terça-feira, 9 de julho de 2019

CUIDADOS IMPORTANTES COM O USO DO FENTANIL NA U.T.I.

PARTE II: BRADICARDIA


*Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Intensivista. Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.




Um efeito adverso que pode ser visto em pacientes em uso de fentanil em bomba de infusão contínua é a BRADICARDIA, tornando-se, por vezes, um problema em pacientes hemodinamicamente instáveis.

REGULAÇÃO CENTRAL DA FREQUÊNCIA CARDÍACA

A modulação cardiovascular pelo sistema neural abrange a ativação de receptores periféricos (barorreceptores, quimiorreceptores e receptores cardiopulmonares), cujas aferências se projetam para o sistema nervoso central via nervos vagos e glossofaríngeos. O processamento dessas informações aferentes no sistema nervoso central produz uma consequente regulação das vias autonômicas eferentes, havendo, assim, o ajuste das variáveis cardiovasculares (frequência cardíaca, volume sistólico e resistência periférica)[1].

Embora o coração possua seus próprios sistemas intrínsecos de controle e possa continuar a operar, sem quaisquer influências nervosas, a eficácia da ação cardíaca pode ser muito modificada pelos impulsos reguladores do sistema nervoso central. O sistema nervoso é conectado com o coração através de dois grupos diferentes de nervos do sistema nervoso autônomo: parassimpáticos e simpáticos. A estimulação dos nervos parassimpáticos causa os seguintes efeitos sobre o coração: (1) diminuição da frequência dos batimentos cardíacos; (2) diminuição da força de contração do músculo atrial; (3) diminuição na velocidade de condução dos impulsos através do nódulo AV (átrio-ventricular) , aumentando o período de retardo entre a contração atrial e a ventricular; e (4) diminuição do fluxo sanguíneo através dos vasos coronários que mantêm a nutrição do próprio músculo cardíaco. Todos esses efeitos podem ser resumidos, dizendo-se que a estimulação parassimpática diminui todas as atividades do coração. Usualmente, a função cardíaca é reduzida pelo parassimpático durante o período de repouso, juntamente com o restante do corpo. Isso talvez ajude a preservar os recursos do coração, pois durante os períodos de repouso, indubitavelmente há um menor desgaste do órgão. A estimulação dos nervos simpáticos apresenta efeitos exatamente opostos sobre o coração: (1) aumento da frequência cardíaca, (2) aumento da força de contração, e (3) aumento do fluxo sanguíneo através dos vasos coronários visando a suprir o aumento da nutrição do músculo cardíaco. Esses efeitos podem ser resumidos, dizendo-se que a estimulação simpática aumenta a atividade cardíaca como bomba, algumas vezes aumentando a capacidade de bombear sangue em até 100 por cento. Esse efeito é necessário quando um indivíduo é submetido a situações de estresse, tais como exercício, doença, calor excessivo, ou outras condições que exigem um rápido fluxo sanguíneo através do sistema circulatório. Por conseguinte, os efeitos simpáticos sobre o coração constituem o mecanismo de auxílio utilizado numa emergência, tornando mais forte o batimento cardíaco quando necessário. Os neurônios pós-ganglionares do sistema nervoso simpático secretam principalmente noradrenalina, razão pela qual são denominados neurônios adrenérgicos.  A estimulação simpática do cérebro também promove a secreção de adrenalina pelas glândulas adrenais ou supra-renais. A adrenalina é responsável pela taquicardia (batimento cardíaco acelerado), aumento da pressão arterial e da frequência respiratória, aumento da secreção do suor, da glicose sanguínea e da atividade mental, além da constrição dos vasos sanguíneos da pele. O neurotransmissor secretado pelos neurônios pós-ganglionares do sistema nervoso parassimpático é a acetilcolina, razão pela qual são denominados colinérgicos, geralmente com efeitos antagônicos aos neurônios adrenérgicos. Dessa forma, a estimulação parassimpática do cérebro promove bradicardia (redução dos batimentos cardíacos), diminuição da pressão arterial e da frequência respiratória, relaxamento muscular e outros efeitos antagônicos aos da adrenalina. Em geral, a estimulação do hipotálamo posterior aumenta a pressão arterial e a frequência cardíaca, enquanto a estimulação da área pré-óptica, na porção anterior do hipotálamo, acarreta efeitos opostos, determinando notável diminuição da frequência cardíaca e da pressão arterial. Esses efeitos são transmitidos através dos centros de controle cardiovascular da porção inferior do tronco cerebral, e daí passam a ser transmitidos através do sistema nervoso autônomo[2].

BRADICARDIA POR FENTANIL DE ORIGEM CENTRAL

O mecanismo para bradicardia induzida por opioides não é claro, mas baseado em experimentos em animais da década de 1970, acredita-se que o fentanil causa bradicardia via receptores opioides de tipo “μ” suprimindo neurotransmissores GABAérgicos para neurônios vagais cardíacos eferentes do núcleo ambíguo a nível bulbar. GABA (ácido gama amino butírico) é um neurotransmissor central inibitório do estímulo parassimpático via nervo vagal a nível do coração. Em consequência haverá exacerbação do estímulo vagal eferente parassimpático, levando a bradicardia[3]. A estimulação de receptores opioides “μ” em ratos por endomorfina-1 pós-sinápticos, através da proteína G inibe as correntes de cálcio, levando ao aumento da estimulação vagal para o coração[4]

O núcleo ambíguo, corresponde a um conjunto de corpos neuronais (substância cinzenta) do bulbo e da porção superior da medula espinhal. É formado pelo núcleo do glossofaríngeo (IX PC), pelo núcleo do vago (X PC) e pelo núcleo do espinhal (XI PC). Os axônios das células do núcleo ambíguo dirigem-se anteriormente e exteriorizam-se no bulbo a nível do sulco pós-olivar juntamente com as fibras provenientes do núcleo solitário e do núcleo dorsal do vago[5]. Parte dos neurônios vagais parassimpáticos têm seus corpos celulares no núcleo ambíguo e terminam em pequenos gânglios associados ao coração. Em alguns animais de laboratório, cerca de 10% dos neurônios cardioinibidores estão no núcleo posterior do nervo vago. Em outros os gânglios cardíacos recebem todas as suas fibras aferentes do núcleo ambíguo e nenhuma do núcleo posterior. Parece provável que o núcleo ambíguo contenha a maior parte de todos os neurônios vagais que controlam o coração humano. O núcleo posterior do nervo vago e os neurônios eferentes viscerais do núcleo ambíguo são influenciados, direta ou indiretamente, pelo hipotálamo, sistema olfatório, centros autônomos da formação reticular e núcleo solitário[6].







FENTANIL E PROLONGAMENTO DO INTERVALO QT

O prolongamento do intervalo QT está associado com uma prolongada repolarização cardíaca que é iniciada pela saída rápida de potássio (K +), através do canal de K + cardíaco de rápida retificação. Este canal é codificado pelo gene humano-ether-a-go-go (hERG; KCNH2) e seu bloqueio por alguns agentes (como os opioides) é um proeminente mecanismo de prolongamento do intervalo QT. Algumas drogas como alguns dos inibidores de protease anti-retroviral (ATV, RTV, IDV), agentes antifúngicos azólicos (cetoconazol, fluconazol e itraconazol) e alguns antibióticos macrólidos (eritromicina, claritromicina, diritromicina, roxitromicina) inibem a CYP3A4 (ou Citocromo P4503A4), reduzindo a capacidade de metabolizar outros fármacos como a metadona e buprenorfina levando a níveis mais elevados desses agentes com capacidade de bloqueio do canais rápidos de K+ e em prolongamento do intervalo QT. Sob a perspectiva de causar prolongamento do intervalo QT, bradicardia, arritmia (Torsades de Pointes) e morte súbita, os opiáceos como a metadona, mesmo em baixas doses, são drogas de alto risco, o tramadol e a oxicodona apresentam risco intermediário e os opioides, como a morfina e a buprenorfina, são drogas de baixo risco[7].

Os resultados sobre os efeitos do fentanil e seus análogos no intervalo QT são contraditórios[8]. Chang et al. demonstraram que, em doses baixas (2μg/kg), o fentanil não apenas não prolonga o intervalo QT e QTc, mas também previne o prolongamento do intervalo QT se utilizado antes da laringoscopia e intubação traqueal durante a indução com propofol[9]. Da mesma forma, Hanci V. et.al, em outro estudo de 2013 mostraram que o fentanil não prolonga o intervalo QT na dose de 2μg/kg antes da intubação endotraqueal durante a indução com propofol[10]. Curiosamente, um relato de caso mostrou o encurtamento do intervalo QT após o uso de fentanil em um paciente com síndrome do QT longo congênita[11]. Compatível com esses achados, outro estudo de Cafiero et al. mostrou que o fentanil e o remifentanil não alteram o intervalo QTc, mas que o fentanil não previne o aumento da dispersão do intervalo QT e QTc após a intubação, enquanto o remifentanil (0,25μg/kg) diminui a dispersão do intervalo QT. Assim, sugeriram que, embora o fentanil seja um opioide seguro, o remifentanil pode ser a escolha do tratamento com opioides em pacientes com risco de disritmias[12]. Em contraste, em 60 pacientes submetidos à cirurgia de revascularização miocárdica, houve prolongamento significativo do intervalo QT após a injeção de fentanil (5μg/kg) e vecurônio[13]. Além disso, em dois estudos recentes, o prolongamento do intervalo QT foi relatado após o tratamento com fentanil[14] [15]. Em relação ao alfentanil, existem 2 estudos antigos em pacientes durante a indução estética, demonstrando que o alfentanil não tem efeitos no prolongamento do intervalo QT. Um relato mostrou que pacientes em pré-tratamento com alfentanil têm um efeito atenuante no prolongamento do intervalo QT associado à laringoscopia, mas esse efeito não foi observado no prolongamento do QTc pós-intubação[16] [17]. Não há estudos em humanos para avaliar os efeitos do sufentanil no intervalo QT, mas um relato de caso mostrou prolongamento do intervalo QT após 24 μg/kg de sufentanil, em um paciente submetido a cirurgia cardíaca[18]. No entanto, um estudo experimental em corações de cobaias mostrou que o sufentanil não tem efeito sobre a repolarização e outro sobre fibras de purkinje canino demonstrou um prolongamento significativo da duração do QT causado por concentrações elevadas de concentração de sufentanil[19] [20]. Segundo Kweon et al., 1μg/kg de remifentanil não apenas não prolonga o QT, mas também tem efeitos preventivos no prolongamento do QT após laringoscopia e intubação traqueal[21]. O remifentanil em doses menores (0,25 μg /kg) demonstrou ter efeitos atenuantes após a colocação da máscara laríngea[22]. Até o momento, vários estudos sobre o remifentanil demonstraram que ele é um opioide seguro em pacientes de alto risco antes da intubação traqueal e de cirurgias; em nenhum desses estudos, o remifentanil teve efeito de prolongamento no intervalo QT[23] [24]. Um estudo em animais produziu o mesmo resultado; o remifentanil mostrou não ter efeito na duração do QT; no entanto, pode deprimir o nó sinusal e a maioria dos parâmetros da função nodal AV[25]. Até o momento, não há dados mostrando os efeitos do carfentanil no intervalo QT. No geral, parece que o efeito do fentanil e seus análogos no intervalo QT é dose-dependente. Em doses baixas, a probabilidade de prolongamento do intervalo QT é menor, mas em altas doses (5μg/kg) essa probabilidade pode aumentar. No entanto, não há relatos sobre a ocorrência de arritmia após o uso dessas drogas.



Assim, muito embora a etiologia da bradicardia associada ao uso de fentanil, ainda não seja bem conhecida, ela de fato acontece em alguns pacientes, o que poderia agravar a instabilidade hemodinâmica do paciente crítico.


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