domingo, 26 de abril de 2020


COAGULOPATIA NA COVID 19: C.A.C. OU C.I.D.?

Elaborado por: Dr. Alejandro Enrique Barba Rodas. Médico Coordenador da Unidade Coronariana da Santa Casa de São Jose dos Campos.


I. INTRODUÇÃO

Evidências atuais indicam que pacientes com formas graves da COVID-19 pode desenvolver um estado hipercoagulável, que foi associado a desfechos ruins. Distúrbios da coagulação observados nesses pacientes incluem a (CAC), formas de coagulação intravascular disseminada (CID) trombóticas, tromboembolismo venoso, níveis elevados de Dímero-D e de fibrinogênio e trombose microvascular na vasculatura pulmonar[1] [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8].

II. CONCEITO

A forma mais comum de COAGULOPATIA ASSOCIADA À COVID 19 (CAC) observada em pacientes hospitalizados é caracterizada por elevações nos níveis de fibrinogênio e Dímero-D e aumento paralelo dos marcadores de inflamação (por exemplo, IL-6, PCR). Diferentemente da forma clássica de COAGULAÇÃO INTRAVASCULAR DISSEMINADA (CID), decorrente sepse bacteriana ou trauma, na CAC o grau de elevação do TTPa geralmente é menor que a elevação do TAP (provavelmente devido ao aumento dos níveis de fator VIII), a trombocitopenia é leve (contagem de plaquetas entre 100,000 e 150,000/uL) e a microangiopatia não está presente. Entretanto, alguns pacientes com infecção grave pelo COVID-19 podem desenvolver uma coagulopatia que atenda aos critérios de CID da ISTH (International Society of Thrombosis and Haemostasis) avaliados pelo Escore de CID (Tabela 1)[9], com intensa ativação da coagulação e do consumo de fatores de coagulação. Isso é refletido por trombocitopenia moderada a grave (contagem de plaquetas <100,000 e < 50,000/uL respectivamente), alargamento do TAP e do TTPa, elevação grave do Dímero D e diminuição do fibrinogênio (<100mg/dl). Observou-se que o fibrinogênio diminuiu drasticamente ao longo de 3 dias. A utilidade da tromboelastometria de rotação ou da tromboelastografia está sob investigação para CAC/CID, mas não deve ser usada rotineiramente para o manejo do paciente.

                                                                        TABELA 1



Em um estudo realizado por Tang e cols. em Wuhan, 71% dos não sobreviventes de infecção por COVID-19 atenderam aos critérios da ISTH para CID em comparação com 0,4% dos sobreviventes. Dímero-D elevado na admissão e níveis significativamente elevados (3 a 4 vezes) ao longo do tempo foram associados a alta mortalidade, provavelmente refletindo a ativação da coagulação por infecção/sepse, tempestade de citocinas e falência de órgãos[10].

Recomenda-se o monitoramento da contagem de plaquetas, TAP/TTPa, Dímero-D e fibrinogênio. O agravamento desses parâmetros, especificamente o Dímero-D, indica gravidade progressiva da infecção por COVID-19 e prevê que serão necessários cuidados críticos mais agressivos e que terapias experimentais para a infecção por COVID-19 podem ser consideradas nesse cenário. A melhoria desses parâmetros, juntamente com a condição clínica estável ou melhorada, fornece confiança de que a retirada do tratamento agressivo pode ser apropriada.

III. TRATAMENTO

*Anticoagulação precoce em infecção grave por COVID-19 pode melhorar os resultados dos pacientes e reduzir as complicações trombóticas. Dados limitados da China sugerem que pacientes com infecção grave por COVID-19 ou níveis marcadamente elevados de Dímero-D (> 6X o limite superior da normalidade) diminuíram a mortalidade quando administrados doses profiláticas de HBPM ou HNF[11] [12] . Desta forma, para Dímero-D o cut-off de 6 vezes o limite superior da normalidade pode ser adotado como o limiar entre a forma moderada e grave de elevação. Usualmente um valor de corte de 500 ug/L é adotado como limite superior da normalidade. Assim, para este valor valores de 3000 ug/L seria o limiar entre as formas moderadas e graves. No entanto, a maioria dos pacientes europeus e norte-americanos de UTI recebe HBPM de rotina/profilaxia da HNF, independentemente do diagnóstico.

* Um benefício adicional anti-inflamatório se atribui às heparinas[13] [14].

*Como para todas as coagulopatias, o tratamento da condição subjacente é primordial. A experiência até o momento sugere que a infecção pelo COVID-19 raramente leva a sangramento, apesar dos parâmetros anormais de coagulação.

*Os cuidados de suporte, incluindo transfusão de produtos sanguíneos, devem ser individualizados. A terapia com componentes sanguíneos não deve ser instituída apenas com base nos resultados laboratoriais, mas deve ficar reservada para pacientes com sangramento ativo, que precisem de procedimento invasivos ou que, de outra forma, apresentem alto risco de complicações hemorrágicas. Aplicam-se fatores de risco tradicionais para sangramento. Não há dados para apoiar qualquer corte "seguro" específico para parâmetros hematológicos e os limiares abaixo são apenas para orientação.

*Em pacientes com CAC/CID que não estão sangrando, não há evidências de que a correção dos parâmetros laboratoriais com produtos sanguíneos melhore os resultados. A substituição pode piorar a trombose disseminada e esgotar ainda mais os escassos produtos sanguíneos.

*Em paciente com CAC/CID que está sangrando ativamente, transfunda as plaquetas (1U/10Kg) se a contagem de plaquetas for menor que 50,000/uL, Plasma Fresco Congelado -PFC (4 unidades) se o INR estiver acima de 1,8 e peça concentrado de fibrinogênio (4 gramas) ou crioprecipitado (10 unidades) se o nível de fibrinogênio for menor que 1,5 g/L (150mg/dl).

*Para pacientes com coagulopatia grave e sangramento devido a disfunção hepática, considere Complexo Protrombínico (derivado do plasma liofilizado e industrializado que contém os fatores II, VII, IX, X da coagulação) em vez de PFC, pois o status do volume parece ser um fator significativo associado ao comprometimento respiratório.

*A eficácia hemostática do ácido tranexâmico (ATX) é desconhecida nesse cenário e não é recomendada.

IV. ANTICOAGULAÇÃO

A anticoagulação terapêutica (plena) de rotina não está indicada, a menos que esteja documentada a existência de Tromboembolismo Venoso – TEV (TVP/TEP) ou fibrilação atrial (FA). Está em estudo a eficácia da anticoagulação terapêutica intermediária ou plena em pacientes com COVID-19 gravemente enfermos sem TEV documentado[15]. Em pacientes que já fazem anticoagulação para TEV ou fibrilação atrial, as doses terapêuticas da terapia anticoagulante devem continuar, mas eventualmente poderia ser necessário suspender se a contagem de plaquetas for menor que 30,000-50,000/uL ou se o fibrinogênio for menor que 100 mg/dl. A avaliação individualizada de pacientes, no entanto, é necessária para equilibrar os riscos de trombose e sangramento.

A anticoagulação profilática com HBPM é recomendada para todos os pacientes hospitalizados com COVID-19, na ausência de sangramento ativo, independente dos testes anormais de coagulação, sendo suspensa/contraindicada se a contagem de plaquetas for menor que 25,000/uL ou fibrinogênio menor que 50mg/dl. TAP ou TTPa anormais não são uma contraindicação para tromboprofilaxia farmacológica.
Um estudo retrospectivo de Tang e col., que avaliou 449 pacientes com Covid-19 grave admitidos em um hospital de Wuhan entre 01 de janeiro e 13 de fevereiro de 2020. Noventa e nove indivíduos (22%) receberam heparina por, no mínimo, 7 dias: 94 receberam heparina de baixo peso molecular (40-60 mg/dia) e 5 receberam heparina não fracionada (10.000-15.000 U/dia). Apesar do título (anticoagulant treatment), é importante notar que as doses usadas foram, na verdade, profiláticas. O Dímero-D, o tempo de protrombina e a idade foram positivamente e a contagem de plaquetas negativamente, correlacionadas com a mortalidade em 28 dias na análise multivariada. Não foi encontrada diferença na mortalidade global em 28 dias entre usuários de heparina e não usuários (30,3% vs 29,7%, P = 0,910). Porém, a mortalidade em 28 dias dos usuários de heparina foi menor do que os não usuários no grupo de pacientes com pontuação do escore SIC (sepsis-induced coagulopathy, que considera plaquetometria, INR e o escore SOFA) ≥4 (40,0% vs 64,2%, P = 0,029), ou Dímero-D > 6 vezes (>3000 ug/L) o limite superior da normalidade (32,8% vs 52,4% , P = 0,017). Vale lembrar que outras condições podem interferir nos resultados de plaquetas e coagulograma, como hepatopatia e uso de anticoagulantes, o que deve ser levado em consideração na avaliação dos pacientes. O estudo conclui que a terapia anticoagulante profilática principalmente com HBPM parece estar associada a um melhor prognóstico em pacientes graves com COVID ‐ 19 que atendem aos critérios da SIC ou com um dímero D marcadamente elevado[16]. Uma estratégia individualizada mais agressiva pode ser necessária em alguns casos[17].

Sepsis-Induced Coagulopaty – SIC:

– Contagem de plaquetas:
* Se entre 100.000 e 150.000: 1 ponto;
* Se < 100.000: 2 pontos.

– INR:
* Se entre 1.2 e 1.4: 1 ponto;
* Se > 1.4: 2 pontos

– SOFA Score:
* Se pontuação no SOFA de 1: 1 ponto;
* Se pontuação no SOFA ≥ 2: 2 pontos

Interpretação:  SIC score é positivo quando ≥ 4

No caso de gestantes, a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), sugere que as formas graves de insuficiência respiratória na gravidez ou pós-parto por Covid 19 que necessitam de hospitalização recebam anticoagulação profilática (enoxaparina 40 mg/dia de 50 a 90 kg) desde que os riscos de sangramento não superem os benefícios da anticoagulação (sangramento ativo, plaquetas < 70 mil por mm3 , inr > 2, insuficiência renal creatinina > 1,5 mg/dl). Uma vez prescrita a anticoagulação profilática, esta deve ser mantida por quinze dias após a alta hospitalar[18].

A tromboprofilaxia mecânica deve ser usada quando a tromboprofilaxia farmacológica estiver contraindicada.

V. DOSES HABITUAIS

O UpToDate traz orientações que podem ser usadas como guia de orientação para realizar a ANTICOAGULAÇÃO PROFILÁTICA nos pacientes, a despeito de protocolos de pesquisa que estejam em andamento buscando determinar uma dose especifica para pacientes com COVID 19[19].

1. Heparina Não Fracionada (HNF):

* A dosagem profilática típica para HNF é de 5000 unidades por via subcutânea duas ou três vezes ao dia. A frequência da dosagem de HNF é controversa.

* A dose ideal para pacientes obesos é desconhecida, de modo que a dosagem deve ser individualizada caso a caso. Geralmente, preferimos tratar empiricamente com UFH 5000 a 7500 unidades três vezes ao dia; alterações na dose e na frequência devem ser adaptadas a pacientes individuais.

* Comparada à HBPM, a dose de HNF não precisa ser ajustada para pacientes com insuficiência renal.

2. Heparina de Baixo Peso Molecular (enxoxaparina):

* A dosagem profilática é de 40 mg por via subcutânea uma vez ao dia.

* A dose ideal para pacientes obesos é desconhecida, porém existem recomendações baseadas no peso corporal usadas para profilaxia na cirurgia bariátrica.

* Nos casos de insuficiência renal é necessário realizar ajustes conforme Clearance de Creatinina (ClCr).


VTE: Tromboembolismo venoso
ABW: Peso Corporal Atual
BMI: Índice de Massa Corporal


VI. RECOMENDAÇÕES NACIONAIS

Quanto a recomendações nacionais, a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) ainda não publicou recomendações quanto a dosagem. Consta no seu site apenas documento contendo análise das evidencias, manifestando, em primeiro lugar, que o antecedente isolado de tromboembolismo venoso (TVP, ou embolia pulmonar sem sequelas cardiovasculares significativas ou comorbidades associadas), ou de trombofilias hereditárias não aumentam o risco de COVID-19, e até onde se sabe, não representam um risco para formas graves. Da mesma forma, não há dados indicando que o uso de anticoagulantes ou antiplaquetários representem um fator de risco para infecção ou para formas graves. De fato, o uso destes agentes é fundamental para o controle de comorbidades potencialmente graves e sua interrupção, salvo aquelas justificadas pela avaliação usual dos riscos trombótico e hemorrágicos, pode causar danos para a saúde de nossos pacientes[20].

Por outro lado, a Associação Brasileira de Medicina Intensiva (AMIB), na sua mais recente publicação de “Recomendações para a abordagem do COVID-19 em medicina intensiva” (16.04.2020) estabelece 3 diretrizes[21]:

Recomendação 1
Não recomendamos, neste momento, o uso rotineiro de heparina em dose plena para pacientes com COVID-19.

Recomendação 2
Os pacientes devem receber a melhor profilaxia para TVP possível, farmacológicas e não-farmacológicas, resguardadas as contraindicações habituais.

Recomendação 3
Se a dose da heparina profilática dobrada é mais efetiva que a habitual nestes pacientes (em especial aqueles com D-dímero muito alto) também é desconhecida, mas tem base fisiopatológica, recomenda-se que seu uso seja
Individualizado.



[1] Deng Y, Liu W, Liu K. Clinical characteristics of fatal and recovered cases of coronavirus disease 2019 (COVID-19) in Wuhan, China: a retrospective study. Chin Med J (Engl). 2020. PMID:32209890 DOI:10.1097/CM9.0000000000000824.
[2] Li T, Lu H, Zhang W. Clinical observation and management of COVID-19 patients. Emerg Microbes Infect. 2020; 9: 687-690. PMID: 32208840 DOI: 10.1080/22221751.2020.1741327
[3] Wu C, Chen X, Cai Y. Risk Factors Associated With Acute Respiratory Distress Syndrome and Death in Patients With Coronavirus Disease 2019 Pneumonia in Wuhan, China. JAMA Intern Med. 2020. PMID: 32167524 DOI:10.1001/jamainternmed.2020.0994
[4]  American Society of Hematology. COVID-19 and coagulopathy: frequently asked questions. From the ASH website. Accessed 2020 Apr 15. Available from https://www.hematology.org/covid19/covid-19-and-coagulopathy
[5] International Society of Thrombosis and Haemostasis Interim Guidance on Recognition and Management of Coagulopathy in COVID-19. From the ISTH website. Accessed 2020 Apr 15. Available from https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/jth.14810
[6] Tang N, Li D, Wang X. Abnormal coagulation parameters are associated with poor prognosis in patients with novel coronavirus pneumonia. J Thromb Haemost. 2020; 18: 844-847.
PMID:32073213 DOI: 10.1111/jth.14768
[7] Kawamura K, Ichikado K, Takaki M et al. Adjunctive therapy with azithromycin for moderate and severe acute respiratory distress syndrome: a retrospective, propensity score-matching analysis of prospectively collected data at a single center. Int J Antimicrob Agents. 2018; 51:918-924. (PubMed 29501821) (DOI 10.1016/j. ijantimicag.2018.02.009)
[8] Abrams EM, Raissy HH. Emerging therapies in the treatment of early childhood wheeze. Pediatr Allergy Immunol Pulmonol. 2019; 32:78-80. (PubMed 31508261) (DOI 10.1089/ped.2019.1043)
[9] https://reference.medscape.com/calculator/dic-score
[10] Tang N, Li D, Wang X, Sun Z. Abnormal Coagulation parameters are associated with poor prognosis in patients with novel coronavirus pneumonia. J Thromb Haemost. 2020. 10.1111/jth.14768. [PMC free article] [PubMed] [Ref list]
[11] American Society of Hematology. COVID-19 and coagulopathy: frequently asked questions. From the ASH website. Accessed 2020 Apr 15. Available from https://www.hematology.org/covid19/covid-19-and-coagulopathy
[12] International Society of Thrombosis and Haemostasis Interim Guidance on Recognition and Management of Coagulopathy in COVID-19. From the ISTH website. Accessed 2020 Apr 15. Available from https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/jth.14810

[13] MacLaren R, Stringer KA. Emerging role of anticoagulants and fibrinolytics in the treatment of acute respiratory distress syndrome. Pharmacotherapy. 2007; 27: 860-73. PMID: 17542769 DOI:10.1592/phco.27.6.860
[14] MedPage Today. Anticoagulation Guidance Emerging for Severe COVID-19. From the MedPage Today website. Accessed 2020 Apr 15. Available from https://www.medpagetoday.com/infectiousdisease/covid19/85865
[15] U.S. National Library of Medicine. ClinicalTrials.gov. Accessed 2020 Mar 15. Available at https://www.clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04345848?term=NCT04345848&draw=2&rank=1
[16] Ning Tang e col. Anticoagulant treatment is associated with decreased mortality in severe coronavirus disease 2019 patients with coagulopathy. 2020Journal of Thrombosis and Haemostasis. March 2020. DOI: 10.1111/jth.14817
[17] Kollias A, Kyriakoulis KG, Dimakakos E, Poulakou G, Stergiou GS, Syrigos K. Thromboembolic risk
and anticoagulant therapy in COVID-19 patients: Emerging evidence and call for action. Br J
Haematol. 2020 Apr 18. doi: 10.1111/bjh.16727
[18] https://www.febrasgo.org.br/pt/covid19/item/1009-prevencao-de-mortes-maternas-por-covid-19-com-heparina-de-baixo-peso-molecular
[19] https://www.uptodate.com/contents/prevention-of-venous-thromboembolic-disease-in-acutely-ill-hospitalized-medical-adults?search=Prophylaxis%20for%20venous%20thromboembolic%20events&source=search_result&selectedTitle=5~150&usage_type=default&display_rank=5
[20] https://abhh.org.br/wp-content/uploads/2020/03/Hemostasia.COVID19.pdf
[21] https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/13/Recomendaco__es_AMIB-atual.-16.04.pdf

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