segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

 

USO DA RELAÇÃO S/F COMO SUBSTITUTA DA RELAÇÃO P/F

(Atualização)

Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Responsável Técnico e Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos. Coordenador da Residência em Medicina Intensiva – COREME e membro do Grupo Técnico de Enfrentamento à COVID -19 da Santa Casa de São Jose dos Campos.




Em 26 de agosto de 2017 publiquei neste Blog o primeiro post no qual abordava o uso da Relação SaO2/FiO2 (Relação S/F) como uma ferramenta substituta não invasiva da Relação PaO2/FiO2 (Relação P/F). Dois pesquisadores americanos destacam por serem pioneiros nesse esforço desde 2006: Todd W. Rice (pneumologista) e Pratik P. Pandharipande (anestesista), ambos do mesmo hospital (Nashville – Tenesse – USA). Os estudos desenvolvidos por Rice, Pandharipande e outros colaboradores, estudaram a correlação em 2 grupos de pacientes sob ventilação mecânica: população mista de pacientes anestesiados e população de pacientes com SARA, limitando sua aplicabilidade a valores de SaO2 96 - 98% para maximizar os dados referentes a faixa linear da curva de dissociação da Hb toda vez que a curva tem uma forma sigmoide. Isto porque para estudar a correlação usaram modelos de regressão linear (ou log-linear) [1]. Desde então o uso da relação S/F tem sido utilizada principalmente em crianças[2] [3] [4] [5] [6] [7].

Mais recentemente, outros investigadores reproduziram os estudos de associação entre S/F e P/F usando também modelos de regressão linear ou, usaram as tabelas de associação de Rice, Pandharipande e outros colaboradores como referência para realizar estudos com outra finalidade.

Em janeiro de 2016, Elisabeth D. Riviello e col., publicam no American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine (AJRCCM) um interessante estudo prospectivo observacional realizado no hospital universitário de Kigali (capital de Ruanda, na Africa Oriental), um dos dois hospitais públicos de referência num país considerado de baixa renda e poucos recursos. O estudo testou uma definição de SARA alternativa à definição de Berlim, na qual foram modificados 3 critérios: não exigência de PEEP mínima, o uso de uma Relação SaO2/FiO2 315 como substituta da Relação P/F 300 (tomando como referência o primeiro estudo de Rice de 2007[8]) e o uso de ultrassom de pulmão ou radiografia de tórax para a determinação das opacidades bilaterais. Assim os critérios de SARA modificados (critérios de Kigali) restaram definidos da seguinte forma:

 


O estudo encontro uma alta incidência de SARA usando os critérios modificados e alta mortalidade associada à síndrome[9].

Em maio de 2016, Mehta T. R. e col. avaliaram em 50 pacientes (101 amostras) a correlação entre a Relação S/F e P/F no diagnóstico de Insuficiência Respiratória usando também modelo de regressão linear, encontrando que a relação P/F de 300 correlaciona-se muito bem com a razão S/F de 325,6 e que a relação P/F de 200 correlaciona-se com a Relação S/F de 269,7. Foram usados valores de Sa02 <97%. Concluiu que seus valores se aproximavam aos encontrado por Rice e col. em 2007. Com base na análise de regressão linear estabeleceram a equação: SpO2/FiO2 = 0.559(PaO2/FiO2) + 157.9[10]:

Em julho de 2018, Jenny Ameghino Bautista e col., publicam um estudo observacional de correlação usando modelo de regressão linear em pacientes hospitalizados na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital terciário de referência no Lima, capital do Perú. O coeficiente de Pearson foi medido entre variáveis ​​de P/F e S/F no início e 24, 48 e72 horas após o início da ventilação mecânica. Foram estudadas 180 amostras de 45 pacientes, encontrando uma correlação moderada no início que se tornou mais forte nas aferições de 24, 48 e 72 horas. Propuseram a seguinte equação: PaO2/FiO2= 0,8106 (SaO2/FiO2) + 54.419[11]:

Em janeiro de 2020, Jaison Y. Adams e col., publicam os resultados de um estudo retrospectivo e observacional em que avaliam a relação S/F ≤ 150 com base no tempo para prever mortalidade em paciente ventilados mecanicamente (SF time as risk ou SF-TAR). Associação entre o SF-TAR nas primeiras 24 horas de ventilação e mortalidade foram examinadas usando regressão logística multivariável e comparado com o pior registro parcial isolado de relação P/F. Cada 10% de aumento no SF-TAR foi associado a um aumento de 24% na chance de mortalidade hospitalar. Uma associação semelhante foi observada em coortes de validação. Concluem que o SF-TAR pode identificar pacientes ventilados com aumento do risco de morte[12].

Ainda, nesta época de pandemia, embora ainda como pre-print, foi publicado em junho de 2020, estudo que examinou se a presença e gravidade da Insuficiência Respiratória Tipo 1 (T1RF), medida pela oximetria de pulso através da relação S/F seria um preditor de mortalidade intra-hospitalar em pacientes que se apresentaram no pronto socorro com suspeita de COVID-19. Para tanto foi desenhado um estudo de coorte observacional prospectivo de pacientes internados no hospital com suspeita de COVID-19 em um único departamento de emergência na Inglaterra, usando regressão logística univariada. 180 pacientes com suspeita de infecção por SARS-CoV-2 preencheram os critérios de inclusão para este estudo, dos quais 39 (22%) morreram. Tomando com referência os dados do estudo de Rice e col., de 2007[13] foram usados os pontos de corte de Relação S/F de 316, 232 e 148 para T1RF leve, moderada e grave, respectivamente. A gravidade do T1RF foi associada ao aumento da mortalidade[14].

 

CORRELAÇÃO NÃO LINEAR


Em agosto de 2016, Samuel M. Brown e col. (dentro os quais Todd W. Rice), publicam um estudo retrospectivo de correlação entre a Relação S/F e P/F, porém mediante uso de um modelo de regressão não linear em pacientes com SARA, levando em consideração que a relação entre PaO2 e SaO2 é, na verdade, sigmoidal (curva de dissociação da hemoglobina).

 

Para tanto, usam a Equação de Ellis de 1989 (que estima a PaO2 a partir da SaO2)[15]deduzida matematicamente de forma inversa da Equação de Severinhause que calcula a SaO2 a partir da PaO2, publicada em 1979[16]. Referem que essa equação já vinha sendo usada em pacientes com pneumonia (na sua maioria coortes de pacientes não intubados) mas não em pacientes com SARA. Foram feitas comparações usando métodos de regressão não linear através da equação de Ellis, linear com a equação do  estudo de Rice de 2007[17] e  log-linear de do estudo de Pandharipande de 2009[18]. Foram estudados 1.184 pacientes, em 707 dos quais a SaO2 ≤ 96% (cut-off limite para aplicabilidade do método). A imputação não linear da razão S/F resultou em um erro menor do que a imputação linear ou log-linear para pacientes com SaO2 ≤ 96%, mas foi equivalente à imputação log-linear em todos os pacientes. A mortalidade hospitalar em 90 dias foi de 26% a 30%, dependendo da relação PaO2/FiO2, imputada ou medida de forma não linear. Na regressão multivariada, a associação entre PaO2 imputada e medido variou com o uso de vasopressores e SaO2. Concluíram assim que uma equação não linear estima uma Relação P/F a partir de uma Reação S/F do que equações lineares ou log-lineares[19].

A estimativa da SaO2 a partir do valor da PaO2 pela equação de Severinhouse pode ser feita diretamente nesta calculadora:

http://www-users.med.cornell.edu/~spon/picu/calc/o2satcal.htm

Em agosto de 2017, o próprio Samuel M. Brown e col., para validar externamente os achados do seu estudo retrospectivo de 2016 assim como de outros anteriormente publicados, realizaram um estudo prospectivo com atenção às características do paciente que podem afetar a precisão da imputação. Foram estudados pacientes ventilados mecanicamente admitidos nos departamentos de emergência (DEs) ou unidades de terapia intensiva (UTI) dos 9 hospitais participantes do estudo. Foram excluídos crianças, mulheres grávidas e presidiários. Como a imputação é considerada mais precisa para cut-off de SpO2 ≤ 96%, com base na forma sigmoidal da curva de dissociação de hemoglobina-oxigênio, foi usado este cut-off. Como a PO2 inspirada varia de acordo com a FiO2 e a pressão barométrica, foram ajustadas as relações da P/F para a altitude do local do estudo (altitude aprox. 1300m). Foram feitas comparações usando métodos de regressão não linear através da equação de Ellis, linear com a equação do estudo de Rice de 2007 e log-linear do estudo de Pandharipande de 2009 como feito no trabalho anterior retrospectivo de 2016. Foram registrados simultaneamente valores de SaO2, características do oxímetro, doses de vasopressores e pigmentação da pele no momento da coleta da gasometria arterial. Também foi registrado se os pacientes admitidos cumpriam os critérios de SARA adotados. Para cada método de imputação, calculamos o erro de imputação e a área sob a curva (AUC) para pacientes que atendem aos critérios de SDRA (P/F≤300) e SDRA moderada-grave (P/FIO2≤150). 703 pacientes ventilados mecanicamente foram admitidos nos departamentos de emergência ou UTIs dos hospitais participantes do estudo. Foram estudadas 1.034 gasometrias arteriais dos 703 pacientes; das quais 650 foram associadas a SaO2 ≤ 96%. A imputação não linear apresentou erro consistentemente menor do que outras técnicas. Entre todos os pacientes, o método não linear teve um menor erro e maior AUC para P/FIO2 ≤ 300 do que os métodos linear/log-linear. Todos os métodos de imputação identificaram melhor a SARA moderada a grave (P/F ≤150), sendo a imputação não linear superior. Para P/F ≤150, a sensibilidade e especificidade para imputação não linear foram 0,87 (IC de 95% 0,83–0,90) e 0,91 (IC de 95% 0,88–0,93), respectivamente. A pigmentação da pele e o recebimento de vasopressores não foram associados à precisão da imputação. Concluem, portanto, que em pacientes ventilados mecanicamente, a imputação não linear da relação P/F a partir da relação S/F parece precisa, especialmente para hipoxemia moderada a grave.

Em março de 2019, Shrirang M. Gadrey e col., publicam 2 braços de um estudo retrospectivo feito para validar a relação S/F como substituta da relação P/F em pacientes não intubados internados nas salas de enfermaria, usando comparações de métodos de regressão não linear e linear. Selecionaram pacientes com registro de SaO2 ≤10 minutos antes da coleta de sangue arterial entre 2013 e 2017). Foram comparados critérios de sepse (SOFA) usando relação P/F imputada a partir das equações existentes (Hill, Severinghaus-Ellis, Rice e Pandharipande) com critérios de sepse medidos a partir de gasometria arterial. As estimativas da gravidade da hipoxemia da equação de Severinghaus-Ellis foram mais precisas do que as de outras equações existentes, mas mostraram um viés proporcional significativo para subestimar a gravidade da hipoxemia, especialmente em saturações de oxigênio > 96%. Projetaram uma equação baseada em um modelo modificado de regressão não linear para eliminar o viés dos resultados quando a SaO2 está acima de 96%. A equação modificada proposta eliminou os vieses e se mostrou superior às demais, concluindo ser útil para uso em pacientes não intubados que permanecem nas enfermarias e para uso no escore de SOFA auxiliando no diagnóstico de pacientes sépticos[20] [21].

Com base nos estudos de regressão não linear que têm sido publicados, algumas calculadoras on-line têm sido divulgadas que podem ser úteis em cenários onde a gasometria arterial pode ter restrições quanto a sua disponibilidade. Ainda podem ser úteis para monitorar em tempo real a relação P/F sem que, no entanto, signifique que possam substituir/excluir de forma rotineira os dados fornecidos pela gasometria arterial.

https://opencriticalcare.org/imputed-pao2-calculator/

https://rccc.eu/Respi/SpFi.html

 


[2] Khemani RG, Patel NR, Bart RD, 3rd, et al. Comparação da relação saturação oximétrica de pulso / fração de oxigênio inspirado e relação PaO2 / fração de oxigênio inspirado em crianças. Peito. 2009; 135 (3): 662–668.

[3] Khemani RG, Thomas NJ, Venkatachalam V, et al. Comparação de marcadores de gravidade de doença pulmonar com base em SpO2 e PaO2 em crianças com lesão pulmonar aguda. Crit Care Med. 2012; 40 (4): 1309–1316.

[4] Thomas NJ, Shaffer ML, Willson DF, et al. Definição de doença pulmonar aguda em crianças com índice de saturação de oxigenação. Pediatr Crit Care Med. 2010; 11 (1): 12–17.

[5]  Murcia H FJ. Estudio de correlación entre la PAO2/FIO2 y la SO2/FIO2 en niños em ventilación mecanica de la fundación cardioinfantil en Bogotá entre Abril y Junio de 2011. Bogotá: Facultad de Medicina, Universidad del Rosario. 2011. p. 1-49.

[6] Miranda MC, Lopez-Herce J, Martinez MC, Carrillo A. Relationship between PAO2/FIO2 and SATO2/FIO2 with mortality and duration of admission in critically ill children. Barcelona, Spain: Anales de pediatria. 2012;76(1):16-22.

[7] Lobete C, Medina A, Rey C, et al. Correlação da saturação de oxigênio medida pela oximetria de pulso / relação da fração inspirada de oxigênio com Pao2 / fração da relação do oxigênio inspirado em uma amostra heterogênea de crianças em estado crítico. J Crit Care. 2013; 28 (4): 538 e531–537.

[8] Rice TW, Wheeler AP, Bernard GR, et al. Comparison of the SpO2/FIO2 ratio and the PaO2/FIO2 ratio in patients with acute lung injury or ARDS. Chest. 2007; 132:410–417. [PubMed: 17573487]

[9] Elisabeth D. Riviello, et.al., Hospital Incidence and Outcomes of the Acute Respiratory Distress Syndrome Using the Kigali Modification of the Berlin Definition. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine Volume 193 Number 1 | January 1 2016

[10] Mehta T. R. et. al., Can pulse oximetric saturation (SpO2)/fraction of inspired oxygen (FiO2) ratio surrogate PaO2/ FiO2 ratio in diagnosing acute respiratory failure? International Journal of Biomedical and Advance Research 2016; 7(5): 242-246.

[11] Ameghino BJ, Morales CJ, Apolaya-Segura M. Correlation between SO2/FiO2 and PaO2/FiO2 in patients with respiratory insufficiency in mechanical ventilation. Rev Cubana Invest Bioméd 2018; Jul – Set; 37 (3)

[12] Jason Y Adams, MD, MS, et.al., Association Between Peripheral Blood Oxygen Saturation (SpO2)/ Fraction of Inspired Oxygen (FiO2) Ratio Time at Risk and Hospital Mortality in Mechanically Ventilated Patients. Perm J 2020;24:19.113. https://doi.org/10.7812/TPP/19.113

[13] Rice TW, Wheeler AP, Bernard GR, et al. Comparison of the SpO2/FIO2 ratio and the PaO2/FIO2 ratio in patients with acute lung injury or ARDS. Chest. 2007; 132:410–417. [PubMed: 17573487]

[14] Johannes VON VOPELIUS-FELDT et. al., Estimated Sp02/Fio2 ratio to predict mortality in patients with suspected COVID-19 in the Emergency Department: a prospective cohort study. medRxiv preprint doi: https://doi.org/10.1101/2020.05.28.20116194; this version posted June 2, 2020.

[15]  Ellis R.K. Determination of Po2 from saturation. J Appl Physiol. 1989;67(2):902.

[16] Severinghaus J.W. Simple, accurate equations for human blood O2 dissociation computations. J Appl Physiol. 1979;46(3):599–602.

[17] Rice TW, Wheeler AP, Bernard GR, et al. Comparison of the SpO2/FIO2 ratio and the PaO2/FIO2 ratio in patients with acute lung injury or ARDS. Chest. 2007; 132:410–417. [PubMed: 17573487]

[18] Pratik P. Pandharipande, MD. et. al., Derivation and validation of SpO2/FiO2 ratio to impute for PaO2/ FiO2 ratio in the respiratory component of the Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) Score. Crit Care Med. 2009 April ; 37(4): 1317–1321. doi:10.1097/CCM.0b013e31819cefa9.

[19] Samuel M Brown, et.al., Nonlinear Imputation of Pao2/Fio2 From Spo2/Fio2 Among Patients With Acute Respiratory Distress Syndrome. Chest. 2016 Aug; 150(2): 307–313.Published online 2016 Jan 19. doi: 10.1016/j.chest.2016.01.003

[20] Gadrey S, Lau C, Clay R et al. Imputing the ratio of partial pressure of arterial oxygen to fraction of inspired oxygen: the optimal strategy in non-intubated floor patients. Abstract published at Hospital Medicine 2019, March 24-27, National Harbor, Md. Abstract 122.

[21] Gadrey S, Lau C, Clay R et al. Imputation of partial pressures of arterial oxygen using oximetry and its impact on sepsis diagnosis. Abstract published at Hospital Medicine 2019, March 24-27, National Harbor, Md. Abstract 254. Physiol. Meas. in press https://doi.org/10.1088/1361-6579/ab5154

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário