lesão medular, aumento da espasticidade, disreflexia autonômica, ou sensação de desconforto devem ser considerados.
-Manifestações de dor (avaliado por escalas como BPS) 
-Despertar diário agitado ou com manifestações de dor
-Febre (>38.5ºC) ou hipotermia (<36ºC)
-Taquicardia (>100bpm)
-Taquipneia (>20rpm) ou assincronia ventilatória (paciente sob ventilação mecânica).
-Critérios de sepse (mudança do SOFA ≥ 2 pontos),
-Instabilidade hemodinâmica/choque
-Desmame difícil das drogas vasoativas

4. Critérios laboratoriais:

4.1 Exame de sangue:
*Leucocitose (>10,000/mm3) ou leucopenia (<4000/mm3)
*Aumento da PCR ou procalcitonina.
4.2 Exame de Urina tipo I (coletar junto com amostra para urocultura, inicialmente sem necessidade de troca de sonda vesical):
*Piuria: ≥ 10 leucócitos/mm3 (ou ≥ 10,000/ml) ou ≥ 3 x campo de grande aumento
*Teste de esterasa (+)
*Nitrito (+)

5. Conduta:

1. Havendo ≥ 2 fatores de risco + 1 critério clínico + 1 critério do exame de sangue + 1 critério do exame de urina I: iniciar terapia empírica.

2. Solicitar exame de imagem de rins e vias urinárias (USG, TC de abdome).

3. Reavaliar com resultado da UROCULTURA:

*considerar como resultado (+) para bacteriúria: ≥10⁵ UFC/mL de no máximo 2 espécies bacterianas. Excepcionalmente, a depender do quadro clinico e do tipo de paciente pode se considerar o cut-off de ≥10³.

*considerar como resultado (+) para candiduria: qualquer contagem de colônias.

Urocultura (+) para bactéria: promover manutenção/escalonamento/descalonamento da terapia empírica.

* Urocultura (-) para bactéria: suspender o tratamento e procurar outro foco infeccioso, salvo que a coleta de amostra de urina tenha sido feita na vigência de antibiótico sensível pelo antibiograma e paciente apresentar melhora clínica (neste caso manter o tratamento pelo tempo recomendado).

* Urocultura (+) para cândida: colonização múltipla ou evidências de infecção urinaria alta pela USG: considerar tratamento

* Urocultura (+) para cândida: sem evidências de infecção sistêmica/urinaria alta pela USG: considerar troca de cateter vesical e nova urocultura.




[1] Urinary Tract Infection (Catheter-Associated Urinary Tract Infection [CAUTI] and Non-Catheter-Associated Urinary Tract Infection [UTI]) and Other Urinary System Infection [USI]) Events. CDC/NHSN. Janeiro 2018. https://www.cdc.gov/nhsn/pdfs/pscmanual/7psccauticurrent.pdf
[2] Critérios Diagnósticos de Infecção Relacionada à Assistência à Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária-Anvisa 2017. https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/publicacoes/item/criterios-diagnosticos-das-infeccoes-relacionadas-a-assistencia-a-saude
[3] Sai Saran, Namrata S. Rao1, Afzal Azim. Diagnosing Catheterassociated Urinary Tract Infection in Critically Ill Patients: Do the Guidelines Help?. Indian J Crit Care Med 2018;22:357-60.
[4] Hooton TM. et. al., Diagnosis, prevention, and treatment of catheter-associated urinary tract infection in adults: 2009 International Clinical Practice Guidelines from the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2010 Mar 1;50(5):625-63.
[5] Urinary Tract Infection (Catheter-Associated Urinary Tract Infection [CAUTI] and Non-Catheter-Associated Urinary Tract Infection [UTI]) and Other Urinary System Infection [USI]) Events. CDC/NHSN. Janeiro 2018. https://www.cdc.gov/nhsn/pdfs/pscmanual/7psccauticurrent.pdf
[6] Critérios Diagnósticos de Infecção Relacionada à Assistência à Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária-Anvisa 2017. https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/publicacoes/item/criterios-diagnosticos-das-infeccoes-relacionadas-a-assistencia-a-saude
[7] The Infectious Diseases Society of America (IDSA) é a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas e representa médicos, cientistas e outros profissionais de saúde especializados em doenças infecciosas. O objetivo da IDSA é melhorar a saúde dos indivíduos, das comunidades e da sociedade promovendo a excelência no atendimento ao paciente, educação, pesquisa, saúde pública e prevenção.
[8] O termo “piuria” é definido como presença de ≥ 10 leucócitos/mm3 (ou ≥ 10,000/ml) ou ≥ 3 x campo de grande aumento, em amostra de urina não tratada (Horan TC, Andrus M, Dudeck MA. CDC/NHSN surveillance definition of health care-associated infection and criteria for specific types of infections in the acute care setting. Am J Infect Control 2008; 36: 309-32.
[9] CDC’s National Healthcare Safety Network  (NHSN), refere-se à Rede Nacional de Segurança de Saúde do CDC do U.S.A. É o sistema de rastreamento de infecção associado à saúde mais utilizado no país americano. O NHSN fornece os dados necessários para identificar áreas problemáticas, medir o progresso dos esforços de prevenção e, finalmente, eliminar as infecções associadas aos cuidados de saúde. Os CDC (Centers for Disease Control) são órgão governamentais americanos subordinados ao U.S. Department of Health and Human Services.
[10] O Período da Janela de Infecção (PJI) é definido como os 7 dias durante os quais todos os critérios de infecção devem ser cumpridos. Inclui a data de coleta do primeiro teste diagnóstico positivo que é usado como um elemento para atender ao critério de infecção específico do site (na ausência de um teste de diagnóstico, use a data do primeiro sinal localizado documentado ou sintoma que é usado como um elemento do critério específico do local); 3 dias calendários antes e 3 dias após. Para fins de definição do PJI os seguintes exemplos são considerados testes de diagnóstico: *coleta de amostras laboratoriais; *teste de imagem; *procedimento ou exame.
[11] Nome geralmente dado a cogumelos de pequeníssimas dimensões, que constituem uma microscópica massa veludosa de filamentos, na qual os elementos reprodutores aparecem disseminados. (Muitos cogumelos são parasitos de vegetais, outros de animais, mas a maioria, como o penicílio, são saprófitos.).
[12] Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Órgão atrelado ao Ministério da Saúde do Brasil.
[13] Infecção do Trato Urinário Relacionada à Assistência à Saúde.
[14] Alexandre A. Steiner, et.al., The hypothermic response to bacterial lipopolysaccharide critically depends on brain CB1, but not CB2 or TRPV1, receptors.The Journal of Phisiology. Volume589, Issue9 May 2011, pp. 2415-2431. https://doi.org/10.1113/jphysiol.2010.202465
[15] Dean C. Norman. Fever in the Elderly. Clinical Infectious Diseases, Volume 31, Issue 1, 1 July 2000, Pages 148–151, https://doi.org/10.1086/313896
[16] Kline KA, Lewis AL. Grampositive uropathogens, polymicrobial urinary tract infection, and the emerging microbiota of the urinary tract. Microbiol Spectr 2016;4:1-2.
[17] https://www.uptodate.com/contents/sampling-and-evaluation-of-voided-urine-in-the-diagnosis-of-urinary-tract-infection-in  adults?sectionName=Definition%20of%20a%20positive%20culture&topicRef=8063&anchor=H3018608&source=see_link#H3018608
[18] Tambyah PA, Maki DG. The relationship between pyuria and infection in patients with indwelling urinary catheters: A prospective study of 761 patients. Arch Intern Med 2000;160:6737.
[19] Lee SP, Vasilopoulos T, Gallagher TJ. Sensitivity and specificity of urinalysis samples in critically ill patients. Anaesthesiol Intensive Ther 2017;49:2049.
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