CONSIDERAÇÕES ÉTICAS PARA ADMISSÃO NA U.T.I. DE
PACIENTES GRAVES PORTADORES DE INFECÇÃO PELO COVID-19.
Elaborado por: Dr. Alejandro
Enrique Barba Rodas. Médico Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de
São Jose dos Campos.
Em 29 de dezembro de 2019, um
hospital em Wuhan admitiu quatro pessoas com pneumonia e reconheceu que as
quatro haviam trabalhado no Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, que
vende aves vivas, produtos aquáticos e vários tipos de animais selvagens ao público.
O hospital relatou essa ocorrência ao Centro de Controle de Doenças (CDC-China)
e os epidemiologistas de campo da China (FETP-China) encontraram pacientes
adicionais vinculados ao mercado e, em 30 de dezembro, as autoridades de saúde
da província de Hubei notificaram esse cluster ao CDC da China.
Hoje, já declarada a infecção
mundial pelo do Coronavírus (Covid-19) pela OMS, como pandemia, vem afetando muitos
países no mundo, principalmente a China, Itália, Iran, Corea do Sul, Espanha,
Alemanha, França e Estados Unidos. Ao todo, está afetando 156 países e
territórios ao redor do mundo e 1 transporte internacional (o navio de cruzeiro
Diamond Princess abrigado em Yokohama, Japão). Até hoje, 15.03.2020, temos
163,592 casos, 82,306 encerrados com 6.087 mortes (7%)[1].
No Brasil, em 14.03.2020 tem se
registrado 1.496 casos (49.37%), 121 casos confirmados (3.99%), e nenhum óbito
até esta data. São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia tem casos confirmados com
transmissão local, sendo que nos 2 primeiros estados já está declarada a existência
de transmissão comunitária[2].
A China, ao que parece já passou
seu pico de maior impacto, sendo que agora a Itália e Estados Unidos estão começando
a sentir o forte impacto no seu território.
Conforme recente reporte publicado
por um reconhecido Grupo italiano de Anestesia e Medicina Intensiva, na
Lombardia (local mais afetado), a capacidade total pré-crise da UTI é de
aproximadamente 720 leitos (2,9% do total de leitos hospitalares num total de
74 hospitais). Essas UTIs costumam ter taxas de 85% a 90% de ocupação durante
os meses de inverno. Houve um aumento acentuado imediato nas internações na UTI
do dia 1º (20.02.2020) ao dia 14 da epidemia italiana. O aumento foi constante
e consistente. Dados disponíveis ao público indicam que as internações na UTI (n
= 556) representou 16% de todos os pacientes (n = 3420) que testaram positivo
para COVID-19. O número total atual de pacientes com COVID-19 que ocupam um
leito de UTI (n = 359) representa 16% da população pacientes hospitalizados com
COVID-19 (n = 2217). Todos os pacientes que pareciam ter doença grave foram
admitidos por insuficiência respiratória de tipo hipoxemica nas UTIs dedicadas
ao manejo do COVID-19. Em 48 horas, foram formadas coortes de UTI em 15
hospitais centrais, totalizando 130 leitos de UTI com casos de Covid-19. Até o
dia 7 de março, o número total de coortes de UTI COVID-19 foi de 482 (cerca de
60% da total capacidade de leito de UTI pré-surto), distribuídas entre 55
hospitais. Em 8 de março, pacientes gravemente enfermos (inicialmente pacientes
COVID-19 negativos) foram transferidos para UTIs receptivas fora da região através
de um escritório nacional de coordenação de emergência. Durante os primeiros 3 dias do surto, a partir
de 22 de fevereiro, as admissões na UTI eram 11, 15 e 20 na Rede de UTIs COVID-19
da Lombardia. As internações em UTI aumentaram continuamente e exponencialmente
nas primeiras 2 semanas. Com base num modelo linear, prevê-se que
aproximadamente 869 internações na UTI poderão ocorrer até 20 de março de 2020,
sendo que o modelo projetado de crescimento pode resultar em aproximadamente 14.542
internações na UTI. Embora essas projeções sejam hipotéticas e envolvam pressupostos
diversos, qualquer aumento substancial no número pacientes gravemente enfermos
excederia rapidamente a capacidade total de UTI, sem mesmo considerar outras
admissões críticas (trauma, acidente vascular cerebral e outras emergências). Na
prática, o sistema de saúde não pode sustentar o controle da epidemia, e medidas
mais fortes de contenção estão agora sendo consideradas como única opção
realista para evitar o colapso total do sistema de UTI. A proporção de
internações na UTI representa 12% do total de casos positivos e 16% de todos os
pacientes hospitalizados. Essa taxa é superior ao relatado na China, onde
apenas 5% dos pacientes que tiveram resultado positivo para COVID-19 exigiram
admissão na UTI. Poderia se tentar várias explicações diferentes. É possível
que critérios para admissão na UTI sejam diferentes entre os países, mas isso
parece improvável. Outra explicação é que a população italiana é diferente da
população chinesa, com fatores predisponentes como raça, idade e comorbidades próprias.
A capacidade da UTI simplesmente não é suficiente. Mais recursos devem ser
investidos para conter a epidemia. Em 8 de março, a Lombardia foi colocada em
quarentena e com um estrito auto isolamento. Em 10 de março, a Itália ficou em
quarentena e o governo instituiu medidas mais rígidas de contenção, incluindo
medidas de auto isolamento[3].
Neste cenário em que uma pandemia
torna-se uma situação de “emergência em saúde pública” caraterizada como
situação de exceção ou extraordinária, em que haverá que se otimizar a
utilização de leitos de UTI, critérios especiais ou diferenciados, em caráter
excepcional, de admissão poderão ser adotados, com base no princípio da “justiça
distributiva e alocação apropriada de recursos limitados” fulcrada na
legislação e na normatividade ética de cada país . Um cenário desse tipo
pode ser perfeitamente equiparado com as situações de “calamidade pública
decorrente de desastres” atraindo os princípios que norteiam a "medicina
contra desastres". Os aspectos éticos referentes ao atendimento médico,
para atenção a vítimas de desastres foram consolidados na 46ª. Assembleia Geral
da Associação Médica Mundial (WMA) realizada em Estocolmo, na Suécia em
setembro de 1994 e revisada em nova Assembleia concluída na África do Sul em
2006. Analisando-se sob o prisma da Medicina, uma calamidade é
caracterizada por uma situação aguda, súbita, abrupta, onde a demanda de
recursos é insuficiente para garantir o apoio médico, fornecimento de víveres,
atividades de resgate, abrigo e apoio psicológico. Os aspectos de triagem e
atendimento à população atingida por uma calamidade devem seguir os preceitos
do Código de Ética Médica e inúmeras vezes nos defrontamos com assuntos
controversos na esfera da bioética, como a ortotanásia e a distanásia. Em
pacientes gravíssimos atingidos por radiatividade extrema e considerados como
tratamento emergencial além das possibilidades, lembrar a possibilidade de
distanásia, ou ‘medical futility’, como uma forma de dispêndio de recursos
preciosos e muitas vezes escassos, o que é condenado eticamente frente a
calamidades. A prioridade em situações pós-catástrofe deve ser considerada
àqueles pacientes em iminente perigo de vida. Outros feridos e indivíduos
psicologicamente traumatizados que necessitam de tratamentos secundários podem
receber atendimento posteriormente ou por equipe de assistentes e psicólogos. Os
princípios da bioética devem ser respeitados: a autonomia, a beneficência, a
não maleficência e a justiça. Os conceitos de ortotanásia e distanásia devem
ficar em evidência e a relação médico-paciente obedecer aos preceitos do Código
de Ética Médica[4].
No Brasil, após o 1º caso
detectado na China, uma série de ações
foram adotadas, culminando com a ativação no dia 22 de janeiro de 2020 do
Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE-COVID-19), do
Ministério da Saúde (MS) coordenado pela Secretaria de Vigilância em Saúde
(SVS), com o objetivo de nortear a atuação do MS na resposta à possível
emergência de saúde pública, buscando uma atuação coordenada no âmbito do SUS. O
Brasil adota a ferramenta de classificação de emergência em três níveis,
seguindo a mesma linha utilizada globalmente na preparação e resposta em todo o
mundo. Deste modo, recomenda-se que as Secretarias de Saúde dos Municípios,
Estados e Governo Federal, bem como serviços de saúde pública ou privada,
agências, empresas tomem nota deste plano na elaboração de seus planos de
contingência e medidas de resposta. Toda medida deve ser proporcional e
restrita aos riscos vigentes. Estando hoje, na fase de “Emergência em Saúde
Pública de Importância Nacional (ESPIN)” por doença respiratória, causada
pelo novo coronavírus (2019-nCoV), importante que se adotem um conjunto de
medidas destinadas a[5]:
*Apoiar o funcionamento adequado e oportuno da
organização da rede de atenção para atendimento ao aumento de contingente de
casos de SG, SRAG e da infecção humana pelo novo coronavírus (COVID-19).
*Apoiar a ampliação de leitos, reativação de
áreas assistenciais obsoletas, ou contratação de leitos com isolamento para o
atendimento dos casos de de SG, SRAG e da infecção humana pelo novo coronavírus
(COVID-19).
*Orientar, em caso de surto ou epidemia de casos
de novo coronavírus, a organização da rede de atenção à saúde para
disponibilidade de UTI que atenda a demanda de cuidados intensivos para casos
graves, garantido adequado isolamento dos mesmos.
*Reforçar a necessidade de garantir proteção aos
profissionais atuantes no atendimento aos casos suspeitos ou confirmados da
infecção humana pelo novo coronavírus (COVID-19), nos serviços públicos e
privados, conforme recomendações da Anvisa (link: http://portal.anvisa.
gov.br/documents/33852/271858/Nota+T%C3%A9cnica+n+04-2020+GVIMS-GGTES-ANVISA / ab598660-3de4-4f14-8e6f-b9341c196b28),
garantindo provisionamento de Equipamento de proteção individual, evitando
assim a desassistência.
Medidas específicas para aumentar
a capacidade de atendimento aos doentes críticos afetados pelo Covid-19, têm
sido recomendadas por diferentes instituições no mundo, principalmente por
entidades de países que estão sendo mais atingidas pela pandemia como a China, Itália
e os Estados Unidos.
No Brasil, estas recomendações têm
sido feitas pela Associação de Medicina Intensiva do Brasil (AMIB) publicadas
no seu portal oficial, que entre outras medidas recomenda:[6]
- Readequar os leitos com suporte
intensivo em áreas exclusivas para paciente graves dom Covid-19.
- Hospitais que contem com várias
UTIs poderão destinar uma delas para atendimento exclusivo dos pacientes.
- Áreas do hospital com
capacidade de monitorização como unidade de recuperação pós-anestésica,
unidades coronarianas devem ser os locais preferenciais para alocação de
doentes críticos. Estas e outras unidades podem servir como UTI temporária e
receber preferencialmente pacientes menos críticos (sem ventilação mecânica
invasiva, suporte com drogas vasoativas ou monitorização neurointensiva por
exemplo).
- Triagem de pacientes para o
cuidado intensivo, discutidas e definidas previamente e envolvendo todos os
possíveis interessados, com reavaliação constante, e nunca sendo uma decisão
individual. Os cuidados intensivos são prioritários para os doentes graves com
chance de recuperação, e os doentes que não são incluídos devem receber
cuidados paliativos, com todas as medidas apropriadas.
- Planos de contingência para
transformar leitos comuns em leitos de cuidados críticos, com estimativa de
pessoal para essa cobertura.
Entretanto, pouco se aborda a
questão da adoção de critérios diferenciados para admissão de pacientes na UTI
visando a otimização da alocação dos leitos a pacientes com quadros graves de
Covid-19. Sem dúvida trata-se de uma questão extremamente delicada, que deve
ser enfrentada com base nas normas éticas e legais existentes no país, levando
em consideração o princípio da proporcionalidade da assistência num contexto de
escassez de recursos de saúde como são os leitos de UTI, que deverá garantir o tratamento intensivo a pacientes
com maiores chances de sucesso terapêutico, e, portanto, com "maiores expectativas
de vida".
Vigora no Brasil, a Resolução CFM
nº 2156/2016, que estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva[7], orienta
que o processo de análise da indicação de admissão na UTI seja feito com base
nos seguintes elementos[8]:
I. ANÁLISE
DOS CRITÉRIOS DETERMINANTES:
1. Necessidade de intervenções de
suporte de vida (indicação médica): A definição de “paciente grave” está
intimamente ligada ao de disfunção de órgãos e sistemas ameaçadores da vida.
Visando estabelecer um Guia de Orientação, adotaremos neste Protocolo uma lista
de diagnósticos que caracterizam essa definição e que sustentam, portanto, a
indicação médica de admissão na UTI. Elencam-se apenas uma lista das indicações
médicas mais frequentes e inequívocas, não se esgotando nela, toda vez que
poderão haver outras não constantes na presente lista que justifiquem a
admissão na UTI em razão de presença de instabilidade clínica, isto é,
necessidade de suporte para as disfunções orgânicas, e monitoração intensiva.
2. Probabilidade de recuperação: refere-se
ao grau de reversibilidade, isto é, à chance de o paciente poder retornar ao
estado prévio no qual se encontrava antes de adoecer (doença aguda ou
agudizada). Variáveis como diagnóstico da localização, grau e extensão da lesão
e estado prévio de comorbidades, são fatores determinantes para estabelecer o
prognóstico e a probabilidade de recuperação.
3.
Existência ou não de limitações terapêuticas: por parte
do paciente (potencial benefício para o paciente com as intervenções
terapêuticas e prognóstico) ou da instituição (disponibilidade de leitos e de
recursos diagnósticos/terapêuticos disponíveis). Refere-se às limitações
impostas ao tratamento indicado em razão das condições inerentes do próprio
paciente (intolerância, alergia, contraindicação, análise de risco/beneficio,
escolha do paciente ou do seu responsável legal, etc.) ou decorrente de
limitações nos serviços médicos disponíveis na instituição (falta de
especialista e/ou de disponibilidade do recurso diagnóstico e/ou terapêutico).
Da análise dos 3 fatores
determinantes, caberá direcionar os pacientes para as diferentes Unidades do
hospital: Unidade de Terapia Intensiva (UTI),
Unidade de Cuidado Intensivo ou Semi-intensiva (UCI) e Unidade de Cuidados
Paliativos (UCP).
Entretanto, na ausência de UCI ou de
UCP, os pacientes poderão ser admitidos
na UTI na UTI, conforme preconiza a Resolução CFM nº 2156/2016, porém,
dever-se-á estabelecer critérios de PRIORIZAÇÃO para ocupar um leito de
UTI, principalmente quando a demanda de leitos (pedidos de vaga) seja maior que
a oferta (disponibilidade)
II. ANÁLISE DA PRIORIDADE
(PRIORIZAÇÃO) PARA ADMISSÃO NA UTI
PRIORIDADE 1 - Pacientes
que necessitam de intervenções de suporte de vida, com alta probabilidade de
recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico. São pacientes que
sempre devem ser internados na UTI.
PRIORIDADE 2 - Pacientes
que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de
intervenção imediata de suporte de vida (necessidade potencial), com alta
probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico.
São pacientes devem ser internados na UCI e somente na ausência dessa unidade
ou na falta de leito nela poderão ser admitidos na UTI.
PRIORIDADE 3 - Pacientes
que necessitam de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de
recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica. São pacientes devem
ser internados na UTI, porém, desde que ausentes pacientes com prioridade 1 ou
2 aguardando vaga respectiva.
PRIORIDADE 4 - Pacientes
que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de
intervenção imediata de suporte de vida, mas com baixa probabilidade de
recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica. São pacientes que pela
sua condição previa e/ou atual também tem baixa probabilidade de recuperação ou
limitação terapêutica, mas a necessidade de intervenções de suporte de vida é
potencial. São pacientes devem ser internados na UCI e somente na ausência
dessa unidade ou na falta de leito nela poderão ser admitidos na UTI, desde que
ausentes pacientes com prioridade 1, 2 ou 3 aguardando vaga respectiva. No
entanto, dependendo do caso, da gravidade e do prognóstico, poderá ser
oferecida a possibilidade de cuidados paliativos, sendo então internados nas
unidades respectivas (UCP).
PRIORIDADE 5 - Pacientes
com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de
recuperação. Em geral, esses pacientes não são apropriados para admissão na UTI
(exceto se forem potenciais doadores de órgãos) e deveriam ser internados numa
Unidade de Cuidados Paliativos (UCP) para receber apenas cuidados paliativos
básicos ou estritos. No entanto, seu ingresso pode ser justificado em caráter
excepcional, considerando as peculiaridades do caso e condicionado ao critério
do médico intensivista.
OBSERVAÇÃO: pacientes com
doença incurável e/ou em fase terminal usualmente que não se beneficiam do
tratamento em UTI, podem ser tratados com dignidade em outras unidades de
internação (enfermaria, apartamentos, unidades intermediárias e de unidades de
cuidados paliativos), desde que lhe sejam garantidas todas as medidas de
conforto e preservando, sempre que possível, a autonomia do paciente ou do seu
responsável legal.
Entretanto, a sistemática descrita
acima, permite a possibilidade de admissão de pacientes de menor prioridade
desde que inexista outro paciente de maior prioridade e o leito estiver disponível.
Num eventual Plano de Contingência
para a situação de “Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN)”
recomenda-se, como visto acima, readequar os leitos com suporte intensivo em áreas
exclusivas para paciente graves dom Covid-19, admitindo apenas pacientes Covid-19,
com prioridade tipo 1 ou 2. Certamente a adoção destes critérios de
racionamento só é justificável depois que todos os esforços possíveis foram
feitos para aumentar a disponibilidade de recursos disponíveis (em cuidados
intensivos) e após qualquer possibilidade de transferência de pacientes para
centros com maior disponibilidade de recursos. De qualquer forma, importante
se faz que os órgãos fiscalizadores do exercício profissional emitam normas em
caráter de urgência, balizando este tipo de medidas, para dar respaldo ético
aos seus respectivos profissionais, aliviando em parte a
responsabilidade nas escolhas, que podem ser emocionalmente onerosas, realizadas
em casos individuais.
Veja-se como a Sociedade
Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva (SAATI), por
meio de um Grupo de Trabalho elaborou suas RECOMENDAÇÕES DE ÉTICAS E CLÍNICAS
PARA ADMISSÃO NA UTI, FORNECIMENTO E SUSPENSÃO DO TRATAMENTO INTENSIVO, EM
CONDIÇÕES EXCEPCIONAIS DO DESEQUILÍBRIO ENTRE NECESSIDADES RECURSOS DISPONÍVEIS[9]:
1. Critérios extraordinários de
admissão e alta na UTI, são flexíveis e podem ser adaptados localmente
dependendo da disponibilidade de recursos, possibilidade real de transferência
de pacientes, número de acessos em andamento ou esperado. Os critérios se
aplicam a todos os pacientes, não apenas aos pacientes infectados com a
infecção por Covid-19.
2. A seleção de pacientes é uma
escolha complexa e muito delicada, também devido ao fato de que o aumento
excessivo de leitos extraordinários de UTI não garante atendimento adequado aos
pacientes selecionados (individuais), e deslocam recursos, atenção e energia
para os demais pacientes internados na UTI. Deve ser considerado também o
aumento previsível da mortalidade devido a fatores não associados à epidemia em
curso, à redução das cirurgias eletivas e ambulatoriais e à escassez de materiais
e equipamentos para as UTIs.
3. Pode ser necessário
estabelecer um critério de limite de idade para admitir na UTI. Não se
trata de fazer escolhas apenas de valor, mas reservar recursos que poderiam ser
muito escassos para aqueles com maior probabilidade de cura e secundariamente
para aqueles que podem ter mais anos de sobrevida, com vistas a maximizar os
benefícios para a maioria das pessoas. Em um cenário de total saturação de
recursos intensivos, decidir manter o critério de "primeiro a chegar,
primeiro a ser atendido" equivaleria a optar por não tratar nenhum
paciente subsequente que seriam excluídos da terapia intensiva.
4. Além da idade registrada, avaliar
cuidadosamente a presença de comorbidades e o status funcional prévia. É possível
que um curso relativamente curto em pessoas saudáveis se torne potencialmente
mais longo e, portanto, mais consumidor de recursos no serviço de saúde que no
caso de pacientes idosos, frágeis ou com comorbidades graves.
*Critérios clínicos gerais e
específicos podem ser particularmente úteis para esta escolha e podem ser encontrados
no Documento aprovado pelo Conselho Diretivo da SIAARTI de 2013 que
fornece orientações para o manejo de pacientes na “fase final da disfunção de múltiplos
órgãos” visando planejar cuidados intensivos versus paliativos (Tabela 1)[10]. Também seria apropriado consultar as Diretrizes
da SIAARTI relativas aos critérios de admissão na UTI[11].
5. Verificar a existência de
Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV), especialmente quando foram definidas em conjunto
om os cuidadores e por pacientes que já estão passando pelo período da doença crônica
através do planejamento compartilhado de cuidados.
6. Para pacientes para os quais o
acesso a medidas de suporte intensivo seja considerado como "inadequado",
a decisão de estabelecer um limite de atendimento deve ser motivada, comunicada
e documentada. O limite máximo de cuidados antes da indicação de ventilação
mecânica não deve impedir a intensidade de atendimento prévio.
7. Qualquer julgamento de
inadequação no acesso à terapia intensiva com base apenas em critérios justiça
distributiva (desequilíbrio extremo entre demanda e disponibilidade) encontra fundamento
na condição de “situação excepcional ou extraordinária”.
8. No processo de tomada de
decisão, se surgirem situações de particular dificuldade e incerteza, pode ser útil
ter uma "segunda opinião" (possivelmente até por telefone) dos
interlocutores de experiência particular (por exemplo, através do Centro de
Coordenação Regional).
9. Os critérios de acesso à
terapia intensiva, devem ser discutidos e definidos para cada paciente de forma
antecipada, criando idealmente a tempo uma lista de pacientes que serão
considerados adequados para cuidados intensivos no momento em que a
deterioração clínica ocorrer, desde que a disponibilidade naquele momento
permita. Qualquer ordem para “não intubar” deve estar justificada e registrada
no prontuário médico, a servir de guia para cuidadores que não participaram do
planejamento e que não conhecem o paciente, caso e mesmo venha a sofrer deterioração
clínica.
10. A sedação paliativa, em
pacientes hipoxemicos com progressão da doença é considerada necessária como
expressão de boa prática médica e deve seguir as recomendações existentes. Se houver
previsão de um período agônico não curto, deve-se providenciar a transferência
para unidade não intensiva.
11. Todos os acessos à terapia
intensiva devem, no entanto, ser considerados e comunicados como um "teste
na UTI" e, portanto, passam por uma reavaliação diária da adequação,
objetivos de atendimento e proporcionalidade do atendimento. Se for considerado
que um paciente, talvez tenha sido admitido o com critérios limítrofes, não
responde ao tratamento inicial que se tornará prolongado ou é severamente
complicado, uma decisão de "desistência terapêutica" e mudança de
cuidados intensivos para paliativos - em um cenário de fluxo excepcionalmente
alto de pacientes - não deve ser adiada.
12. A decisão de limitar os
cuidados intensivos deve ser discutida e compartilhada o mais colegiadamente
possível entre os membros da equipe de tratamento e, na medida do possível, em
diálogo com o paciente (e familiares), mas deve ser oportuna e precoce. É
previsível que a necessidade de fazer tais escolhas de forma mais constante e
repetida valha a pena nas UTIs de maior complexidade, onde o processo de tomada
de decisão seja mais adaptável à disponibilidade de recursos.
13. Uso de ECMO, em condições de
afluxo extraordinário, deve ser reservado para casos extremamente selecionados
e com previsão de desmame relativamente rápido, pois consome muitos recursos em
comparação com uma internação comum na UTI. Idealmente, ele deve ser reservado para
centros de alto volume e experiencia, onde o paciente na ECMO absorve
proporcionalmente menos recursos do que os que seriam absorvidos em um centro
com menos volume e experiencia.
14. É importante estabelecer uma
“rede" através do fornecimento e troca de informações entre centros e
indivíduos profissionais. Quando as condições de trabalho permitirem, no final
da emergência, será importante dedicar tempo e recursos para pesquisar e
monitorar qualquer impacto de desgaste e sofrimento profissional e moral dos
profissionais.
15. Também deve ser levado em consideração,
as repercussões em familiares de pacientes internados na UTI com Covid 19,
especialmente nos casos em que o paciente morre ao final de um período de
restrição completa da visita.
Destaque-se que na Itália, por
exemplo, adota-se como válido o critério de idade (>70 ou 75 anos)
como critério para iniciar uma abordagem de palitividade e, no meio da crise de saúde pública gerada nesse país, vem sendo adotado para selecionar pacientes com Covid-19 como possíveis
não candidatos a serem admitidos na UTI. Isto, no nosso país, pode não ter
respaldo legal ou constitucional, toda vez que a nossa Constituição Federal no
seu art. 5º estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade. A mesma Carta Magna proíbe no art. 3º, inc. IV, a promoção
do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação. Ainda a Lei nº 10.7741/2003, garante
ao idoso (>60 anos), todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sem prejuízo da proteção integral, assegurando-se lhe, por lei ou por
outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua
saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e
social, em condições de liberdade e dignidade. A própria Organização das Nações
Unidas (ONU) , no dia 30 de junho, 12 organismos das Nações Unidas divulgou uma
declaração conjunta sem precedentes fazendo um chamado para a eliminação da
discriminação nos serviços de saúde e se comprometendo a trabalhar em conjunto
para apoiar os Estados-membros a oferecerem serviços de saúde livres de estigma
e discriminação feita com base em idade, sexo, raça ou etnia, estado de saúde,
deficiência ou vulnerabilidade à saúde, orientação sexual ou identidade de
gênero, nacionalidade, asilo ou status de migração, ou registro criminal,
muitas vezes experimentando intersecções ou combinações diferentes formas de
discriminação.
DEFINIÇÃO DAS
PATOLOGIAS QUE ORIENTAM A DEFINIR UMA
CONDUTA
TERAPÊUTICA PALIATIVA VS. INTENSIVO[12]
Tabela 1 - Tabela resumida de
critérios clínicos específicos para começar a avaliar uma opção de tratamento paliativo em vez de intensivo
INSUFICIÊNCIA CARDÍACA
CRÔNICA (com terapia
médica otimizada)
|
·
Classe IV da NYHA
·
1 internação nos últimos 6 meses
·
hipotensão periférica e / ou retenção de
líquidos
·
necessidade de suporte farmacológico infusional
frequente ou contínuo
·
má resposta à ressincronização cardíaca,
quando indicado
·
caquexia
|
INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA
CRÔNICA (DPOC[1])
|
·
idade> 70 anos
·
VEF-1 <30% do previsto
·
dependência de oxigenoterapia
·
1 admissão / ano no hospital por DPOC
exacerbada
·
insuficiência cardíaca congestiva e / ou
outras comorbidades
·
perda de peso / caquexia
·
autonomia funcional reduzida
·
aumento da dependência ao tabagismo
|
INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA
CRÔNICA (FPI[2])
|
·
Idade > 70 anos
·
dependência de oxigenoterapia
·
aspecto radiológico em "favo de
mel" na TC do tórax de Alta Resolução (TCAR)
·
autonomia funcional reduzida
·
aumento da dependência ao tabagismo
|
INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA
|
·
idade> 75 anos
·
neoplasia em estágio avançado
·
desnutrição grave
·
doença pulmonar ou cardíaca ou terminal
·
estado vegetativo
·
comprometimento cognitivo grave
·
Insuficiência de múltiplos órgãos em
terapia intensiva
|
AVC
|
·
NIHSS ≥ 20 para lesões à esquerda; ≥ 15 à
direita
·
início precoce de cefaleia + náuseas /
vômitos nas primeiras 6 h
·
TC de hipodensidade precoce ≥ 50% do
território da artéria silviana
·
idade> 75 anos
·
AVC prévio
·
fibrilação atrial
·
estado inicial de nível de consciência prejudicado
·
desvio conjugado do olhar
·
febre
|
DOENÇA DE PARKINSON
|
·
redução da eficácia do tratamento
medicamentoso / politerapia
·
independência reduzida
·
doença menos controlável e menos previsível
com períodos de “OFF”
·
discinesias problemas de motilidade e
quedas
·
disfagia
·
sinais psiquiátricos
|
ESCLEROSE
LATERAL AMIOTRÓFICA (ELA)
|
·
solicitação direta do paciente e família
·
sofrimento psicológico, social e espiritual
grave
·
controle da dor que requer altas doses de
analgésicos
·
presença de dispneia ou hipoventilação com
C.V. < 50% ou pneumonia por aspiração
·
perda da função motora em pelo menos duas
áreas do corpo.
·
dificuldade de comunicação verbal
·
astenia
·
distúrbios cognitivos
·
infecções recorrentes
|
DEMÊNCIA
|
·
incapaz de andar sem assistência e
·
incontinência urinária e fecal e
·
conversa insignificante e inconsistente
(<6 palavras / dia) e
·
incapaz de realizar atividades diárias (PPS
≤ 50%) MAIS UM OU MAIS DOS SEGUINTES
Ø perda
de peso (10% nos últimos 6 meses)
Ø infecções
recorrentes do trato urinário
Ø escaras
(estágio 3 ou 4)
Ø
febre recorrente
|
INSUFICIENCIA HEPÁTICA
|
·
ingestão oral reduzida de líquidos ou sólidos
·
pneumonia aspirativa
·
não candidatos a transplante
·
Índice MELD> 25
·
Índice SOFA> 10,5
·
complicações: sepse ou sangramento ou
insuficiência renal
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[3] Giacomo
Grasselli, MD; Antonio Pesenti, MD; Maurizio Cecconi, MD. Critical Care
Utilization for the COVID-19 Outbreak in Lombardy, Italy Early Experience and
Forecast During an Emergency Response. JAMA. Published online March 13, 2020.
doi:10.1001/jama.2020.4031
[4] O
papel da ética no enfrentamento das grandes epidemias e catástrofes. Descrição
dos principais eventos cataclísmicos sofridos pela Humanidade e suas consequências
naturais, mormente as grandes epidemias. Brasil Escola -
https://monografias.brasilescola.uol.com.br/medicina/o-papel-etica-no-enfrentamento-das-grandes-epidemias-catastrofes.htm
[5] Plano
de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus COVID-19 Centro
de Operações de Emergências em Saúde Pública | COE-COVID-19
[6] https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/Aumento.Capacidade.COVID19.Versao10.03.pdf
[7]RESOLUÇÃO CFM Nº
2156/2016: Acessível em:
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2016/2156
[8]
Protocolo de Admissão e Alta da UTI da Santa Casa de São Jose dos Campos, 2019.
[9] Texto extraído do documento: “RACCOMANDAZIONI DI
ETICA CLINICA PER L’AMMISSIONE A TRATTAMENTI INTENSIVI E PER LA LORO
SOSPENSIONE, IN CONDIZIONI ECCEZIONALI DI SQUILIBRIO TRA NECESSITÀ E RISORSE
DISPONIBILI” da Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e
Terapia Intensiva (versão 1, publicada em 06.03.2020). Acessível em: http://www.siaarti.it/SiteAssets/News/COVID19%20-%20documenti%20SIAARTI/SIAARTI%20-%20Covid19%20-%20Raccomandazioni%20di%20etica%20clinica.pdf
[10] Acessível em: Https://bit.ly/2Ifkphd.
[11] Acessível em: Raccomandazioni
SIAARTI per l’ammissione e la dimissione dalla terapia intensiva e per la
limitazione dei trattamenti in terapia intensiva Minerva Anestesiol 2003; 69
(3): 101–118
[12] Extraído,
traduzido e adpatado de: Raccomandazioni
SIAARTI per l’ammissione e la dimissione dalla terapia intensiva e per la
limitazione dei trattamenti in terapia intensiva Minerva Anestesiol 2003; 69
(3): 101–118
[13]
Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica
[14]
Fibrose Pulmonar Idiopática
[15]
Pneumonia Intersticial Usual
[16] Gastrostomia
Endoscópica Percutânea
[17] Sonda
Nasogástrica
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